O reconhecimento das uniões homoafetivas segue a mesma trilha dos direitos civis, já percorrida por mulheres e negros no século XX. No Brasil, casais gays são privados de pelo menos 37 direitos e a luta nos tribunais preenche o silêncio do Legislativo
Por Carolina Derivi
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O professor universitário Lucas Morato começa a se despedir de Brasília e está de malas prontas rumo à Europa, onde vai morar a partir deste ano. A psicóloga e romancista Valéria Busin mora em Atibaia, no interior de São Paulo, e sonha em adotar uma criança. A jornalista fluminense Renata de Oliveira acumula um patrimônio conjunto de mais de uma década em uma união estável, conquistado a duras penas.
São histórias humanas comuns, que cotidianamente se deparam com exigências e implicações burocráticas, como bem sabem todos os brasileiros. Mas para eles há uma peculiaridade que altera completamente as regras do jogo. Lucas, Valéria e Renata são homossexuais e suas uniões afetivas com pessoas do mesmo sexo não são legalmente reconhecidas.
A homossexualidade é parte da natureza e da cultura humanas desde que o mundo é mundo. Há mais de 2 mil anos, o grego Aristófanes, um dos interlocutores de Platão no livro O Banquete, descreve o famoso mito dos andróginos que deu origem à noção de almas gêmeas. No começo, os seres humanos tinham duas cabeças e oito membros, metade homem e metade mulher. Castigados pelos deuses, foram separados e condenados a vagar o mundo eternamente à procura da outra metade.
Mas o mito não para por aí. A versão verdadeira, e menos conhecida, descreve a existência de outros dois tipos humanos: os duplamente homens e os duplamente mulheres que, igualmente separados, procuram a sua metade não no sexo oposto, mas entre os iguais.
Colecionando os estigmas de pecado, doença, degeneração, promiscuidade e crime ao longo dos séculos, o “amor que não ousa dizer seu nome” deparou-se modernamente com os Estados Democráticos de Direito. Muito além da luta contra o preconceito e a discriminação – tarefa para gerações -, o questionamento é de ordem lógica: se todos são iguais perante a lei, pode o Direito ignorar o fato social das uniões homoafetivas, enquanto confere proteção e deveres a todas as demais?
Países como França, Canadá, Bélgica, Reino Unido, e a pioneira Holanda, consideram que não. Nem é preciso ir tão longe e abarcar apenas os países desenvolvidos. No ano passado, o vizinho Uruguai tornou-se o primeiro país latino-americano a equiparar os casais de mesmo sexo às uniões estáveis heterossexuais em nível federal. México e Argentina fizeram o mesmo, embora apenas nas capitais federais e em algumas províncias.
No Brasil, segundo levantamento realizado pelo IBGE pela primeira vez em 2007, há pelo menos 17 mil casais homoafetivos dividindo o mesmo teto. Esse dado refere-se apenas a uma parcela dos municípios brasileiros, que representa 60% da população recenseada naquele ano.
Se nos tempos atuais a formalidade do casamento sai de moda, a reivindicação de isonomia de direitos pelos gays pode parecer apenas simbólica. E é, mas é também de ordem prática. Os movimentos sociais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) (para entender as denominações, veja quadro ao final desta reportagem) calculam em 37 o número de direitos que são negados aos casais gays em comparação com a união estável heterossexual.
Dia a dia
Lucas Morato vive com um diplomata brasileiro que foi designado para trabalhar na Bélgica. Para poder acompanhálo e garantir o visto de residência, teve que se declarar, perante o Ministério das Relações Exteriores, como empregado doméstico do companheiro. Fosse uma mulher, teria direito ao passaporte diplomático.
“O que me revolta não é nem ter que ser escondido. É ter menos direitos do que as outras pessoas. Eu já pago tanto imposto…”, lamenta. E paga mesmo. Mais do que os heterossexuais que dividem suas vidas e contas, já que os casais gays não podem apresentar o parceiro como dependente no Imposto de Renda, ou fazer declaração conjunta, o que reduziria o valor da contribuição.
Renata de Oliveira conhece essas limitações cotidianas há pelo menos treze anos, tempo que vive com Tatiana, no município de Cabo Frio (RJ). Ela sabe, por exemplo, da dificuldade de aprovar a sua renda combinada à da companheira na hora de conseguir um financiamento. Mesmo assim, as duas contribuíram para comprar os bens.
