Continua quase intocada a esfinge da reforma política. Que não será feita por iniciativa do Congresso, é indiscutível. Só sairá se o próximo presidente mobilizar sua base a serviço dessa causa
Há 27 partidos registrados no Brasil e outros tantos aguardando registro provisório. É relativamente fácil criar um partido. Para dar o pontapé inicial, bastam 101 assinaturas de eleitores de no mínimo um terço dos estados. Depois fica mais difícil, pois é preciso quase meio milhão de assinaturas para ganhar o status de partido nacional, com tudo o que isso significa. Mas o esforço compensa – como demonstra a quantidade de partidos nanicos e a sempre concorrida fila de postulantes -, principalmente para corporações que dispõem de clientela cativa para essa coleta de assinaturas, tais como sindicatos, igrejas e, é claro, para quem tem cacife econômico para bancar o investimento.
Adentrar o sistema partidário no Brasil é bom negócio. Nele permanecer é melhor ainda, pois não necessariamente envolve compromissos públicos reais. O que é muito facilitado pela geleia geral em que se transformaram os programas partidários, cada vez mais parecidos, ocos e não vinculantes.
Uma vez registrado um partido, ele tem acesso ao Fundo Partidário (Fundo que em 2010 ultrapassa R$ 160 milhões só em dotação orçamentária); à estrutura de funcionamento para seus representantes, e ao cobiçado mundo das coligações, onde o passe de um nanico pode valer muito em briga de cachorro grande. Passe este, em geral, trocado por uma cesta básica bancada com dinheiro público: cargos, dinheiro garantido para emendas parlamentares e favores menores. Um mandato parlamentar ainda pode garantir imunidades interessantíssimas para quem tem contas a acertar com a Justiça.
Nesse quadro, é muito difícil vingar uma reforma política para valer, especialmente levando-se em conta que a nata do sistema partidário tem seus projetos de poder de longo prazo e, em nome deles, fazem vista grossa para muita coisa danosa à sociedade e à consolidação da democracia.
Nesse sentido, o que se poderia chamar de herança maldita de Lula é o fracasso no campo da política. De maneira muito pragmática, adotou uma forma de negociação que aprofundou os vícios do sistema e fortaleceu seus setores mais conservadores. Às vésperas do pleito de 2010, continua quase intocada a esfinge da reforma política. Que ela não será feita por iniciativa do Congresso, é indiscutível. Só sairá se o próximo presidente decidir mobilizar sua base e colocar sua legitimidade a serviço dessa causa.
Certamente terá forte apoio social, mas terá de ser um(a) estadista, disposto(a) a ousar e correr riscos. Da parte da sociedade, há acúmulo, para começo de conversa. Um exemplo: o projeto Ficha Limpa, que está sendo cozido em banho-maria na Câmara. Outro: desde 2004, uma articulação de 27 fóruns e redes sociais debate e formula propostas para reforma política abrangente, que não se restrinja ao sistema partidário e chegue ao cerne da tomada de decisões de interesse público no País.
Daí resultou a Plataforma dos Movimentos Sociais para a Reforma do Sistema Político, organizada em eixos: fortalecimento da democracia direta e da democracia participativa; aperfeiçoamento da democracia representativa; democratização da informação e comunicação; e democratização e transparência no Poder Judiciário. Mesmo que se discorde de muitos pontos, é um mosaico relevante, com propostas inovadoras.
Em março de 2007, essa Plataforma foi apresentada ao Congresso. Não conseguiu romper os limites da Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular. Enquanto isso, tramitam coisas como o projeto 4.598/09, que, em resumo, permite que apenas nove parlamentares requeiram ao TSE o registro provisório de novo partido, mediante o qual terão os mesmos direitos, deveres e prerrogativas dos atuais partidos, inclusive de participar de eleições e fazer coligações. Praticamente um fast-food partidário.
E mesmo o ex-ministro da Justiça Tarso Genro saiu do governo pesaroso porque o próprio projeto de reforma política coordenado pelo seu ministério não avançou no Congresso. A queixa do ministro, aliás, é um nonsense, visto que só o governo do qual ele fez parte poderia ter dado um rumo diferente ao objeto de suas preocupações.
Dentro de pouco tempo o sistema partidário abrirá suas asas sobre nós, novamente sedento de legitimidade e oferecendo mais do mesmo. Haverá alguma surpresa? O PV de Marina Silva terá estrutura, vontade, força política e conteúdo para desafinar o coro dos contentes, mudando o rumo da conversa?
Pergunta:
José Serra e Marina Silva têm feito elogios aos governos FHC e Lula, principalmente a este último. Mas não têm avançado no sentido de explicar por que, então, seriam melhores do que alguém que vem com a chancela de Lula. Ambos caminham num fio de navalha. Ou dizem com clareza na campanha o que trazem a mais ou estarão se colocando numa armadilha: já que o cara foi tão bom, por que não votar na candidata dele?
*Jornalista, socióloga e consultora independente