“Chocolate city”
Às vezes, na fila do baozi (pãozinho no vapor recheado com porco, servido no almoço) ou nos minutos antes das aulas, dá pra trocar algumas palavras com os alunos chineses. É espantoso flagrar como eles encaixam, nas brechas da sua lógica cientificista, superstições e mitos. Ao sentar do lado de uma chinesa pra tomar café da manhã, puxei papo dizendo “Você não gosta de café?” e ela “Não muito, mas gosto. Não tenho o hábito de tomar” “Por que?” “Todos na China sabem que se você tomar muito café, sua pele escurece e você pode ficar preto!”. Essa chinesa de 20 e poucos anos é inteligentíssima, viajada e estuda em uma das melhores universidades do país.
Pelo que descobri por aqui, a pele bem branca – especialmente nas mulheres – indica enlightment ou “iluminação”, uma “pessoa iluminada”. As mulheres andam com sombrinhas para cima e para baixo e colocam mangas compridas para dirigir suas bicicletas nessa sauna que é Xangai. Isso acaba gerando uma mistura de preconceito e curiosidade a respeito dos negros. Em todos os dias da primeira semana, pelo menos um chinês veio me perguntar se “tínhamos muitos negros no Brasil”, depois de falar um pouco sobre nossa população, sobre a mistura das raças e tal, não raro terminavam com “we have black people at Chongquin city, like chocolate people”.
Via de regra, nós brasileiros chamamos muito a atenção por onde passamos. Temos no grupo um alemão, uma sino-brasileira, uma negra, uns três ou quatro pardos, loiras, morenos, altos, baixos…uma boa amostragem (para variar, nada de indígenas). No geral, rivalizamos com as atrações turísticas … quando algum chinês vence a timidez e pede pra tirar uma foto com alguém, logo uma fila olhos puxados se forma e dá-lhe flashes … a graça não é a loira ou a negra, é o espanto gerado por todos virem do mesmo canto do mundo … vários desconfiam que somos mesmo todos de um só país.
Chongquin é uma cidade chinesa, das grandes. É um pólo industrial, que virou capital da China durante a segunda guerra sino-japonesa (1937-45), eles transferiram a capital pra lá pois graças à geografia do lugar – a cidade é encravada em um vale – e a alta quantidade de fornos industriais, a poluição era tamanha que os aviões japoneses não conseguiam enxergar os alvos de bombardeios. Até hoje é a maior concentração de enfisema pulmonar do mundo. É também uma região portuária que liga a China com a África, local de onde saem milhares de armas (sobretudo pistolas) fabricadas aqui para armar as milícias do continente vizinho, por isso, uma pequena população africana se instalou em um bairro da cidade, chamado de … chocolate city.
“Amigo plice for you!”
De tudo que fizemos ou vimos, é claro o que mais se destaca: a voracidade e disposição ao consumo. Os brasileiros ao desembarcar nas atrações turísticas devotam 30% do tempo a tirar fotos randômicas de “lugares bonitinhos” e 70% a escarafunchar as gift shops. As atrações prediletas dos brasileiros em Xangai, ao invés de um passeio de bicicleta no Century Park, da tradicional cerimônia do chá ou do escondido museu de pôsteres comunistas no porão de um prédio na concessão francesa são o Fake Market (o nome dispensa explicações, é isso mesmo) ou a Nanjing Lu (um calçadão de 2,5 km rodeados de lojas e dezenas de andares de shoppings na vertical). Ao final de todos os dias, os estudantes peregrinam pelos corredores do hotel em que estamos instalados exibindo seus troféus: um “Ray Ban” por 10 yuans (R$ 2,70), um “Rolex” por 20 yuans (R$ 5,40) ou um Playstation 3 por 5.400 Yuans (R$ 1.460,00).
Apesar de eu estar atrás de umas 18 “lembrancinhas” para levar, ainda não a arranjei a paciência necessária e nem vi nada que valesse a pena de fato. Não existe transação comercial com turista que leve menos de 5 minutos…um simples “quanto é?” desencadeia uma espiral de ofertas, contra-ofertas e beliscões que requer um aquecimento olímpico! As frases mais típicas são: “You killing me with this plice my fliend!”, “I have no plofit!”, “Amigo plice for you! You good fliend!”, “How much you pay? Give me your plice!”. Aos desavisados: plice = price = preço … mas pronuncia-se “plais”.