“A minha família é super tranquila (com relação à união), mas a família dela, não. Se ela morrer antes de mim, como é que fica o patrimônio? Temos medo”, diz Renata, que também já passou pela situação de não poder ficar com a parceira durante um período de internação hospitalar. Por não ser considerada da família, teve de se restringir aos horários de visita.
Todos esses riscos levaram Valéria Busin a assinar um contrato de convivência com sua companheira, com quem vive há cinco anos. É uma alternativa que vem ganhando notoriedade entre os casais gays e, por ser uma simples declaração de vontade, não há nada que impeça de ser registrada em cartório. O gesto não tem efeito legal, mas cumpre a função de prova, para futuras reivindicações judiciais.
“Uma amiga hétero precisou fazer uma declaração de união estável na mesma época que eu. A dela tem meia página. A minha, várias”, lembra Valéria. “Como não está previsto em lei, a gente tem que detalhar todas as possibilidades, se tiver que movimentar conta de banco, se pode doar órgãos, se eu estiver no hospital ela pode autorizar uma cirurgia ou uma transferência… Isso mostra o quanto a gente é cidadão de segunda classe.”
A batalha dos poderes
Enquanto a lei não vem, é no Judiciário que se constam os principais avanços. Valendo-se de analogias e dos princípios constitucionais de liberdade e igualdade, alguns juízes vêm concedendo o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, sobretudo no estado do Rio Grande do Sul.
Desembargadora aposentada, a gaúcha Maria Berenice Dias é uma das pioneiras em decisões desse tipo. Hoje atua como advogada especializada em direito homoafetivo. Ela explica que uma das principais estratégias nessa área é insistir na vara de família. No passado recente, por falta de alternativas, casais gays foram aconselhados a firmar contratos de sociedades de fato, o que significa parceria comercial. “Só reconhecendo como família é que os direitos de separação, alimentos, permanência no país para estrangeiros, herança vão ser assegurados. Se você é sócio de alguém, não tem isso”, diz.
Não se sabe ao certo a dimensão das vitórias nos tribunais e o motivo é a dificuldade de se ter acesso à jurisprudência. Segundo Maria Berenice, que tenta formar uma rede de advogados especializados para suplantar a falta de informação, as páginas dos Tribunais de Justiça em todo País têm mecanismos de busca precários. E as decisões de primeira instância dificilmente ganham notoriedade.
Isso dificulta muito o trabalho dos advogados, já que, na ausência de lei, a jurisprudência é tudo que se tem. Virá do Supremo Tribunal Federal a decisão mais aguardada. Uma arguição proposta pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, propõe que se garantam aos parceiros dos servidores públicos o direito à pensão e demais benefícios. Para Maria Berenice, uma decisão favorável do STF influenciaria não apenas os demais tribunais, mas também o Legislativo, que paulatinamente perde poder, enquanto o Judiciário é obrigado a preencher a lacuna legal.
Desafio kafkiano
No Congresso Nacional, o projeto de lei que versa sobre a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, de autoria de Marta Suplicy (PT-SP), está na gaveta – ou no armário – desde 1995. Um novo projeto, de José Genoino (PT-SP), foi protocolado este ano e propõe um adicional ao Código Civil, declarando que união estável “é aplicável às relações entre pessoas do mesmo sexo, garantidos os direitos e deveres decorrentes”.
O deputado Jairo Paes de Lira (PTCSP) é uma das vozes contrárias. Suplente do falecido deputado Clodovil Hernandes, propôs projeto de lei que visa garantir a exclusividade do casamento e das uniões estáveis a casais heterossexuais. Para ele, o casamento visa, entre outras coisas, a perpetuação da espécie, missão que os gays não podem cumprir. Apesar disso, Paes de Lira não se opõe à união de homens e mulheres estéreis ou aos casais que decidem não ter filhos.
“As mesmas leis civis e penais que me protegem também protegem o homossexual”, acredita o deputado. “Essas legislações segmentadoras, que visam garantir o direito das minorias, logo mais vão constituir um apartheid social, criando focos de ódio.”
