Dos Estados Unidos à Nova Zelândia, pequenas iniciativas afinadas com a consciência global dão grandes resultados em seus círculos
Por Tatiana Achcar
Aos 31 anos, decidi me presentear com um ano sabático pelo mundo. Era maio de 2008 e a crise financeira mundial estava se aquecendo, até explodir em setembro. Mas, na cabeça desta viajante, isso não afetaria a jornada em busca de novas experiências (e um batalhão de respostas). O que vi no período em que morei na Costa Oeste dos Estados Unidos e na Nova Zelândia foi uma porção de gente inventando soluções próprias e criativas para atravessar um período de incertezas e dificuldades.
Algumas das histórias aqui relatadas não têm a pretensão ou a ingênua intenção de “salvar o mundo”, ao contrário, podem ser um laboratório de experiências ligadas ao contexto local e têm causado impacto positivo nos pequenos círculos em que se dão. Sob esse olhar, é possível afirmar que são grandes soluções.
O país mais motorizado e industrializado do mundo foi também o epicentro da crise. A instabilidade financeira e ambiental, o desconforto com guerras por petróleo e os grandes congestionamentos fizeram com que habitantes de cidades metropolitanas, como San Francisco e Nova York, deixassem o carro na garagem para usar a boa e velha bicicleta, um transporte limpo, barato, saudável e que promove a sociabilidade. De fato, a cultura da bicicleta tem crescido no país, principalmente entre os jovens, que amadurecem num momento em que um novo american way of life emerge. Festivais, conferências, filmes, grupos de música, lojas, oficinas mecânicas e ativismo em torno da “magrela” pipocam por lá.
San Francisco, na Califórnia, é a meca dos bike messengers, entregadores de produtos e documentos que circulam por toda a cidade com rapidez e destreza sobre duas rodas, driblam o congestionamento, ganham grana e incentivam outros jovens a adotar esse trabalho como estilo de vida. Isso desde 1945, quando surgiu a primeira prestadora desse tipo de serviço. Lá, há mais procura do que vagas. Os bike messengers formam uma categoria profissional, uns com contratos autônomos e comissões sobre entregas feitas, outros com registro e benefícios trabalhistas.
Seja um bike messenger, seja um ciclista de fim de semana, em alguma hora é preciso encostar a bicicleta para um ajuste, um conserto, um up no visual. Na terra do faça-você-mesmo, encontrei oficinas que ensinam você a sujar as mãos com a sua magrela.
A The Bike Kitchen, eleita a melhor oficina de San Francisco, oferece ferramentas para consertar pneu furado, regular o freio, ajustar as marchas, aprender a altura certa do selim. E seguem a cartilha da conservação: exceto cabos de freio e câmaras de pneu, nada é vendido na Bike Kitchen, e todas as peças são sobras em bom estado doadas por grandes lojas de bicicletas – e que certamente seriam descartadas na sociedade superconsumista americana. Os produtos usados para remover a graxa não contêm substâncias químicas: são feitos à base de casca de laranja. A oficina é uma cooperativa mantida por gente apaixonada por bicicletas que sabe que, para aumentar a quantidade de ciclistas nas ruas, é preciso espalhar o conhecimento sobre as magrelas.
É impressionante a quantidade e a diversidade de cooperativas na Califórnia, no Oregon e nas cidades grandes neozelandesas, como Auckland e Wellington. Por lá, o conceito vai além da organização profissional autônoma. As cooperativas são comunidades de pessoas que querem se juntar em torno de objetivos comuns, e a sustentabilidade financeira é apenas um deles. Têm como missão criar ambientes democráticos de trabalho, e adotam práticas que realmente fazem sentido para quem trabalha lá.
É recorrente o cuidado ambiental na operação do negócio – organização do lixo, uso de produtos de limpeza “verdes”, prioridade para iluminação e ventilação natural -, afinal, os “donos” estão lá todos os dias e, por isso, dão importância à própria saúde e à do planeta. Eles fazem de tudo, desde limpar os banheiros até assinar cheques de pagamento. Como é um negócio que não precisa remunerar investidores e os custos não são altos, sobra dinheiro para oferecer salários melhores, e preços mais convidativos ao consumidor. E ainda fortalecem a economia local e os laços sociais entre a comunidade e os cooperados, que muitas vezes preferem morar na região.
Uma cooperativa chamou a atenção: o supermercado Rainbow, Grocery Coop, em San Francisco, onde passei tardes inteiras me familiarizando com a imensa variedade de produtos, observando como os “sócios” se organizavam durante o trabalho e como atendiam os clientes. Encontrei ampla variedade de produtos a granel, com o melhor preço da cidade: cereais de todos os tipos, ervas e chás, massas, achocolatados, snacks, 30 tipos diferentes de farinha, grãos que vão do básico arroz integral ao andino amaranto, óleos, frutas secas, molhos, cafés fair trade, produtos de limpeza, cosméticos. Quase tudo orgânico e manufaturado localmente por produtores independentes!
Toda vez que o consumidor traz embalagens de casa, recebe crédito de 5 centavos de dólar em troca de cada uma, por não usar recipientes novos e reutilizar os que já tem.
Cultivar alimento e comunidade
Foi curioso ver pessoas se agregando em comunidades, de forma voluntária e autônoma, em um ambiente que historicamente favorece o individualismo: a grande cidade. Em geral, hortas comunitárias e fazendas urbanas surgem da necessidade de se fazer uso das áreas públicas e privadas ociosas de forma mais construtiva e perene, ao mesmo tempo que se buscam justiça social, recuperação ambiental e reeducação alimentar.
