A um mês de Copenhague, País ainda expõe contradições e desarticulação entre as áreas do governo
O caminho da delegação brasileira rumo à COP 15 é cheio de curvas perigosas, em que impasses técnicos e políticos precisam de soluções urgentes. A ausência de uma posição brasileira clara às vésperas do encontro expõe contradições e desarticulação entre áreas de governo. Com isso, o Brasil vive uma situação paradoxal: possui relativo conforto no âmbito internacional – pois conquistou respeito e certo protagonismo desde a aprovação, na Rio-92, da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima -, ao mesmo tempo que enfrenta dificuldades para incorporar a variável ambiental como política de governo.
Vale lembrar que, apenas 17 anos depois de assinar a Convenção, o País ganhou seu Plano Nacional de Mudanças Climáticas e, até agora, não possui uma política para essa área. De acordo com a coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Universidade de Campinas, Leila Ferreira da Costa, estudiosa da evolução do Brasil na implementação das políticas ambientais, houve avanços dentro do governo, porém muito tímidos. “O governo trabalhou na institucionalização da agenda climática para além do Ministério do Meio Ambiente, mas ainda há cisão entre áreas estratégicas, como agricultura e energia. Bom exemplo é ver 13 ministérios envolvidos com o Plano Nacional de Combate ao Desmatamento, mas cujos resultados esbarram no campo político.”
O coordenador do programa de clima do Greenpeace, João Talocchi, avalia que o governo ainda não encontrou a solução para lidar com tantos interesses diferentes nem possui criatividade para encontrar o caminho rumo à economia de baixo carbono. “Falta articulação interna para conciliar tantas contradições e, por isso, encontramos disparidades, como planos de energia que preveem ampliação de termoelétricas, ministros que querem abrir estradas no meio da Floresta Amazônica e os que pedem o avanço da fronteira agrícola. Sem falar na flexibilização da legislação ambiental para o uso da terra na Amazônia.”
Além disso, na contramão de uma economia de baixo carbono, o Brasil festeja a descoberta das reservas de petróleo na camada pré-sal. “Esta seria a melhor manchete da metade do século passado”, afirma Carlos Rittl, coordenador de clima e energia do WWF Brasil. Segundo ele, o governo precisa olhar para o futuro e investir desde já em energia limpa. “Até começar a extração de petróleo dessas reservas, por volta de 2020, o mundo deverá ser outro, com muitas restrições aos combustíveis fósseis”, diz.
A desarticulação que gera o imbróglio do governo na agenda climática envolve principalmente os ministérios do Meio Ambiente (MMA), da Ciência e Tecnologia (MCT) e das Relações Exteriores (MRE), que formam o chamado “G3”. No caso da redução de gases de efeito estufa, a ala desenvolvimentista, hegemônica, defende que o País não deve ter meta específica para esse fim. Isso porque o corte de 80% do desmatamento na Floresta Amazônica até 2020 já responde de certa forma à pressão dos Estados Unidos e de alguns países europeus para que nações em desenvolvimento também assumam esforços de mitigação.
Nesse embate, o MMA defendeu sozinho a diminuição de até 40% nas emissões brasileiras em relação ao cenário projetado para 2020. Tasso Azevedo, consultor do MMA e integrante da equipe que elaborou a proposta, explica que o objetivo é o Brasil chegar a 2020 ao menos no patamar de 2005, quando foram emitidos 2,2 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Para isso, o cenário projetado levou em conta a taxa de crescimento anual de 4% no PIB, com base no Plano Nacional de Energia 2030.
Nesse embate, o MMA defendeu sozinho a diminuição de até 40% nas emissões brasileiras em relação ao cenário projetado para 2020. Tasso Azevedo, consultor do MMA e integrante da equipe que elaborou a proposta, explica que o objetivo é o Brasil chegar a 2020 ao menos no patamar de 2005, quando foram emitidos 2,2 bilhões de toneladas de CO2 equivalente. Para isso, o cenário projetado levou em conta a taxa de crescimento anual de 4% no PIB, com base no Plano Nacional de Energia 2030.
Outro ponto a ser fortalecido na posição brasileira, avalia Azevedo, é a defesa de um acordo climático que diminua as emissões globais a um nível que segure o aumento da temperatura do planeta abaixo dos 2 graus até 2100 em relação ao período pré-industrial. “Simplesmente concordar com esse número não basta. É preciso ter uma decisão política que planeje o crescimento levando em conta uma trajetória de emissões que inclua um teto para o orçamento de carbono”, diz.
O orçamento de carbono é a quantidade de emissões toleráveis ao longo de um período. Em nível mundial, o teto desse orçamento deveria ser de 1,8 trilhão de toneladas de CO2 durante o século. “O Brasil precisa avançar nesse ponto para de fato ser uma peça-chave, um líder nas negociações”, defende.
Faces técnica e política
O cientista político Sérgio Abranches coloca mais lenha na fogueira do debate sobre as divergências no governo. Segundo ele, é até difícil comentar a posição brasileira, uma vez que a considera tosca, atrasada e que atende meramente a aspirações político-ideológicas.
