Em 2009, não é só o prazo climático para agir que vai se esgotando. A necessidade de uma nova distribuição de papéis entre as nações torna a COP 15 decisiva
Ninguém sabe dizer ao certo que bicho mordeu os líderes do mundo naquele 1992. Talvez a maior reunião de chefes de Estado na história da humanidade – 117 no total – fosse suntuosa demais para passar em brancas nuvens. Talvez a primeira reunião das Nações Unidas com participação da sociedade civil, que atraiu mais de 20 mil ativistas ao Rio de Janeiro, tivesse criado um clima de pressão incontornável.
Sediada em um país até então “subdesenvolvido”, a Rio-92, ou Eco-92, teve tamanha importância para o Brasil que o presidente Fernando Collor de Mello transferiu temporariamente a capital federal para o Rio. Estava dada a perfeita e rara oportunidade para que o Terceiro Mundo colocasse os países ricos na berlinda, expondo ao escrutínio global os modos insustentáveis de produção e consumo.
(Veja abaixo uma linha do tempo com os avanços e tropeços das CoPs anteriores)
Certo é que a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC, na sigla em inglês) nasceu ali, a despeito da grande incerteza científica sobre o fenômeno e suas causas. Até então, o Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC), criado pelo ONU em 1988, tinha produzido um único relatório, em 1990. Grosso modo, dizia o seguinte: nas últimas décadas há um aumento de temperatura fora do normal que coincide com uma concentração de gases na atmosfera igualmente anormal. Temos 50% de certeza de que as atividades humanas são responsáveis por isso.
Tasso Azevedo, consultor do Ministério do Meio Ambiente sobre o tema, costuma qualificar a Convenção do Clima como “o ato mais ousado do multilateralismo internacional”. Passaram-se 17 anos e 14 Conferências do Clima (COP), reuniões em que as partes signatárias tentam cumprir o objetivo final da Convenção: estabilizar a concentração de gases de efeito estufa em um nível que previna alterações perigosas no sistema climático. (saiba como funcionam as COPs no infográfico à pág. 18) Em 2009, não é apenas a evolução da ciência que torna a 15ª COP, marcada para dezembro, em Copenhague, tão importante e decisiva.
De fato, a mudança do clima ganhou status de incontestável, os modelos econômico-climáticos ganharam precisão, os cenários sobre consequências socioambientais, idem. Por decorrência, sabemos hoje que o prazo-limite para uma ação efetiva se avizinha nos próximos 10 ou 15 anos. Como se não bastasse o relógio climático, a COP 15 é também a data marcada para decisões da maior importância, como novos mecanismos de mercado e um novo período de compromisso que garanta metas ambiciosas e reflita a multipolaridade do mundo. O problema – e a responsabilidade – já foi exclusivo do lado de cima da linha do Equador. Não é mais.
Por fim, as escolhas que a COP 15 representa não se colocam somente em termos de um mundo mais ou menos caótico para o futuro, como podem, da mesma forma, contribuir para arrefecer ou agravar a enorme desigualdade entre as nações. Das duas uma.
Primeiros passos
O criticado Protocolo de Kyoto começou a nascer na primeira COP, em Berlim, em 1995. Ratificado dois anos depois, o mecanismo impunha metas muito aquém das necessidades: 5,2% de redução de emissões, na somatória, para o bloco industrializado. Até hoje, as emissões globais só fizeram aumentar.
O astrofísico Luiz Gylvan Meira Filho, membro do IPCC, foi um dos negociadores de Kyoto. Ele explica que as metas nacionais foram estabelecidas conforme o impacto considerado aceitável na economia de cada país. “Também é verdade que havia uma pergunta no ar: ‘Vocês já detectaram a mudança de clima?’ E a resposta na época era: ‘Ainda não’. E isso foi usado politicamente para dizer ‘não vamos fazer nada para evitá-la’.”