Desde os anos 1990, a resistência organizada a projetos de lei voltados para a comunidade LGBT vem das bancadas evangélica e católica. A senadora Fátima Cleide (PT-RO), relatora do projeto de lei que criminaliza a homofobia e estende à orientação sexual e à identidade de gênero a mesma proteção contra discriminação que abarca cor, credo e condição social, diz que não há ambiente de aprovação: “A influência religiosa tem sido muito forte. Essas pessoas são minoria, mas fazem um barulho ensurdecedor no ouvido de quem é favorável, isso de certa forma intimida. Eles se organizam, colocam voto em separado e se unem para adiar”.
O projeto é chamado por esse segmento de “lei da mordaça”. O que se argumenta é que a criminalização do preconceito manifesto pode ameaçar a liberdade de expressão daqueles que condenam a homossexualidade por convicção religiosa.
Dimitri Sales, chefe da Coordenadoria de Políticas da Diversidade Sexual do Estado de São Paulo e mestre em Direito Constitucional, rebate: “Acima da liberdade de expressão está o respeito à dignidade da pessoa humana. O que o PL visa coibir é a violência, a incitação à violência e a discriminação”. O Deputado João Campos (PSDB-GO), líder da bancada evangélica na Câmara, foi convidado a comentar, mas até o fechamento desta reportagem não atendeu ao pedido de entrevista.
A resistência à criminalização da homofobia também guarda relação com a ampla aceitação social da discriminação no Brasil. Uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, no ano passado, revela que 28% dos brasileiros admitem ter preconceito contra a população LGBT. É uma marca alta, se comparada aos 4% que confessaram preconceito racial em pesquisa realizada pela mesma entidade, em 2003.
Íntimo e coletivo
Para a antropóloga Regina Facchini, coautora do livro Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT, as organizações representativas têm grande dificuldade de ser reconhecidas como movimentos sociais legítimos. “Tem uma parcela grande da sociedade brasileira que considera homossexualidade uma questão de foro privado, uma escolha do sujeito. Essas mesmas pessoas vão dizer que o governo não tem que se preocupar, é um problema dos homossexuais.”
O movimento homossexual surge no Brasil, no final dos anos 70, na esteira da luta pela redemocratização, na qual se encontraram diversas minorias. A partir dos anos 90, esses grupos passam pelo mesmo processo de institucionalização e profissionalização que deu origem às ONGs, mas sem nunca desfrutar da mesma estrutura que outras causas sociais e ambientais.
Franco Reinaudo, chefe da Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo (Cads), considera que isso está diretamente associado à discriminação e ao preconceito: “A maioria das associações, por uma questão de sobrevivência, ou são apoiadas pelo governo ou por entidades internacionais. E com grande dificuldade. É muito mais fácil apoiar as questões de ecologia, das crianças, dos idosos. A gente é o último da fila”.
Um dos melhores indicadores dessa realidade são as paradas do orgulho LGBT. O que para alguns não passa de um carnaval fora de época, para a militância gay é a expressão máxima da visibilidade, pré-requisito de força política.
O evento do ano 2000, em São Paulo, é considerado “a parada da virada”, quando mais de 100 mil pessoas comparecem à Avenida Paulista. Para Reinaudo, não é coincidência que, a partir daquele ano, começaram a surgir as primeiras políticas públicas e órgãos governamentais especializados. A Cads, por exemplo, nasceu em 2001. “A partir de 2000, o que muda é: ‘Essas pessoas existem’.”
Mas a trajetória nem sempre foi cor-de- rosa. Alexandre Santos, presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT, lembra que o evento já sobreviveu à base de vaquinhas e rifas, além de algum apoio por parte de ONGs e empresas especializadas no mercado GLS. Em 2004, quando a parada de São Paulo atinge mais de 1 milhão de participantes e passa a ser considerada a maior do mundo, a associação estava à beira da bancarrota, com um déficit de R$ 350 mil. Enquanto isso, o mesmo evento em San Francisco (EUA) contava com patrocinadores como Bank of America, Pepsi e MasterCard.
Só a partir de 2007, a Caixa Econômica Federal e a Petrobras se tornaram os primeiros patrocinadores oficiais. Hoje, a conta do arco-íris entrou no azul, e a associação realiza não apenas a parada como também uma série de outros eventos e debates voltados para a promoção da cidadania LGBT. Segundo Santos, ainda hoje os organizadores trabalham em caráter voluntário, o que também é a realidade de grande parte dos grupos de militância.
