“A Defesa Civil ideal é a que está diluída na cultura, no pensar e no fazer de um povo”, afirma Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Economista de formação e com doutorado em Ciências Sociais. Norma aborda nesta entrevista (concedida por email) o papel da Defesa Civil em um cenário de maior vulnerabilidade urbana diante dos extremos climáticos e questiona o desempenho da instituição, historicamente ligado ao setor militar, em uma sociedade hoje democrática e polifônica.
Diante da maior vulnerabilidade das populações urbanas diante de cenários climáticos extremos, podemos dizer que cresce a atenção de setores militares a esse tema (até então circunscrito aos ambientalistas e cientistas), voltada à segurança nacional? Minha impressão é que sim. E por variadas razões, dentre as quais a que, muito amiúde, no contexto de desastres relacionados aos fenômenos atmosféricos, a presença das Forças Armadas têm sido solicitada para ações de resposta (resgate e reabilitação), o que incita a instituição a refletir acerca de qual papel que lhe caberá se porventura tais eventos se asseverarem. Ou, dito mais claramente, refletir em torno da oportunidade e legitimidade de reivindicar para si uma maior abrangência de suas competências institucionais no âmbito de defesa civil, passando não apenas a atender – com prontidão e presteza, como tem feito –, mas a comandar o Sistema Nacional de Defesa Civil (hoje sob o guarda-chuva do Ministério da Integração Nacional). É lícito que a instituição possa elocubrar em torno do tema, sobretudo se remontarmos, por um lado, às origens da instituição no País, vinculada à Aeronáutica no contexto da Segunda Grande Guerra e, de outro lado, o Exército Brasileiro, responsável pela criação de parte significativa do arcabouço conceitual que deu bases relativamente homogêneas de capacitação e treinamento, bem como para a política nacional de defesa civil. Entretanto, se a situação de vulnerabilidade no Brasil é, de fato, grave e preocupante, passível de engendrar a atualização do discurso de segurança nacional, isso se deve a um modelo de desenvolvimento equivocado e que foi escopo não só, mas também, da atuação de forças militares, que impuseram-no com braço forte, protegendo setores da indústria e do agronegócio que destruíram e devastaram recursos naturais na cidade e no campo – do ar à água, passando pelas florestas – e expulsou brasileiros pobres para as bordas desassistidas do território. Pautados num ambiente democrático, que não é uma dádiva, é uma conquista, temos que abrir o Sistema Nacional de Defesa Civil (Sindec) para um amplo espectro de visões da realidade, de conhecimentos, de saberes, de práticas, um ambiente polifônico e de equidade da vocalização dos diversos pontos de vista.
Com a maior incidência de eventos extremos, espera-se que a Defesa Civil tenha sua atuação intensificada? Isso não é o desejável, mas é o que, provavelmente, ocorrerá. O que é um mau indicador do modelo de desenvolvimento que escolhemos e pusemos em prática, seja no mundo seja no Brasil. Alguns anos atrás, fiz a seguinte assertiva que torno a repetir: há dois cenários possíveis para a instituição de Defesa Civil. O cenário alternativo é aquele no qual a instituição deixará de existir devido ao grau de transversalidade atingido, pois as recomendações de ações preventivas estarão de tal modo internalizadas pelos diversos setores da sociedade e estes tão integrados uns nos outros, que a perspectiva de proteção coletiva se cumpre por si só. A Defesa Civil ideal é a que está diluída na cultura, no pensar e no fazer de um povo. A tendência, entretanto, é o seu justo oposto, ou seja, sinaliza para a ocorrência de uma setorialização fortalecida da Defesa Civil. Neste cenário, o aumento dos desastres poderá levar a busca de legitimação da demanda corporativa (e de confrontos de suas sub-corporações) visando e expansão das atribuições do Sindec, nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal). Será buscado o cumprimento da missão institucional, que começa pela coordenação de demais setores da vida civil e militar para a garantia ou restabelecimento do que o meio convencionou chamar de “cenário de normalidade”, mas não parará por aí. Como a normalidade dificilmente ou jamais retornará (se é que houve um dia, com base na universalização das diversas gerações de direitos), aflorarão os descontentamentos, as manifestações sociais e culminar-se-á crescentes desafios à ordem pública tal como atualmente estruturada. Num contexto assim, a história latinoamericana já demonstrou com qual facilidade se suprime o comando democrático do Executivo levando à implantação de um Estado de Exceção. É em razão deste cenário, só discutido às portas cerradas e para o qual, lamentavelmente, os cientista sociais no Brasil ainda não se detiveram, que as corporações militares e militarizadas estão em plena disputa pela controle institucional da Defesa Civil.
Quais as limitações que a Defesa Civil encontra, não só em termos orçamentários, mas em termos de entendimento e adequação a uma nova situação climática, com novas demandas da sociedade? Enquanto o senso comum considera que falta dinheiro para lidar com os fatores recorrentes de ameaça ou mesmo com a nova situação climática, deveríamos indagar quem, e por quais meios, acessa os recursos liberados e como utiliza os mesmos. No geral, recursos para órgãos de defesa civil não sofrem contingenciamento. E, para a reabilitação e reconstrução de um município com decretação de estado de calamidade pública, há possibilidades legais de prescindir de licitações para contratação de serviços ou aquisição de produtos por parte do ente público. Se há dinheiro disponível, o cerne da questão é saber se há vieses no seu acesso e uso. Por exemplo, verificar se há municípios ou estados da federação que são persistentes “clientes” de desastres junto ao governo federal, isto é, a cada estação de seca ou chuva, decretam a perda de condições de lidar com a situação e, numa política de balcão, solicitam aportes adicionais. Verificar se o recursos chegam em benefício do cidadão duramente afetado deveria ser um mote para a imprensa de cunho analítico e crítico. Verificar se há fornecedores em geral, e empreiteiras em particular, que ficam de olho nas contratações sem licitação, se tais negócios porventura seriam contemplados em ações de prevenção aos desastres, essas dependentes de licitação pública. Verificar se os municípios que, além do reconhecimento da decretação de estado de calamidade pública ou da situação de emergência, receberam prioridade no aporte adicionais de recursos são os que efetivamente sofreram maior afetação ou os que, por vinculações político-partidárias, de compadrio e afins, têm acesso favorecido aos gabinetes. A discussão pública e necessária, a meu ver, não é sobre as novas demandas sociais per si, mas como as demandas atuais são prenhes de iniqüidades distributivas e replicam, numa lógica sempre mais perversa, os obstáculos à afirmação dos direitos à territorialidade dos pobres no País.