No ciberespaço, as minorias se manifestam, interagem nas redes e conseguem transformar em realidade muitas de suas demandas. O obstáculo ainda é a exclusão digital
As peculiaridades da comunicação em rede levam à facilidade de cada um ganhar voz e espaço. Até aí nada de novo. Mas, para uma minoria ou grupos sociais com características e demandas específicas, e normalmente invisíveis aos meios de comunicação de massa, a tecnologia e a rede virtual fazem toda a diferença. Ainda que o Brasil não esteja totalmente conectado e o acesso seja caro, o ciberespaço já promoveu e promove transformações para essas culturas, gerando um novo ecossistema em que grupos se manifestam, interagem e transformam demandas em realidade: novas leis, políticas públicas e petições on-line em prol de suas causas.
No www.naohomofobia.com.br, mais de duas centenas de organizações do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travbestis e transexuais) brasileiro encontraram a fórmula para colher assinaturas favoráveis ao projeto de lei que criminaliza a homofobia. O objetivo é chegar a 1 milhão de assinaturas para pressionar os senadores a aprovarem o Projeto nº 122/2006, que torna crime a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero e equipara essa situação à discriminação de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexo e gênero, ficando o autor do crime sujeito a pena, reclusão e multa.
A base de dados da campanha está toda na web e a mobilização mescla atos virtuais com manifestações ao vivo. “A internet possibilita união dentro de um país dessa dimensão, e as ferramentas que existem hoje permitem esse tipo de apoio a nossas lutas, discussões ou denúncias”, diz a liderança LGBT Roberto de Jesus. O episódio de violência durante a última Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, em que um rapaz foi agredido e morreu, também repercutiu na internet e a convocatória de um ato em protesto ao ocorrido contou com a tecnologia para chegar a todos. A Parada, por sinal, teve como primeiro apoiador, em 2000, um portal de internet – o iG – que tinha em mãos uma pesquisa apontando que, à época, a população gay ficava mais conectada que a heterossexual, o que justificava o investimento.
O sociólogo e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) Sérgio Amadeu da Silveira não gosta de usar o termo mundo virtual em contraposição ao mundo real. “Afinal, um blog, um site é real e gera consequências, efeitos, e por si só influencia atitudes”, justifica. Roberto de Jesus acha que a militância on-line deve ser mesclada com os encontros presenciais, sob o risco de se burocratizar a questão em pauta. “O perigo que vejo é ficar preso à tecnologia e não ocupar os espaços na rua, é preciso estar conectado com pessoas que te alimentam, participar de grupos, mas o lastro está na luta cotidiana.
Dessa maneira, acho que a tecnologia potencializa as causas”, afirma. Amadeu crê na tecnologia como importante aliada da diversidade cultural com reflexos positivos na inclusão social. Diante de uma cultura de homogeneização, a cultura da rede permite a diversidade, amplia os espaços de manifestação e atuação, e coloca outros atores na jogada.
Como exemplos, Amadeu cita o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que rapidamente se conectou à internet, organizando protestos e denunciando violência no campo, enquanto a mídia ignorava o que acontecia. A primeira edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, que contou com participação de gente do mundo inteiro, também foi tramada na internet e a divulgação deu-se basicamente pela web. “Obviamente o ambiente das redes digitais é afetado pelo poder do capital – é só ver os mecanismos de busca concentrados em poucas empresas americanas. Isso aponta que você tem as condições tecnológicas, comunicacionais, mas, se os grupos sociais não agirem, as condições por si só não criam diversidade, simplesmente a viabilizam. É preciso exercer a condição de ator”, analisa Amadeu.
Um grupo que se tem inserido na rede de maneira ampla e criativa são os indígenas. O site www.Indiosonline.org.br é uma mostra de articulação de várias comunidades indígenas brasileiras com parceiros da iniciativa privada e do governo. O projeto digitalizou histórias, opiniões e características de sete nações indígenas e agora parte para a educação à distância, com a intenção de qualificar essa população para que ela mesma escreva seus projetos. Como sugere o site, uma nova rede para ensinar a pescar.
Destinado à pesquisa escolar, o novo site Povos Indígenas no Brasil Mirim (www.pibmirim.socioambiental.org) é outra iniciativa de inserção do grupo, desta vez voltado para as crianças. Criado pelo ISA, contém informações sobre a diversidade da população indígena brasileira de forma didática e com linguagem acessível. Uma das maneiras encontradas pela equipe do site para despertar o interesse das crianças foicriar a Aldeia Virtual, um jogo on-line com referências sobre as diferentes etnias com o qual a criança pode interagir e se sentir parte daquele ambiente.
Júlia Trujillo, que orientou a concepção de conteúdo, diz que, por enquanto, as demandas partem de crianças brancas, que, notoriamente, são as que mais têm acesso à internet. Mas, como a organização tem programas nas reservas do Xingu e no Rio Negro com populações indígenas, a ideia é incrementar o conteúdo in loco, trazendo informações diretamente das crianças desses locais e estimulando a conversa entre todos. A dificuldade é que a maioria das aldeias não tem acesso à rede, mas muitas das crianças vão a escolas nas cidades, frequentam associações e pontos de cultura.
Também os quilombolas começam a experimentar as facilidades tecnológicas. Os quilombos situados no Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo, por exemplo, criaram o www.quilombosdoribeira.org. br, em que as nove comunidades da região estão representadas com links para histórico, território, cultura tradicional, projetos, atividades e produtos. Apesar das peculiaridades de cada uma, as causas comuns ganham força na representação virtual.
