Escalas de Tempo do Cosmos ao Microscópico
Amâncio Friaça (IAG-USP)
Faz algum tempo, a velocidade de um caminhante, uns 5 km/h, tornou-se o padrão para medir a fluidez do trânsito em São Paulo. Ele estava ruim naquele fim de tarde prolongado pelo horário de verão. Eu atravessava a pé a ponte da Eusébio Matoso, duas ou três vezes mais rápido do que os carros ao meu lado. O congestionamento era uma das respostas burras da cidade às chuvas intensas. Aquele trecho do Rio Pinheiros é propício a avistamentos insólitos – um jacaré solitário, um bando de capivaras ou um yellow submarine de borracha. Agora surgia outra aparição.
Uma ilha flutuante de garrafas PET, com cerca de 5 metros de diâmetro, arrastava-se com preguiça sobre a água viscosa do rio. A chuva teria dado nascimento a essa tradução moderna da mitológica Ortígia. A ilhota teria menos de duas horas de vida. E quanto tempo duraria? Algumas horas? No máximo, um ou dois dias. Mas, uma vez dissolvida a ilha esverdeada, as garrafas PET e seus fragmentos insistiriam em existir por até alguns séculos. Uma persistência que contraria o desejo da sociedade de consumo de que as garrafas PET se dissolvessem sem dar trabalho. O espírito do descartável ignora a impermanência de cada coisa, pois atribui um excesso de impermanência aos objetos “descartáveis”.
A longa duração, que é o vício das garrafas PET, é a virtude das de vidro. Vem à mente a garrafa de Edgar Allan Poe, em Manuscrito Encontrado numa Garrafa. A garrafa vence o tempo e a água, e transmite a mensagem do narrador anônimo, morto nos confins do mundo. A duração do suporte da mensagem deve ser prolongada ao máximo, por exemplo pelo uso do vidro e do pergaminho (e não do facilmente degradável papel), para transmitir uma notícia desde regiões limítrofes, onde o mundo se dissolve.
A perenidade da garrafa PET difere da garrafa de Poe por ser distraída em vez de proposital. Mas, se alguns artefatos humanos não durassem muito mais tempo que a existência humana, não haveria arqueologia nem boa parte da história. Essa materialidade que se fixa fornece um prolongamento extra da nossa vida. Poe escapa à degradação post-mortem não só por sua alma, não só por sua obra literária, mas também pela elegante solidez física de sua tumba, onde usufrui a excelente companhia de sua mulher e sua mãe, no terreno de uma igreja de Baltimore. Em geral, a memória das palavras resiste mais ao desgaste do que as pedras. Contudo há exceções. As construções ciclópicas sobrevivem à língua extinta dos seus construtores.
Mas a tumba de Poe, a construção ciclópica e a garrafa, ou a PET ou a de vidro, vão desaparecer um dia. E a própria Terra, que é o suporte de tudo isso, quando vai se esvaecer? Sonhos milenaristas desejariam que o fim estivesse próximo. Alguns milenaristas também sustentam uma idade bíblica para a Terra de cerca de 6.000 anos. Porém, nem a Terra é tão jovem, nem o fim está tão perto. Geólogos e astrônomos, em vez de milênios, falam de bilhões de anos. A Terra tem 4,55 bilhões de anos. O tempo de vida do Sol é 11 bilhões de anos, e assim temos mais uns 6,5 bilhões de anos à frente. Por fim, a cosmologia encontra uma idade do Universo de 13,7 bilhões de anos.
Essa unidade de tempo – um bilhão de anos – custou a entrar no pensamento ocidental. Enquanto a Antiguidade do Mediterrâneo traçava uma cronologia mundana de milhares de anos, na Índia, segundo alguns cálculos, uma Maha-Yuga, uma Grande Idade do Mundo, teria 4 bilhões, 320 milhões de anos. As escalas de tempo anêmicas do Ocidente são devidas em parte à representação desajeitada dos números pelos gregos, romanos e povos do Oriente Próximo. Já a notação decimal e a descoberta do zero pelos indianos permitiram a representação de números vertiginosos. Sem medo do bilhão ou do infinito. No Ocidente, Darwin foi um pioneiro ao falar em ciência do bilhão de anos. Na primeira edição da Origem das Espécies, de 1859, ele obtém um limite inferior à idade da Terra a partir do “desnudamento do Weald”. O Weald é um vale no sul da Inglaterra, e Darwin calculou que a erosão o tenha escavado em 300 milhões de anos.