Mas o Protocolo foi extremamente importante, lembra Meira, por apresentar ao mundo o primeiro mecanismo de mercado capaz de reduzir os custos da mitigação. Entretanto, seu principal instrumento, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), é focado em projetos pontuais de redução das emissões e cercado de regras improdutivas.
Como resultado, o MDL só foi capaz de evitar menos de 1% das emissões globais anuais, desde que foi implementado.
Em Copenhague, serão colocadas novas oportunidades de geração e comercialização de créditos de carbono, como as Ações Nacionais Apropriadas de Mitigação (Namas, na sigla em inglês). Diferentemente do MDL, trata-se de ações em escala nacional voltadas para reduzir as emissões de um determinado setor. O Redd (vide glossário) é uma espécie de Namas.
As novidades vão ao encontro da principal missão da COP 15: estabelecer as regras de um novo compromisso após 2012, quando expira o primeiro período de Kyoto, que inclua além de metas mais robustas, uma gama maior de países. É um cenário completamente diferente daquele de 1997. E a miríade de evidências para esse novo desafio confluiu num curto espaço de tempo, dez anos depois.
2007, o ano que não acabou
Talvez o mundo nunca tivesse ouvido falar tanto em mudança climática como em 2007. O impacto começou com um dos primeiros estudos realizados não por um cientista, mas pelo ex-economista chefe do Banco Mundial Sir Nicholas Stern. O Relatório Stern, divulgado pelo governo britânico no final de 2006, revelava o tamanho da encrenca nos termos que os chefes de Estado compreendem bem: agir imediatamente para prevenir a mudança do clima custaria cerca de 1% do PIB mundial. Não agir significaria comprometer 20% do mesmo PIB ao final de 50 anos.
Ainda sob a ressaca de eventos meteorológicos extremos, como o Furacão Katrina, que ofereciam um vislumbre do que seria um mundo com clima desregulado, seguiu-se a campanha de Al Gore materializada no filme Uma Verdade Inconveniente. Mas foi o quarto relatório do IPCC que consolidou um senso de urgência até então inédito.
Pela primeira vez, a maior autoridade científica no assunto classificava a mudança do clima como “inequívoca”. A causa antrópica era apontada com mais de 90% de probabilidade. E com modelos e cenários mais sofisticados, o IPCC foi capaz de estabelecer correlações seguras entre a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera e o aumento da temperatura.
Foi então que se convencionou o alvo de 2 graus até o final do século, em relação ao período pré-industrial, como o limite máximo de aumento da temperatura do planeta para evitar impactos mais catastróficos. Todos os cenários do IPCC apontavam 385 ppm (partes por milhão) como o teto para atingir esse objetivo com 100% de segurança. O problema: já atingimos esse teto. E com um tempo de permanência na atmosfera que varia de 1,5 a milhares de anos – dependendo do gás – é quase impossível retroceder.
Um alvo mais realista passou a ser então o cenário médio: estabilizar a concentração dos gases de efeito estufa em 450 ppm. Mas isso representa apenas 50% de probabilidade de não ultrapassar 2 graus. “Eu não gostaria de entrar num avião com 50% de chance de cair. Mas é isso que estamos fazendo”, diz Rubens Born, da ONG Vitae Civilis, um veterano com 11 COPs no currículo.
Talvez o mais importante elemento introduzido pelo IPCC seja o orçamento de carbono: 1.800 Gt (1 gigatonelada = 1 bilhão de toneladas) é o máximo que podemos emitir até o final do século para estabilizar o aumento da temperatura em 2 graus. A má notícia é que nesta primeira década já emitimos 450 Gt. Se o mundo continuar com o business as usual, nos primeiros anos da década de 30 já não será possível evitar os piores cenários do IPCC. E todas as projeções indicam que é preciso emitir menos de 10 Gt por ano na segunda metade do século.