Comprei até agora uma bermuda e uns cacarecos, nesse vai volta baixei o preço de 360 yuans (R$ 97,20) para 50 yuans (R$13,50) pela bermuda da “Abecrombier & Fetch”. Com guarda-chuvas por US$ 1,70, 5 miniaturas dos guerreiros de terracota por US$ 0,80, pen-drives de “500 Gb” por US$ 5,00 o que impera é a cultura do descartável…e dá-lhe lixo, afluência, recursos…se chega pro consumidor final por esse preço, não imagino com quantas migalhas o trabalhador ficou.
No começo da viagem achei que este comportamento era normal dos brasileiros, um pouco deslumbrados com os preços das “réplicas” – não se engane, tem muito produto bom, o preço é bem caro – mas confirmo todo dia como o chinês valoriza a ostentação.
Não raro eles perguntam a você, sem rodeios: “How much money do you make?”; “How much money you have in your bank account?”; “How much you paid for these shoes you are wearing?”. Aqui é normal, nada indiscreto. Em Xi’an fui a um bar, ao cumprimentar um chinês ouvi logo depois do “nice to meet you” um “eu tenho uma empresa na Califórnia, ela fatura mais de 700 mil dólares por mês lá!”…e eu com isso?
É uma forma de se destacar em meio a 2,6 bilhões de olhos puxados. Uma amiga brasileira que mora em Xangai disse que a ostentação é valorizadíssima! Ela mora um apartamento no centro da cidade, 130 metros quadrados, aluguel equivalente a R$ 6.800,00/mês (a empresa paga pra ela), me disse que na garagem só tem Maserati, Porsche e Mercedez mas que os donos destes carros vão todo dia tomar banho na academia de ginástica para não ter que pagar pela água …
Pro almoço: banha frita com gordura à milanesa…
De todos os eufemismos que as vendedoras de roupa usam para falar que você é gordo, o meu predileto é “fortinho”. As roupas que antes dançavam no meu corpo já estão bem ajustadas à nova geometria. Passados quase 20 dias, prefiro acreditar que estou mais “forte”. Não tem pra onde correr, em geral, a opção mais saudável de janta é um cup noodles, um baldinho de miojo. No restaurante da faculdade – considerado “estilo ocidental” por servir a comida em um Buffet, ter pão de forma e batata frita – absolutamente TUDO é frito ou mergulhado no óleo. As raras vezes em que serviram uma salada crua (duas para ser mais preciso), ela brilhava. Ví em um programa culinária que o brilho do óleo é considerado um sinal de frescor… haja chá pra limpar tudo isso …
“Important? No…controversial…”
Como trabalho final do curso, temos que apresentar algo em 10 minutos. É assim amplo. Três chineses, três brasileiros se virando nos 10 minutos. Se tiver alguma relação com o curso tanto melhor; se não, paciência…
Como proposta de trabalho do meu grupo, sugeri aos chineses que estudássemos casos, na China e no Brasil, de populações que sofreram algum tipo de violação de seus direitos básicos como conseqüência da pressão pelo uso e extração de recursos naturais. Não foi muito bem aceita, abaixo transcrevo um trecho de nossa conversa:
Chinês : Essa questão envolve um assunto que gera muita pressão ao país, sobretudo dos Estados Unidos…
Allan: Sei…direitos humanos, não?
Chinês: Isso…essa questão é muito…err…
Allan: Importante?
Chinês: Não! Controversa…
No final, vamos analisar os subprodutos negativos dos modelos de crescimento chinês e brasileiro. Mais paciência…
“I believe in science…and dogs!”
Sedentos por um vislumbre da ancestral cultura chinesa ou algumas palavras de sabedoria, vários brasileiros se mostraram interessados em conhecer a religião dos chineses da nossa sala. Não acho que as respostas satisfizeram seus anseios, mas a vejo como um forte indicador da nova China e da sua plasticidade.