A campanha pela não construção de barragens de usinas hidrelétricas no Rio Ribeira de Iguape é uma delas. O lugar, que tem 21% dos remanescentes de Mata Atlântica do País, será afetado por completo se as empreiteiras levarem a cabo seus planos de construção de usinas. As áreas dos quilombos serão inundadas e as comunidades terão de ser transferidas para outros locais. A página informa os impactos dessas obras na região e divulga as ações de resistência dos quilombolas nesse sentido, como a preservação da mata e atividades de subsistência que desenvolvem.
Conteúdos antes restritos a bibliotecas, museus ou mesmo inacessíveis por falta de tradução podem ser encontrados por meio do sistema de copyleft – o termo surgiu nos anos 80 como um movimento contrário a restrições para o acesso ao código fonte dos programas de computadores.
Hoje é entendido de forma mais ampla como cooperação e compartilhamento de informações, sem restrição à sua divulgação, desde que não seja simplesmente para fins comerciais, outra ferramenta de disseminar conhecimento e interação. Do ateliê na Vila Madalena, em São Paulo, Lúcia Rosa traduz as teorias de Nicolas Bourriaud e sua estética relacional no blog do Dulcinéia Catadora. O Dulcinéia é um coletivo de arte que reúne filhos de catadores de papelão da capital paulista, produzindo livros com a capa de papelão pintado pelos meninos-artistas e vendidos a R$ 6. A estética relacional de Bourriaud é fonte de inspiração para a convivência dos universos distintos que ali habitam – escritores latinoamericanos, meninos-artistas, catadores de papelão que vendem a matéria-prima para os livros, artistas plásticos e colaboradores simpatizantes do projeto.
“É muito interessante como os grupos têm se apropriado das ferramentas dos blogs, porque, além de ser gratuitas, você pode agregar conteúdo e layout a seu critério, atualizar e alterar de acordo com sua necessidade e ainda se apropriar de códigos elaborados por outros”, pontua o professor Sérgio Amadeu.
No caso do blog do Dulcinéia, Lúcia se apropriou de textos e entrevistas do artista plástico francês e os disponibiliza, em partes, no blog do projeto. O conteúdo interage com os participantes e oferece novidades e refrescos de pensamento para os interessados em arte e ativismo, permitindo uso por outros movimentos ou coletivos.
O curioso é que as traduções acabam por ser uma metalinguagem do próprio movimento de trocas, traduções e apropriações. Um trecho pescado do site www.dulcineiacatadora.blogspot.com: “O aumento das comunicações, viagens e migrações está afetando nosso modo de vida. Nossa vida diária consiste de deslocamentos em um universo caótico e lotado. Agora os artistas partem de um estado globalizado da cultura. Esse novo universalismo se baseia em traduções, legendas e dublagens generalizadas”.
Outro movimento que avançou na disponibilização de conteúdos inéditos foi o LGBT. No site www.Ilga.org, um relatório traz a situação legal em relação à homossexualidade em todos os países que integram a ONU. Ali se pode saber, de qualquer lugar, a legislação de cada nação em relação ao tema, em inglês, espanhol, francês e português.
Amadeu pensa que o momento é propício a um novo ofício: animadores da rede ou andarilhos do ciberespaço. Pessoas que no mundo presencial estimulem e incentivem comunidades e grupos a aportarem seus conteúdos na internet, criando condições para que jovens que tenham aptidão possam usufruir das ferramentas tecnológicas.
A estes andarilhos também caberia separar o joio do trigo, apontando oportunidades e saberes confiáveis na rede mundial. “A cultura brasileira é muito rica e poderia ter uma presença muito maior na internet”, diz.
Em contraponto, o acesso à internet tem muito a evoluir. Esta é uma das queixas de Yáskara Guelpa, liderança da população cigana no Brasil. “Não somos usuários de internet, nosso mundo é outro. Muitas vezes os acadêmicos estabelecem um horizonte que é totalmente diferente da realidade.”
Os cerca de 600 mil ciganos, divididos em 15 etnias, que vivem no País ainda têm grandes problemas de inserção na sociedade, por preconceito e até romantismo em torno de sua cultura. Considerada comunidade tradicional, a população cigana está na fase de contabilizar e localizar seus grupos, uma realidade ainda distante da inclusão digital.
O povo cigano, que saiu da Índia e percorreu vários países agregando culturas distintas ao seu modo de viver, está sendo mapeado no Brasil, enquanto povos indígenas e comunidades tradicionais como os quilombolas têm projetos apoiados pelo Ministério da Cultura na área digital. Uma característica especial dos ciganos é que possuem uma língua ágrafa, o romanês, ou romani. Existem muitos dialetos ciganos, mas a raiz é o romanês e o fato de não ser uma língua escrita não impede a comunicação entre vários grupos e etnias, mas se torna um obstáculo para a inserção digital.
As novas ferramentas multimídia oferecidas na rede podem ser de grande valia neste caso, avalia Amadeu, porque reforçam a existência daquela cultura sem que se perca a característica da oralidade. “Com os audiologs e videologs, as culturas que não têm escrita, de comunidades tradicionais, podem se manifestar, ganhar nova existência, se reconfigurar na rede, ao mesmo tempo que reconfiguram a rede sem perder o que é essencial a eles”.