Em suma, não há resposta razoável à crise climática que não seja dramática e imediata. “Tudo indica que a transição para uma economia de baixo carbono, que começou lá nos anos 70 por uma questão de segurança energética, vai continuar independentemente da COP. Mas esse processo seria extremamente acelerado se houvesse um acordo, aí começam os incentivos. Muitos países que nem começaram vão começar”, diz José Eli da Veiga, professor da FEA-USP e especialista em ecodesenvolvimento.
A maior diferença entre a década de 90 e os dias de hoje é a distribuição das emissões entre o mundo desenvolvido e o em desenvolvimento. À época de Kyoto, os países ricos eram responsáveis por 80% das emissões globais anuais. Hoje, essa conta fecha em pouco mais de 40%. O jogo se inverteu, em decorrência das sucessivas crises que se abateram sobre o Primeiro Mundo e da arrancada econômica dos emergentes, como Brasil e China.
De olho nesse quadro, a COP 13 (em 2007, em Bali) plantou a semente para um novo acordo global por meio do Mapa do Caminho de Bali. Um dos documentos do mapa, o Plano de Ação de Bali (PAB) fala no enfrentamento da crise climática a partir de “uma visão compartilhada” por todos os países, pautada na mitigação, adaptação e transferência de tecnologia e recursos dos mais ricos para os mais pobres. Além disso, o acordo urge os países em desenvolvimento a iniciar ações “verificáveis, mensuráveis e reportáveis”, ainda que voluntárias. O prazo para colocar o plano em prática é a COP 15.
O Mapa do Caminho estabeleceu dois trilhos de negociação. Um diz respeito às metas de redução nas emissões dos países do Anexo 1 (desenvolvidos) no segundo período de compromissos do Protocolo de Kyoto (2013-2020). O outro trata de compromissos mais amplos no âmbito da Convenção, uma estratégia para incluir os partícipes que faltavam: os EUA e os emergentes.
A atual administração americana também é uma guinada relevante, embora o presidente Obama ainda não tenha conseguido aprovar a legislação para reduzir as emissões domésticas. Em recente discurso no Massachusetts Institute of Technology (MIT), disse: “As nações em toda parte estão na corrida para desenvolver novas formas de produzir e usar energia. Quem ganhar a competição será a nação que vai liderar o mundo. Eu quero que a América seja essa nação”.
Se há uma corrida, ela pode muito bem ser desleal, lembra Aron Belinky, coordenador da campanha TicTacTicTac no Brasil: “A gente já tomou o nosso caminho nessa encruzilhada (econômica). Mas não aprofundar o quadro regulatório equivale a aumentar a disparidade no mundo. Países desenvolvidos, com metas e capacidade científica, largam na frente, enquanto os ‘em desenvolvimento’ ficam sem recursos para fazer o mesmo”.
A campanha nasceu também em 2007, diante da insatisfação das ONGs com a morosidade das negociações, mas ganhou vulto neste ano. A TicTac, uma referência ao tempo que vai se esgotando, reúne sob uma única bandeira o sentimento de milhares de organizações e milhões de indivíduos em todo o mundo, como resume Belinky: “Seja boa, seja ruim, urgente é tomar uma decisão”.
———————————————————————————————————————————————Natureza sem fôlego
Sumidouros de carbono perdem força, agravando a mudança do clima
Um novo estudo produzido pelo Departamento de Energia e Mudança Climática do governo britânico aponta que o temido cenário de 4 graus de aumento de temperatura pode chegar antes mesmo do final do século (entre 2060 e 2070). O estudo acrescenta aos cenários do IPCC a variável de perda dos sumidouros naturais de carbono, como florestas e oceanos, devido ao desmatamento e à poluição.
Outro relatório, da ONU, chamado Carbono Azul, estima que ecossistemas marinhos absorvem o equivalente à metade das emissões globais de transporte. Mas essa capacidade de resposta natural está sendo perdida à taxa de 7% ao ano.