Para Regina, um dos aspectos mais interessantes da celebração do orgulho LGBT no espaço público é a aproximação dos diferentes: “Se há um espaço social que é marcado por uma categoria estigmatizada de pessoas, e se pessoas que não são estigmatizadas adentram esse espaço, está se operando uma mudança muito significativa”, diz. “Festa e política se encontram perfeitamente.”
É um lembrete de que o respeito à diversidade e à igualdade de direitos pode e deve ser encampada por toda a sociedade. Como diz Dimitri Sales: “Quando a gente fala em defender a cidadania LGBT, estamos falando em defender a cidadania brasileira. Se não houver respeito para um, não haverá para ninguém”.
Léxico Gay – Conheça a diversidade dos atores LGBT e os termos adequados
Orientação sexual – O termo visa se opor a denominações como “escolha” ou “opção” sexual, que historicamente deram margem à condenação e a tentativas de reformar os indivíduos. Embora não haja consenso científico sobre quais fatores são determinantes para a sexualidade, o que se sabe é que a orientação não pode ser escolhida ou alterada.
Identidade de gênero – É o gênero pelo qual o indivíduo se reconhece e que às vezes pode ser contrário ao gênero biológico. Não diz respeito à sexualidade. Uma pessoa do sexo masculino que se considera mulher não necessariamente terá orientação sexual voltada para homens.
Travestis – Pessoas do sexo biológico masculino, mas que têm identidade de gênero feminina, independentemente de cirurgia adaptativa. Não se confundem com artistas homens que realizam performances como drag queens, incorporando um personagem. Tratá-las por “a” travesti e pelo nome feminino de escolha é um gesto de respeito.
Transexuais – Pessoas que passam pela cirurgia de redesignação sexual, que adapta o sexo biológico ao gênero psicológico.
Homossexuais – Pessoas que têm orientação sexual e afetiva voltada para outras pessoas do mesmo sexo, normalmente designados como gays e lésbicas. Termos como “bicha” e “sapatão”, bem como os diminutivos “sapata” ou “sapa”, foram incorporados pela própria população LGBT como forma de esvaziar seu conteúdo pejorativo. Geralmente, não são considerados ofensivos, mas isso depende da pessoa e do contexto.
O reconhecimento das uniões homoafetivas segue a mesma trilha dos direitos civis, já percorrida por mulheres e negros no século XX. No Brasil, casais gays são privados de pelo menos 37 direitos e a luta nos tribunais preenche o silêncio do Legislativo
O professor universitário Lucas Morato começa a se despedir de Brasília e está de malas prontas rumo à Europa, onde vai morar a partir deste ano. A psicóloga e romancista Valéria Busin mora em Atibaia, no interior de São Paulo, e sonha em adotar uma criança. A jornalista fluminense Renata de Oliveira acumula um patrimônio conjunto de mais de uma década em uma união estável, conquistado a duras penas.
São histórias humanas comuns, que cotidianamente se deparam com exigências e implicações burocráticas, como bem sabem todos os brasileiros. Mas para eles há uma peculiaridade que altera completamente as regras do jogo. Lucas, Valéria e Renata são homossexuais e suas uniões afetivas com pessoas do mesmo sexo não são legalmente reconhecidas.
A homossexualidade é parte da natureza e da cultura humanas desde que o mundo é mundo. Há mais de 2 mil anos, o grego Aristófanes, um dos interlocutores de Platão no livro O Banquete, descreve o famoso mito dos andróginos que deu origem à noção de almas gêmeas. No começo, os seres humanos tinham duas cabeças e oito membros, metade homem e metade mulher. Castigados pelos deuses, foram separados e condenados a vagar o mundo eternamente à procura da outra metade.
Mas o mito não para por aí. A versão verdadeira, e menos conhecida, descreve a existência de outros dois tipos humanos: os duplamente homens e os duplamente mulheres que, igualmente separados, procuram a sua metade não no sexo oposto, mas entre os iguais.
Colecionando os estigmas de pecado, doença, degeneração, promiscuidade e crime ao longo dos séculos, o “amor que não ousa dizer seu nome” deparou-se modernamente com os Estados Democráticos de Direito. Muito além da luta contra o preconceito – tarefa para gerações -, o questionamento é de ordem lógica: se todos são iguais perante a lei, pode o Direito ignorar o fato social das uniões homoafetivas, enquanto confere proteção e deveres a todas as demais?
