Sem sinais de arrefecer, o patrimonialismo dita a lógica e o tempo da tomada de decisões na esfera pública
Uma tradição persiste no Brasil e renasce de sua hibernação cíclica neste ano. É o que se chama popularmente de “tempo da política”, como se fosse uma estação da natureza. Como o tempo do pequi, da jabuticaba, da manga, é certo que virá. Significa que é chegado o período eleitoral, a chance para conseguir algo em troca do voto. É a hora de barganhar com os candidatos vantagens que vão desde promessa de emprego a pequenos presentes ou mesmo dinheiro vivo. É a política vista apenas como porta de acesso a benesses, o que ajuda a explicar por que, passada a eleição, a fiscalização direta dos eleitores sobre os eleitos seja insignificante.
Explica também por que políticos de ficha sujíssima se reelegem com frequência e facilidade e continuam a fazer da atividade política o seu negócio particular. O “tempo da política” na sua forma mais crua e simplória – os famosos óculos, dentaduras, botinas, cestas básicas – é visível a olho nu nas regiões que a arrogância centralista do Sul-Sudeste gosta de chamar de grotões, mas viceja também em grotões mais elegantes e complexos, mas não menos grotescos, onde vez ou outra é pilhado e descrito em inquéritos da Polícia Federal, em investigações do Ministério Público ou em CPIs. Sem resultados entusiasmantes, aliás.
O cerne dessa cultura é o patrimonialismo, que não dá sinais de arrefecer no País – a não ser em nichos ainda sem força para se capilarizar – e é decisivo na formação da lógica e do tempo do processo de tomada de decisões na esfera pública, no qual interfere de maneira agressiva e com alta capacidade de erosão de políticas públicas, tanto na sua elaboração quanto na implementação.
Inúmeros fatores fazem parte do mesmo pacote. O uso indevido da estrutura e do orçamento públicos, nas três instâncias (municipal, estadual, federal), é um deles. Nos Estados Unidos, os cargos em comissão na esfera federal não passam de 9 mil; no Brasil, são mais de 20 mil. São aqueles cargos de livre indicação dos ocupantes de postos de poder, ou seja, onde se acomodam, ao lado de pessoas efetivamente competentes, a multidão de apadrinhados de políticos e partidos que, em última instância, servem aos projetos de poder de seus contratantes. Faltam profissionalismo, visibilidade e accountability* às estruturas públicas. O enorme fosso entre o que é dito e o que efetivamente aparece materializado em políticas contínuas e coerentes não gera responsabilizações e punições, nem mesmo a decantada punição das urnas.
*Prestação de contas ao público e adoção de práticas de transparência, com o intuito de combater o mau uso do poder
Outro fator é a descontinuidade de programas e projetos que a cada nova eleição passam pelo crivo não de sua pertinência do ponto de vista do bem comum, mas da necessidade do novo ocupante do posto, de depreciar politicamente o antecessor e, portanto, sua obra. Muitas vezes, iniciativas construídas junto com a sociedade, que conseguiram superar inúmeras dificuldades logísticas, técnicas, metodológicas e estão prontas para se transformar em padrões de eficiência em termos de política pública, caem no vazio, são desidratadas e encostadas como entulho do governo anterior.
O que faz com que o tempo da elaboração e implementação de políticas seja, em geral, algo gelatinoso e imponderável, cheio de idas e vindas, incapaz de consolidar mudanças de longo prazo, na briga interminável contra o tempo manipulador da política partidário-eleitoral.
Há ainda as características da decisão legislativa. Quando não é inacreditavelmente veloz, e polêmica, chega ao tempo surreal de décadas para analisar e votar um projeto de lei. Para ficar num exemplo, o projeto de acesso à biodiversidade brasileira e repartição dos benefícios dela decorrentes espera desde 1995 por uma decisão do Congresso e do Executivo, o qual, em inúmeras ocasiões, usou sua força para impedir que a tramitação fosse adiante.
Se levarmos em conta que o Brasil procura ostentar diante do mundo uma liderança ambiental para os novos tempos de aquecimento global, não ter uma política para seu principal trunfo é mais do que incongruência. É demonstração de que o tempo da construção de políticas públicas não é definido pela sociedade e suas necessidades. Ele é função de relações que têm vida própria, descolam-se dos instrumentos democráticos de legitimação e controle e se bastam em suas razões próprias e nem sempre claras.
Afirmar que isso não se dá só no Brasil não resolve muito. A diferença é que está ao nosso alcance interferir apenas no que acontece aqui e muitos brasileiros, individualmente ou de forma organizada, têm tentado enterrar a maldição do patrimonialismo. Será que um novo tempo vai chegar? Pode ser, mas não será por sorte nem acaso. Temos de lutar contra a lógica que contamina até nosso dia a dia, de maneira imperceptível. Mas é preciso admitir que é muito cansativa essa batalha e, às vezes, parece tarefa impossível.
*Jornalista e socióloga