Organização propõe o pensamento de longo prazo para aumentar a responsabilidade com o futuro e o presente
“A civilização existe por permissão geológica, sujeita a mudança sem aviso”
Will Durant, 1926
A julgar pela enxurrada de notícias vindas do Haiti – na mídia impressa, televisionada ou twittada – após o trágico terremoto de janeiro, todos os terráqueos devem estar instantaneamente informados dos acontecimentos na ilha caribenha. Mas talvez daqui a quatro ou cinco anos alguém tenha de nos relembrar o acontecido. Tanta notícia, análise, relatos – todos soterrados sobre a imensa pilha de escombros produzida pela era do imediatismo.
Valeria uma aposta: em cinco anos nada se falará sobre a tragédia de proporções bíblicas que se abateu sobre o Haiti em 2010. Para quem se habilita, o endereço é certo, um site mantido pela Long Now Foundation, organização sem fins lucrativos americana fundada em 1996 para fomentar o pensamento de longo prazo e mudar a forma como pensamos sobre o tempo. Só valem apostas ou previsões longas, de pelo menos dois anos, e não há limite máximo de tempo – as mais longas referem-se a 150 anos, época em que, por exemplo, passa-se o conflito entre humanos e Na’vi* no filme Avatar. Já parou para pensar seriamente em como será a vida nesse não tão distante futuro?
*População humanóide habitante do imaginário planeta de Pandora, que possui vastos estoques de um mineral cobiçado pelos humanos.
É esse o objetivo da Long Now. Seus criadores acreditam que, ao encorajar as pessoas a abandonar o aqui-e-agora em favor do longo prazo, acabarão por fomentar a responsabilidade em relação ao futuro e também ao presente. “O ‘agora’ nunca é só um momento. O Longo Agora é o reconhecimento de que o momento preciso em que você está decorre do passado e é uma semente para o futuro”, escreveu o músico Brian Eno, um dos fundadores da entidade e criador da expressão “long now”. “Quanto mais longa a sua percepção do ‘agora’, mais passado e futuro ela inclui.”
Eno destaca que, embora a humanidade esteja no pico de seus poderes tecnológicos, capaz de criar enormes mudanças globais que ecoarão por séculos, a maior parte dos sistemas sociais parecem adaptados a ‘agoras’ cada vez mais curtos. “Indústrias enormes sentem a pressão para planejar em função do bottom line e da próxima reunião de acionistas. Os políticos se sentem forçados a desempenhar bem na próxima eleição ou pesquisa de opinião. A mídia atrai mais audiência ao incitar reações instantâneas e acaloradas a histórias de interesse humano, deixando de lado temas de longo prazo – o verdadeiro interesse humano”.
Na contramão, a Long Now Foundation investe em projetos como o das apostas longas, mas sua face mais intrigante é a construção do Clock of the Long Now – o Relógio do Longo Agora –, capaz de marcar o tempo a longo prazo. Não os 150 anos de Avatar, mas 10 mil – época em que, acreditam alguns, nasceu Raul Seixas. É mais ou menos o mesmo espaço de tempo, lembra Stewart Brand, outro dos fundadores da Long Now, que nos separa dos primeiros artefatos de cerâmica, uma das tecnologias humanas mais antigas. Assim como relíquias arqueológicas nos conectam com o passado, o relógio nos ligará ao futuro. A Long Now pretende instalá-lo no deserto estado de Nevada, nos EUA, mas um protótipo pequeno já funciona em um museu de Londres.
Além de garantir a longevidade, os mentores do grande relógio enfrentam outros desafios cabeludos. Entre eles: transparência (para que seu funcionamento seja compreendido por inspeção visual), manutenção (facilitá-la ao usar nada além de tecnologia disponível na Idade do Bronze) e escalabilidade (permitir que funcione como relógio de mesa ou uma imensa estrutura escondida nas rusgas do deserto). A necessidade de longevidade impede o uso de engrenagens, que se desgastam com o tempo, enquanto a manutenção e a transparência tornam impossívelouso de eletrônicos. Por fim, é preciso encontrar uma fonte de energia que funcione tanto na escala pequena como na gigantesca.
Mas nada supera o desafio da comunicação. Nunca saberemos se as interpretações que damos aos cacos de cerâmica que resgatamos nas escavações arqueológicas, os desenhos neles inscritos ou os hieroglifos deixados por civilizações pretéritas correspondem ao que de fato ocorreu. Da mesma forma, a construção do relógio faz refletir sobre a mensagem que estamos enviando àqueles que viverão 10 mil anos à frente. Além de um relógio ticando no meio do deserto, que outros artefatos serão capazes de recuperar para tentar entender nosso modo de vida? Que história contarão os restos da nossa civilização?
No curto ‘agora’ em que vivemos, o terremoto no Haiti deixou a marca de milhares de vidas humanas perdidas. Na camada mais profunda do tempo, a que os geólogos chamam de “deep time”, trata-se literalmente de um arranhão. No inexorável movimento das placas tectônicas por baixo de nossas culturas, instituições, prédios, estradas, pontes e mercadorias que circulam por elas, seja para alimentar pessoas, seja para alimentar seu desejo de status, há fronteiras que se chocam. Como disse um geólogo, “o terremoto apenas recupera o tempo perdido”.
*Jornalista e fundadora de Página22