Ao perguntar para um companheiro em que ele acreditava, eis a resposta “I believe in science…and dogs!”. Ele explica: seus avôs, em alguma ocasião de guerra, foram salvos por um cachorro. Ele não sabe bem como, mas só sabe foi assim – ê chicó!! Como sinal de gratidão, a família dele não come cachorros (não é comum na China, mas ainda tem gente que come) e sempre que pode, alimenta-os. Já a ciência … essa sim é a nova religião. Pelos alunos chineses, a nova geração, a natureza parece ser é um obstáculo a ser superado … nenhum chinês mostrou espanto com a pergunta de um colega asiático durante uma aula sobre a expansão do cultivo de soja do cerrado:
“Professor, agora que podemos coletar e guardar células animais em laboratórios especializados e cloná-los futuramente caso seja necessário, o que você acha a respeito do fato de o desenvolvimento humano ser atrasado pelo ambientalismo?”.
A tradução é fuleira por que a enunciação da pergunta em inglês também foi.
Não é difícil perceber a influência do governo na educação. Segundo uma amiga chinesa, o governo dá especial prioridade, no ensino médio, para o ensino do confucionismo. Entre outras reflexões, Confúcio pregava o imperativo de ser um bom filho. A mãe e o pai presenteiam a criança com a vida e por isso merecem obediência irrestrita, eles são os mais sábios (pela vivência) e os maiores interessados no bem estar do filho. A noção de hierarquia pai/chefe, filho/aprendiz é fortíssima e se reflete em todas as relações … o governo, segundo minha amiga, é encarado como uma extensão da sua família. Por mais que você discorde, que seja doloroso, que não faça sentido para você, ele é o sábio que tem o interesse de zelar pelo seu bem estar. Ir contra o governo é como levantar a mão aos seus pais. Se ele errar, paciência! Todo mundo erra, mesmo que o “erro” do governo seja uma execução de “incorrigíveis rebeldes”.
Quando o assunto é meio ambiente, só se ouve falar em eco-eficiência, ou seja, a minimização dos impactos pelo uso de tecnologia, em geral, mais eficientes no uso de recursos. Na famigerada equação do I = (P) (A) / T, interessa em primeiro lugar o “T” e depois o “P”, o “A” não é sequer mencionado…(aos não familiarizados com o conceito, dê uma olhada aqui: http://en.wikipedia.org/wiki/I_PAT). A afluência não importa, por esta variável ser considerada em escala “per capita”, os 650 milhões de chineses que ainda vivem no meio rural quebram o galho dos perdulários de Xangai, Pequim, Guangzhou, Shenzen, Dongguan … mas isso logo acaba. Xangai tem crescido cerca de 20% ao ano nos últimos 10 anos.
A tecnologia é a toda-poderosa redentora, exemplo disso é Dongtan (http://pt.wikipedia.org/wiki/Dongtan). Dongtan é uma cidade que está sendo construída na ilha de Chongming (não é Chongquin, aquela cidade que comentei lá em cima!) planejada para ser a primeira eco-cidade 100% sustentável do mundo. Para um governo autoritário que não enxerga a dimensão social da sustentabilidade, expulsar milhares de residentes de sua terra natal para construir um paraíso ecológico destinado a 20.000 milionários chineses é um modelo plenamente aceitável. Dongtan fica a 25 km de Xangai, não entendo por que ao invés de visitar a ilha pegamos um avião para ver os guerreiros de terracota…
O controle populacional é uma engenharia precisa, resultado da combinação: engenheiros + Excel. Já ouvi umas 4 vezes a frase “e assim conseguimos evitar o nascimento de 400 milhões de chineses” ser orgulhosamente pronunciada. Tinha alguma esperança de ver o taoísmo chinês aplicado ao desenvolvimento. Essa corrente filosófica valoriza profundamente a espontaneidade e a relação harmônica do homem com a natureza. Um dos princípios do Tao é o da unidade, que diz: ao perceber que todas as coisas (inclusive nós mesmos) são interdependentes e constantemente redefinidas pela mudança das circunstâncias, passamos a ver todas as coisas como elas são, e a nós mesmos como apenas uma parte do momento presente. Pelo estudo da natureza da vida, você pode influenciar o mundo do modo mais fácil e menos disruptivo (usando a sutileza em vez da força).
