Passados quase 20 anos do Código de Defesa do Consumidor, o cliente ainda espera de empresas – socialmente responsáveis – que avancem na sua agenda mais básica
“Caro leitor”, o escritor Machado de Assis já se referia a você assim, sugerindo até que abandonasse a leitura, em caso de maiores bocejos. No entanto, com o desenvolvimento da comunicação e da publicidade, ninguém mais quis te dispensar. O rádio surgiu como um companheiro inseparável. Amigo ouvinte, você que acabou de acordar, você que está indo tirar um cochilo, você que está na hora do almoço.
A TV jamais quis perder sua atenção, ainda que lhe empurrasse tempos de propaganda cada vez mais extensos, entre um bloco e outro da programação. Caro telespectador, não saia daí, porque a gente volta já. O mercado evoluiu tanto que, se antes o vendedor batia à porta, hoje invade a nossa janela eletrônica sem pedir licença.
E todo mundo quer chamar a atenção do freguês, palavra que já foi substituída, pelas altas cabeças do marketing moderno, por cliente. No consultório médico, ninguém é paciente, mesmo que aguarde duas horas por uma consulta. Na empresa, em vez de funcionário, o sujeito é cliente interno. Nas companhias aéreas, o termo passageiro deve ter pousado em alguma terra muito distante do Brasil.
Daqui a pouco, pai e mãe, dois dos principais stakeholders da família, vão fazer carteira do clube de vantagens especiais para cliente-filho. Dá direito a escola, curso de inglês e clube no fim de semana. Com uma nota azul no boletim escolar, ainda ganha sorvete no sábado. O cadastro pode ser feito no próprio quarto dos pais, com apresentação da certidão de nascimento e uma foto 3×4. Depois do horário comercial, no intervalo da novela das 8.
É verdade, caro leitor. Você virou cliente, ou consumidor. Aguarde atrás da linha amarela, dê passagem a gestantes ou maiores de 65 anos, escreva o número do protocolo, se não der para anotar a placa. Parcele em três, quatro, cinco vezes. Doze com juros no cartão, jure. Porque fiado só amanhã. Dirija-se àquele caixa. Neste, até dez volumes. Eu podia estar roubando, eu podia estar levando, eu podia estar mensalando, mas sou o passatempo da sua leitura.
O primeiro entrevistado está na fila, sem necessidade de pegar senha. “É perigoso quando, na escola, o aluno passa a ser tratado como cliente, tendo sempre razão. A educação forma cidadãos. Cobra das pessoas comportamentos que exigem esforço do estudante e impõem limites. É grave quando jovens ou crianças não aceitam esses limites. E, pior, têm o apoio dos pais ao reclamarem, injustamente, da conduta dos professores”, constata o psicólogo e psicanalista Fábio Thá, doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Paraná.
Quanto mais o mercado se mostra como grande regente das relações humanas, mais a sua lógica tem se estendido por áreas que, na origem, não têm a ver com ele. O problema é que ninguém encontra felicidade, carinho ou acolhimento na prateleira da loja de conveniências do posto de gasolina.
Há pessoas que não conseguem ficar tristes, são incapazes de viver o luto. Carregam consigo um modelo que tem a tristeza como um simples produto, entre os sentimentos disponíveis sobre o balcão. Livrar-se disso passa a ser uma necessidade imediata. “Vão ao médico e não saem do consultório sem uma pílula. Esquecem que a vida não é um caminho de rosas. Sofrimento, decepções e fatos desagradáveis existem. Há limite até para a felicidade”, destaca Thá.
Do pastel alemão ao call center
Caro leitor, costuro parágrafos e vendo salgados ou doces pra fora. Aceito encomendas. Tenho bolinho de aipim, rissole de camarão, empada de palmito, brigadeiro, maria-mole, que a vida é dura. Vai levar? Guaraná ou Coca? Laranja ou Limão? CPF na nota? Débito ou crédito? Maior ou menor? Pra agora ou pra viagem? Ingresso sobrando, eu compro. Quer que embrulhe pra presente? Na minha mão é 1 real. Açúcar ou adoçante? Está de bom gosto, negócio fechado: por mais apenas 50 centavos, não te ligo mais.