Essa cifra escandalizou o campeão da termodinâmica Lorde Kelvin, pois ele havia calculado que o Sol teria 20 milhões de anos de vida. O Sol irradia muito calor, e é preciso uma fonte de energia para mantê-lo aceso por um longo tempo. Se a luminosidade solar fosse devida a reações químicas, mesmo extremamente eficientes, como a queima de hidrogênio por oxigênio, o Sol poderia brilhar por 3.000 anos. Podemos dizer que o mundo bíblico de 6.000 anos é um mundo químico, onde a fogueira simboliza a fonte de energia. Mas a termodinâmica de Kelvin e outros, essa admirável ciência nova do século XIX, amplia por mais de mil vezes as escalas mundo químico, pela conversão de energia mecânica- queda de meteoritos ou contração gravitacional – em calor.
Kelvin atacou tão violentamente a estimativa idade da Terra de Darwin, que o cálculo do “desnudamento do Weald” foi retirado na segunda edição da Origem das Espécies. Uma contribuição fundamental de Darwin, que normalmente não é notada, é a introdução das longas escalas de tempo em ciência. Um bilhão de anos é considerada uma escala de tempo razoável para que a teia das espécies evolua em consequência de repetidos episódios de extinção e especiação e surja a vida complexa. Subjacente está uma outra escala de tempo: o tempo de vida médio de uma espécie, cerca de 1-10 milhões de anos.
Até o fim de sua vida, Darwin se atormentou com o enigma da idade da Terra. Foi a descoberta da radioatividade por Becquerel em 1896 que provou que Darwin estava certo. Era a física de Kelvin que estava incompleta. A radioatividade revelou as imensas energias do núcleo atômico. O Sol pode brilhar por mais de 10 bilhões de anos graças às reações nucleares no seu centro.
Os bilhões de anos fazem parecer que a existência humana é absurdamente curta. Mas será mesmo? Olhemos para o mundo microscópico. Lá há coisas tão fugazes que fazem de nós seres extremamente longevos. Consideremos o tempo de vida do primeiro estado excitado de átomo de hidrogênio, um centésimo de milionésimo de segundo. A expectativa de vida para um ser humano saudável é de 100 anos, ou 3 bilhões de segundos. Assim, vivemos 300 milhões de bilhões vezes mais do que o estado atômico. Porém, se compararmos com a idade do Universo, 13,7 bilhões de anos, ele é mais velho do que um Oscar Niemeyer apenas umas 13 milhões de vezes, para arredondar.
Os números da história do Universo nos confortam ainda mais (nossa vida não é tão breve). Como o Universo está em expansão, ao olharmos para trás, ele é menor e mais denso. A densidade infinita define um instante zero cósmico, o Big Bang, e épocas e eras bem marcadas. Na época da recombinação (Universo com 380 mil de anos de idade), os elétrons se unem aos núcleos de hidrogênio e hélio e surgem os primeiros átomos. Bem antes, na era da nucleossíntese,entre um segundo e dez minutos desde o Big Bang, são formados os primeiros núcleos atômicos – hidrogênio, deutério, hélio, lítio. Aproximando-nos cada vez mais do Big Bang, as escalas de tempo tornam-se cada vez menores, e o cósmico se unifica com o microscópico. O último estágio que nossa física consegue vislumbrar é o tempo de Planck, quando o Universo tem 10 elevado a menos 43 segundos de idade.
E antes do tempo de Planck? Alguns cosmólogos falam do multiverso, uma coleção de universos, cada um com suas leis físicas distintas. No multiverso, o tempo não existe na forma sequencial, única. Em um vasto oceano supracósmico, coexistem universos, formando um magnífico arquipélago. Cada um desses universos-ilha emerge, e, como uma ilha de garrafas PET, dissolve-se segundo a impermanência que lhe é própria.