Países como França, Canadá, Bélgica, Reino Unido, e a pioneira Holanda, consideram que não. Nem é preciso ir tão longe e abarcar apenas os países desenvolvidos. No ano passado, o vizinho Uruguai tornou-se o primeiro país latino-americano a equiparar os casais de mesmo sexo às uniões estáveis heterossexuais em nível federal. México e Argentina fizeram o mesmo, embora apenas nas capitais federais e em algumas províncias.
No Brasil, segundo levantamento realizado pelo IBGE pela primeira vez em 2007, há pelo menos 17 mil casais homoafetivos dividindo o mesmo teto. Esse dado refere-se apenas a uma parcela dos municípios brasileiros, que representa 60% da população recenseada naquele ano.
Se nos tempos atuais a formalidade do casamento sai de moda, a reivindicação de isonomia de direitos pelos gays pode parecer apenas simbólica. E é, mas é também de ordem prática. Os movimentos sociais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) (para entender as denominações, veja quadro ao final desta reportagem) calculam em 37 o número de direitos que são negados aos casais gays em comparação com a união estável heterossexual.
Dia a dia
Lucas Morato vive com um diplomata brasileiro que foi designado para trabalhar na Bélgica. Para poder acompanhá-lo e garantir o visto de residência, teve que se declarar, perante o Ministério das Relações Exteriores, como empregado doméstico do companheiro. Fosse uma mulher, teria direito ao passaporte diplomático.
“O que me revolta não é nem ter que ser escondido. É ter menos direitos do que as outras pessoas. Eu já pago tanto imposto…”, lamenta. E paga mesmo. Mais do que os heterossexuais que dividem suas vidas e contas, já que os casais gays não podem apresentar o parceiro como dependente no Imposto de Renda, ou fazer declaração conjunta, o que reduziria o valor da contribuição.
Renata de Oliveira conhece essas limitações cotidianas há pelo menos treze anos, tempo que vive com Tatiana, no município de Cabo Frio (RJ). Ela sabe, por exemplo, da dificuldade de aprovar a sua renda combinada à da companheira na hora de conseguir um financiamento. Mesmo assim, as duas contribuíram para comprar os bens.
“A minha família é super tranquila (com relação à união), mas a família dela, não. Se ela morrer antes de mim, como é que fica o patrimônio? Temos medo”, diz Renata, que também já passou pela situação de não poder ficar com a parceira durante um período de internação hospitalar. Por não ser considerada da família, teve de se restringir aos horários de visita.
Todos esses riscos levaram Valéria Busin a assinar um contrato de convivência com sua companheira, com quem vive há cinco anos. É uma alternativa que vem ganhando notoriedade entre os casais gays e, por ser uma simples declaração de vontade, não há nada que impeça de ser registrada em cartório. O gesto não tem efeito legal, mas cumpre a função de prova, para futuras reivindicações judiciais.
“Uma amiga hétero precisou fazer uma declaração de união estável na mesma época que eu. A dela tem meia página. A minha, várias”, lembra Valéria. “Como não está previsto em lei, a gente tem que detalhar todas as possibilidades, se tiver que movimentar conta de banco, se pode doar órgãos, se eu estiver no hospital ela pode autorizar uma cirurgia ou uma transferência… Isso mostra o quanto a gente é cidadão de segunda classe.”
A batalha dos poderes
Enquanto a lei não vem, é no Judiciário que se constam os principais avanços. Valendo-se de analogias e dos princípios constitucionais de liberdade e igualdade, alguns juízes vêm concedendo o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, sobretudo no estado do Rio Grande do Sul.
Desembargadora aposentada, a gaúcha Maria Berenice Dias é uma das pioneiras em decisões desse tipo. Hoje atua como advogada especializada em direito homoafetivo. Ela explica que uma das principais estratégias nessa área é insistir na vara de família. No passado recente, por falta de alternativas, casais gays foram aconselhados a firmar contratos de sociedades de fato, o que significa parceria comercial. “Só reconhecendo como família é que os direitos de separação, alimentos, permanência no país para estrangeiros, herança vão ser assegurados. Se você é sócio de alguém, não tem isso”, diz.
Não se sabe ao certo a dimensão das vitórias nos tribunais e o motivo é a dificuldade de se ter acesso à jurisprudência. Segundo Maria Berenice, que tenta formar uma rede de advogados especializados para suplantar a falta de informação, as páginas dos Tribunais de Justiça em todo País têm mecanismos de busca precários. E as decisões de primeira instância dificilmente ganham notoriedade.