Ele entende que o governo trabalha em duas frentes: a técnica e a política. Na primeira, aumentou bastante o consenso e a afinidade entre MCT e MMA sobre a necessidade de metas de redução de emissões. “Já com o Itamaraty é mais complicado, porque as relações são mais hierarquizadas e com mais controle interno. Os diplomatas não têm autonomia para ter esse tipo de conversa que acontece normalmente no quadro técnico. No campo político, encontramos um impasse terrível”, avalia.
Quem tem mais poder é o Itamaraty, pois detém o monopólio da representação brasileira na Convenção e também exerce maior influência na formação da opinião do presidente da República, explica Abranches. Como o ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, faz parte da ala desenvolvimentista, o MMA fica isolado. “No jogo político, ao evitar o anúncio de uma meta de estabilização das emissões que transcende a meta do desmatamento, o MCT e o Itamaraty dão um veto estritamente ideológico, porque não querem que o Brasil fique subordinado aos outros países que cobram metas das nações em desenvolvimento”, complementa.
Diplomaticamente, a coordenadora da área de clima e sustentabilidade da Secretaria de Mudanças Climáticas do MMA, Andrea Santos, evita comentar as divergências no “G3”. Diz apenas que as equipes técnicas das três pastas operam em sintonia. “Nosso trabalho caminha muito bem e está em fase de ajustes”, diz. Segundo ela, o que acontece entre os ministros são debates políticos, comentados apenas pelo alto escalão.
Contudo, fontes que estiveram em reunião no dia 14 de outubro na Presidência da República, e preferem não se identificar, relatam que parte do sucesso das negociações se deu porque as pessoas que acompanharam os ministros eram técnicos e cientistas, e não a ala mais política. “Os números levados pelo MMA ao encontro foram respaldados pelo MCT. O pesquisador Carlos Nobre esteve lá e mostrou afinidade com o que foi apresentado.
O embaixador extraordinário do Brasil para a mudança do clima, Sérgio Serra, nega o clima de toma lá dá cá. Ele comenta, por exemplo, o recente episódio envolvendo o coordenadorgeral de Mudanças Globais de Clima do MCT, José Miguez, e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que discutiram sobre as estimativas de emissões feitas pelo MMA para subsidiar a proposta de meta de redução brasileira – uma vez que o novo inventário nacional não está pronto. Na ocasião, Miguez chegou a dizer que os dados do MMA não teriam nenhuma confiabilidade. “Esse debate ganhou uma importância que não merece. Não vejo motivo para tanta cobrança do inventário, pois temos o compromisso de entregá-lo à Convenção apenas no ano que vem”, rebate o embaixador.
Nessa discussão que assumiu contornos tão políticos, a ciência se ressente de ter ficado um tanto à margem. José Antônio Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), defende maior influência da Academia nas decisões. “Há muito tempo nós apontamos que o Brasil deveria ter metas de desmatamento e de redução de emissões, mas isso não era considerado. Boa parte dos países, o Reino Unido, por exemplo, tem cientistas em suas delegações oficiais. Infelizmente, não é o caso do Brasil”, critica. “Espero que os nossos negociadores considerem a ciência por trás das negociações, pois a Física não obedece às leis dos homens ou a protocolos e resoluções da COP.”
Idas e vindas
Mais um alvo de divergências diz respeito ao mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd). O Brasil defendia um fundo de cooperação para o financiamento de projetos, de forma que os países ricos destinem recursos aos países em desenvolvimento para que possam combater o desmatamento e estimular o uso sustentável das florestas. O governo brasileiro resistia em apoiar a inclusão do Redd no mercado compensatório de carbono, como acontece com o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Alegava que seria uma via muito barata de os países desenvolvidos atingirem suas metas, sem redução efetiva de emissões.
No entanto, às vésperas da COP 15, o governo brasileiro sinaliza que aceitará, em Copenhague, um mecanismo de mercado compensatório – fruto da pressão feita por governadores dos estados da Amazônia que apostam no mecanismo de Redd como motor para o desenvolvimento da região.
A postura interna do Brasil é alvo de atenção no cenário internacional. Para Manfred Nitsch, professor do Latein-Amerika Institut, da Universidade Livre de Berlim, e estudioso da questão econômica e ambiental na Amazônia, o governo brasileiro deve primeiramente assumir uma estratégia que resolva a questão fundiária na região. Os países não sentirão segurança de aplicar em um fundo para projetos de Redd se esses recursos correrem o sério risco de cair na mão de grileiros.
Para além do que possa acontecer em Copenhague, uma coisa é certa: a agenda climática tem de ser adotada como política de governo. Para isso, a coordenadora-adjunta do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp, Rachel Biderman, diz que é preciso um “comandante” desse esforço dentro do governo, com recursos e poder para demandar as informações necessárias e recrutar os atores relevantes.
“O Brasil também tem de mostrar o quanto vai investir do próprio bolso, antes de solicitar recursos internacionais. Temos condições de dar nossa contribuição para a solução do problema. Esperar que os países industrializados financiem a ação dos em desenvolvimento é irreal e ingênuo”, avalia Rachel.