Xangai tem registrado nas últimas semanas novos recordes pluviométricos, um calor insuportável, além do tufão Marakot que acabou de chegar aqui vindo de Taiwan … não dá pra deduzir nada disso aí?
De perto, bem de pertinho…todos queremos as mesmas coisas…
“Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de idéias ou de sentimentos, quando nós também somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais ricos fenômenos da Terra.”
Machado de Assis, em “Quincas Borba”
Os fins de semana estão reservados para excursões em grupo. Já fomos para Suzhou, Wuzhen, Xi’an e arredores, hoje a tarde vamos de trem para Pequim. Turismo no atacado. Acorda, *entra no ônibus, guia dá explicações em chinglish, sai do ônibus, tira foto – leia a partir do * mais quatro vezes, depois continue – entra no ônibus, desce do ônibus, janta, entra no ônibus, sai do ônibus no hotel. Quatro ou cinco atrações no dia. Tudo é sempre muito cheio de gente, de placa, de informação, de loja, de luz, de línguas estranhas, de coloridos …
Cansado dessa brincadeira de visitar os lugares a 300km/h, na Wild Goose Pagoda, em Xi’an, desisti de ver a oitava pagoda da semana e saí do grupo, fui para um parque perto do local, sentei embaixo de uma espécie de coreto com arquitetura chinesa e fiquei olhando as pessoas, durante duas horas … um casal com uma filha pequena comendo biscoitos, um casal de idosos, mãos dadas, alguns jovens, risadas, transeuntes, mochilas, sol batendo … tudo muito normal. Em uma das 54 horas dispensadas na janela do ônibus, não pude deixar de notar a semelhança de alguns lugares que passamos com a Índia, Turquia, França, São Paulo … pessoas, casas, lojas, vendedores, policias … diferenças são detalhes … tudo normal, esperado …
Não sei o que é a China, sei apenas da China que vou levar. Fico lembrando as aulas na filosofia, as primeiras discussões sobre epistemologia … O que é conhecer? O que é preciso acontecer para que se possa afirmar “isso eu conheço”?
Não dá pra escapar da expectativa pré-viagem de deparar-se com o desconhecido, com um desconhecido abstrato que promova insights inusitados ou epifanias redentoras … mas Fernando Pessoa, através de Álvaro de Campos, ao falar da morte no poema Se te queres matar, já decreta esta impossibilidade “Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, / Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?”.
Boa pergunta…
“- Radiguet não é nem a sombra do que foi. Perdeu aquele ar doentio que lhe ia tão bem. Você se lembra que nós alimentávamos uma esperançazinha de que ele estivesse fraco do peito, acabasse um poeta descabelado e desmilinguido? Qual o quê! Perdi meu futuro cliente: está forte, saudável, professor, vive estudando filosofia, filologia, psicologia, tudo para acabar descobrindo um dia que a vida é isso mesmo.”
Fernando Sabino, em “Encontro Marcado”
A vida é isso mesmo.
Allan
PS 1: Outra razão para demorar a escrever é a certeza de uma inescapável frustração ao terminar de escrever o e-mail, seguro de que não passei nem um centésimo do que dá pra tirar nesses dias por aqui. Paciência…
PS 2: Escrevi parte deste e-mail antes da penúltima aula do curso, o título é “Environment and Health”, ministrada pelo professor Yuan Tao. Segundo o professor a definição de saúde é: “Health is a state of complete physical, mental, social and spiritual well-being and not merely the absence of disease or infirmity. It also comprehends the ability to lead a social and economically productive life”. Segundo ele “if you are a good person but don’t contribute to the society…are you healthy? Of course not!” – olha o dedinho do partidão aí de novo…
Sou o único brasileiro na sala. Apesar do meu chinês de 25 de março, consegui entender o professor comentando “cadê os brasileiros? Só tem chinês aqui?”. Aos poucos alguns outros alunos vão chegando, mas pega muito mal pra gente … o professor, ciente do descaso da sala com a matéria, tentou forçar em speed mode lançando, com um sorriso irônico, em todos os slides “vocês estão interessados no mecanismo da bio-membrana ou posso pular? Ótimo, vamos pular essa parte…”.