Isso dificulta muito o trabalho dos advogados, já que, na ausência de lei, a jurisprudência é tudo que se tem. Virá do Supremo Tribunal Federal a decisão mais aguardada. Uma arguição proposta pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, propõe que se garantam aos parceiros dos servidores públicos o direito à pensão e demais benefícios. Para Maria Berenice, uma decisão favorável do STF influenciaria não apenas os tribunais, mas também o Legislativo, que paulatinamente perde poder, enquanto o Judiciário é obrigado a preencher a lacuna legal.
Desafio kafkiano
No Congresso Nacional, o projeto de lei que versa sobre a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, de autoria de Marta Suplicy (PT-SP), está na gaveta – ou no armário – desde 1995. Um novo projeto, de José Genoino (PT-SP), foi protocolado este ano e propõe um adicional de duas linhas ao Código Civil, declarando que união estável “é aplicável às relações entre pessoas do mesmo sexo, garantidos os direitos e deveres decorrentes”.
O deputado Jairo Paes de Lira (PTCSP) é uma das vozes contrárias. Suplente do falecido deputado Clodovil Hernandes, propôs projeto de lei que visa garantir a exclusividade do casamento e das uniões estáveis a casais heterossexuais. Para ele, o casamento visa, entre outras coisas, a perpetuação da espécie, missão que os gays não podem cumprir. Apesar disso, Paes de Lira não se opõe à união de homens e mulheres estéreis ou aos casais que decidem não ter filhos.
“As mesmas leis civis e penais que me protegem também protegem o homossexual”, acredita o deputado. “Essas legislações segmentadoras, que visam garantir o direito das minorias, logo mais vão constituir um apartheid social, criando focos de ódio.”
Desde os anos 1990, a resistência organizada a projetos de lei voltados para a comunidade LGBT vem das bancadas evangélica e católica. A senadora Fátima Cleide (PT-RO), relatora do projeto de lei que criminaliza a homofobia e estende à orientação sexual e à identidade de gênero a mesma proteção contra discriminação que abarca outras minorias, diz que não há ambiente de aprovação: “A influência religiosa tem sido muito forte. Essas pessoas são minoria, mas fazem um barulho ensurdecedor no ouvido de quem é favorável, isso de certa forma intimida. Eles se organizam, colocam voto em separado e se unem para adiar”.
O projeto é chamado por esses grupos de “lei da mordaça”. O que se argumenta é que a criminalização do preconceito manifesto pode ameaçar a liberdade de expressão daqueles que condenam a homossexualidade por convicção religiosa.
Dimitri Sales, chefe da Coordenadoria de Políticas da Diversidade Sexual do Estado de São Paulo e mestre em Direito Constitucional, rebate: “Acima da liberdade de expressão está o respeito à dignidade da pessoa humana. O que o PL visa coibir é a violência, a incitação à violência e a discriminação”. O Deputado João Campos (PSDB-GO), líder da bancada evangélica na Câmara, foi convidado a comentar, mas até o fechamento desta reportagem não atendeu ao pedido de entrevista.
A resistência à criminalização da homofobia também guarda relação com a ampla aceitação social da discriminação no Brasil. Uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, no ano passado, revela que 28% dos brasileiros admitem ter preconceito contra a população LGBT. É uma marca alta, se comparada aos 4% que confessaram preconceito racial em pesquisa realizada pela mesma entidade, em 2003.
Íntimo e coletivo
Para a antropóloga Regina Facchini, coautora do livro Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT, as organizações representativas têm grande dificuldade de ser reconhecidas como movimentos sociais legítimos. “Tem uma parcela grande da sociedade brasileira que considera homossexualidade uma questão de foro privado, uma escolha do sujeito. Essas mesmas pessoas vão dizer que o governo não tem que se preocupar, é um problema dos homossexuais.”
O movimento homossexual surge no Brasil, no final dos anos 70, na esteira da luta pela redemocratização, na qual se encontraram diversas minorias. A partir dos anos 90, esses grupos passam pelo mesmo processo de institucionalização e profissionalização que deu origem às ONGs, mas sem nunca desfrutar da mesma estrutura que outras causas sociais e ambientais.