Esses espaços verdes reconfiguram as urbes – onde os ciclos e fluxos da natureza parecem que nunca existiram (e a gente acha que isso é normal) – e quebram a dicotomia de que o campo produz o alimento e a cidade apenas o consome e descarta. Uma visita a Alemany Farm, em San Francisco, quebrou, de fato, meus conceitos sobre o que é verde, o que é cinza.
Essa fazenda urbana nasceu em 1994 com o objetivo de melhorar as condições dos moradores de 165 habitações populares no bairro de Alemany, por meio do plantio e manutenção do espaço. Em sua origem, combinava treinamento profissional com educação para fazer da agricultura urbana uma via de oportunidades econômicas e educativas. O projeto de segurança alimentar resolveu o problema da má nutrição nas famílias, ao passo que tornou a comunidade mais unida e segura. Funciona na base do voluntariado e é referência em aprendizagem prática de horticultura e paisagismo.
A cidade de San Francisco possui cerca de 50 jardins comunitários e em cada um se desenvolve um projeto coerente com a realidade local – uns têm enfoque educativo, outros dão atenção à produção de mudas, à área recreativa infantil. Todos têm canteiros individuais e encontros comunitários. Cada jardineiro paga uma taxa anual de US$ 25 por seu pedacinho de terra, uso de ferramentas, adubo e água e compromete-se a mantê-lo produtivo. Cultiva-se o que bem desejar: hortaliças, flores, frutas, legumes, ervas medicinais, mel de abelhas.
Na Nova Zelândia, as hortas comunitárias são levadas mais ao pé da letra: os canteiros são de todos e as pessoas se encontram para trabalhar em conjunto. Alguns promovem feiras para vender o excedente, e os ganhos vão para a caixinha do jardim, para a compra de ferramentas, sementes etc.
Na época da Segunda Guerra Mundial, San Francisco contabilizava cerca de 70 mil jardins residenciais. O movimento ficou conhecido como Victory Gardens, jardins da vitória, uma alternativa em tempos de escassez. Esse apelo é atualíssimo. Um casal americano colocou na ponta do lápis quanto custa a horta que mantém no quintal. Em um ano, eles colheram 400 quilos de legumes e verduras (mais de um quilo por dia) e economizaram US$ 2 mil ao deixar de comprar os produtos nos mercados locais. A Associação Americana de Jardinagem estima que US$ 50 gastos em sementes podem render US$ 1.250 por ano.
É o que a educadora Penny Vos faz em Waiheke, na Ilha no Norte da Nova Zelândia. Em parceria com o marido, ela mantém um pequeno negócio de mudas de verduras em casa, a Love Earth Plants, que comercializa na feira local, aos sábados. Penny acredita que pode incentivar mais pessoas a cultivar hortaliças com mais sabor, melhorar a saúde física e mental e ajudar a reduzir a emissão de poluentes gerada no transporte de alimentos. E também está de olho nas notícias que indicam que esse tipo de negócio aumentou 40% no ano passado, com crescimento maior em sementes de vegetais que são básicos por lá, como pimentões, tomates e ervas, e podem ser cultivados em pequenos vasos dentro dos apartamentos.
Mas nem todo mundo está disposto a ficar nas cidades. Existe um movimento de jovens entre 18 e 35 anos para virarem fazendeiros. Carregam diplomas pós-universitários, geralmente são do sexo feminino, cresceram em grandes metrópoles, e de vez em quando trabalham como educadores, empreendedores sociais, yoguis, jornalistas, videomakers, ativistas. São apaixonados por suas causas, têm um espírito aventureiro, estão atentos ao movimento da sustentabilidade e empenhados na construção de comunidades.
Cara Saunders, uma mulher de 32 anos nascida em Chicago, mudou-se para o extremo norte da Califórnia para cultivar ervas. Ela mora no meio das montanhas nevadas na companhia do namorado, de 20 galinhas, duas cachorras e nenhum fio de energia elétrica. É nesse lugar de ar puríssimo e beleza formidável que Cara planta, de modo sustentável, todas as ervas medicinais com que faz, artesanalmente, tinturas e pomadas, usando como base cera de abelha, óleo de oliva e álcool de uva orgânicos. A energia do laboratório é solar e todo o processo de maceração das ervas, manual.
A Bear Wallow Herbs tem cinco anos e há pouco tempo a receita com a empresa superou os custos com as despesas domésticas. O produto mais vendido é o kit de primeiros socorros, com sete medicamentos para os mais diversos tipos de enfermidades.
Cara trabalha meio período no correio do lugarejo – o único estabelecimento comercial da localidade. É de lá que mantém suas vendas pela internet e despacha encomendas mundo afora. Também participa de feiras e festivais na região – que se estende desde a cidade de Portland até San Francisco -, onde vende seus produtos, divulga o negócio, faz contatos, revê amigos, curte um show, vai às compras e fica com saudades de casa.
E, por falar em saudade, regressei a São Paulo. Depois de ver como pessoas em algumas partes do mundo estão se organizando para transformar o lugar onde vivem, é inevitável o choque ao encarar uma megalópole tão carente de soluções desse tipo. Mas é desse encontro de diferentes que nasce uma nova percepção de quem sou e do que posso fazer pelo lugar que chamo de casa.