Franco Reinaudo, chefe da Coordenadoria de Assuntos da Diversidade Sexual da Prefeitura de São Paulo (Cads), considera que isso está diretamente associado à discriminação e ao preconceito: “A maioria das associações, por uma questão de sobrevivência, ou são apoiadas pelo governo ou por entidades internacionais. E com grande dificuldade. É muito mais fácil apoiar as questões de ecologia, das crianças, dos idosos. A gente é o último da fila”.
Um dos melhores indicadores dessa realidade são as paradas do orgulho LGBT. O que para alguns não passa de um carnaval fora de época, para a militância gay é a expressão máxima da visibilidade, pré-requisito de força política.
O evento do ano 2000, em São Paulo, é considerado “a parada da virada”, quando mais de 100 mil pessoas comparecem à Avenida Paulista. Para Reinaudo, não é coincidência que, a partir daquele ano, começaram a surgir as primeiras políticas públicas e órgãos governamentais especializados. A Cads, por exemplo, nasceu em 2001. “A partir de 2000, o que muda é: ‘Essas pessoas existem’.”
Mas a trajetória nem sempre foi cor-de- rosa. Alexandre Santos, presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT, lembra que o evento já sobreviveu à base de vaquinhas e rifas, além de algum apoio por parte de ONGs e empresas especializadas no mercado GLS. Em 2004, quando a parada de São Paulo atinge mais de 1 milhão de participantes e passa a ser considerada a maior do mundo, a associação estava à beira da bancarrota, com um déficit de R$ 350 mil. Enquanto isso, o mesmo evento em San Francisco (EUA) contava com patrocinadores como Bank of America, Pepsi e MasterCard.
Só a partir de 2007, a Caixa Econômica Federal e a Petrobras se tornaram os primeiros patrocinadores oficiais. Hoje, a conta do arco-íris entrou no azul, e a associação realiza não apenas a parada como também uma série de outros eventos e debates voltados para a promoção da cidadania LGBT. Segundo Santos, ainda hoje os organizadores trabalham em caráter voluntário, o que também é a realidade de grande parte dos grupos de militância.
Para Regina, um dos aspectos mais interessantes da celebração do orgulho LGBT no espaço público é a aproximação dos diferentes: “Se há um espaço social que é marcado por uma categoria estigmatizada de pessoas, e se pessoas que não são estigmatizadas adentram esse espaço, está se operando uma mudança muito significativa”, diz. “Festa e política se encontram perfeitamente.”
É um lembrete de que o respeito à diversidade e à igualdade de direitos pode e deve ser encampada por toda a sociedade. Como diz Dimitri Sales: “Quando a gente fala em defender a cidadania LGBT, estamos falando em defender a cidadania brasileira. Se não houver respeito para um, não haverá para ninguém”.
Léxico Gay – Conheça a diversidade dos atores LGBT e os termos adequados
Orientação sexual – O termo visa se opor a denominações como “escolha” ou “opção” sexual, que historicamente deram margem à condenação e a tentativas de reformar os indivíduos. Embora não haja consenso científico sobre quais fatores são determinantes para a sexualidade, o que se sabe é que a orientação não pode ser escolhida ou alterada.
Identidade de gênero – É o gênero pelo qual o indivíduo se reconhece e que às vezes pode ser contrário ao gênero biológico. Não diz respeito à sexualidade. Uma pessoa do sexo masculino que se considera mulher não necessariamente terá orientação sexual voltada para homens.
Travestis – Pessoas do sexo biológico masculino, mas que têm identidade de gênero feminina, independentemente de cirurgia adaptativa. Não se confundem com artistas homens que realizam performances como drag queens, incorporando um personagem. Tratá-las por “a” travesti e pelo nome feminino de escolha é um gesto de respeito.
Transexuais – Pessoas que passam pela cirurgia de redesignação sexual, que adapta o sexo biológico ao gênero psicológico.
Homossexuais – Pessoas que têm orientação sexual e afetiva voltada para outras pessoas do mesmo sexo, normalmente designados como gays e lésbicas. Termos como “bicha” e “sapatão”, bem como os diminutivos “sapata” ou “sapa”, foram incorporados pela própria população LGBT como forma de esvaziar seu conteúdo pejorativo. Geralmente, não são considerados ofensivos, mas isso depende da pessoa e do contexto.