Quem liga é o operador da central de relacionamento da empresa. Alô, alô, Terezinha? Olha o bacalhau, olha o melhor plano, com a melhor tarifa entre todos os planetas do sistema solar. Olha a feira pelos cabos telefônicos mundo afora. Quem não se comunica se trumbica. De acordo com informações do site da Associação Brasileira de Telesserviços (ABT), o uso do telefone para fins comerciais remonta a 1880, quando um pasteleiro de Berlim, na Alemanha, usava a linha com objetivo de vender seu produto aos clientes cadastrados.
Em solo (ou fone) brasileiro, na década de 1950, funcionários das Páginas Amarelas ofereciam espaços publicitários nos catálogos telefônicos. No fim dos anos 1980, filiais de empresas estrangeiras, marcas de cartão de crédito e editoras aumentaram o uso da ferramenta. As operadoras de telefonia incentivaram a prática, com intenção de incrementar o ganho com as ligações.
Ainda segundo a ABT, a expansão e a privatização do setor de telecomunicações, o desenvolvimento da informática, questões culturais e a aprovação do Código de Defesa do Consumidor consolidaram as centrais de relacionamento.
Com o telefone ao pé do ouvido, a ideia é que o cliente possa ter à mão não somente o canal de vendas das companhias, mas ferramentas para esclarecer dúvidas, reclamar, elogiar e pedir alterações no serviço prestado. A chance de entrar em contato com as corporações aumentou depois da crescente popularização da internet em território nacional, o que exigiu grandes transformações dentro das próprias organizações.
O presidente da Associação Brasileira das Relações Empresa Cliente (Abrarec) e publisher da revista Consumidor Moderno, Roberto Meir, lembra que o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) da Nestlé, no Brasil, tem 50 anos, mas destaca ser uma exceção. A partir de 1991 é que o atendimento ao cliente, pelo telefone, começou a ganhar corpo no cenário empresarial do País.
Dados da ABT apontam que o setor emprega, hoje, 1 milhão de pessoas. Quase a metade delas é jovem, em sua primeira oportunidade de trabalho. A estimativa da associação é que a média de crescimento do mercado, nos últimos cinco anos, seja mantida para 2010 – em torno de 10%, com faturamento aproximado de mais de 6,5 bilhões de reais.
Em que mundo estamos?
Prezado leitor, sua leitura é muito importante para nós. Para experiências no exterior, leia o parágrafo 2 deste tópico. Tecnologia nos SACs dos EUA, parágrafo 3. Uma informação sobre aspectos econômicos, parágrafo 5. Cartão de crédito, parágrafo 6. Reclamações no Procon, parágrafo 7. Defesa do consumidor, parágrafo 8. Para entrar em contato com um de nossos repórteres, escreva para leitor@pagina22.com.br.
Meira valia que, no quesito relações de consumo, “o Brasil é Primeiro Mundo”. Ele conta que, certa vez, visitou os EUA e comprou um remédio que só descobriu estar com o prazo de validade vencido na hora de abrir a caixa do medicamento. O especialista defende que isso não ocorreria em uma farmácia brasileira, visto que a legislação obriga a impressão das datas de fabricação e validade nos produtos, como protetores solares, bebidas e alimentos.
Outra questão apontada pelo presidente da Abrarec é que muitas companhias americanas acreditaram que a tecnologia pudesse resolver todos os problemas dos clientes. Segundo Meir, elas criaram longos menus em suas centrais de relacionamento, priorizando o contato com a voz gravada, em vez de tornar disponível um atendente. “Lá você fica uma hora falando com máquina. Aqui, a lei dos SACs obriga a empresa a oferecer a opção de falar com um ser humano, impede a transferência abusiva da ligação para outros setores e dá prazo de cinco dias para solução do problema”, diz.
Um artigo publicado no jornal Valor Econômico, em fevereiro, de autoria do professor Yoshiaki Nakano, da Fundação Getulio Vargas (FGV), aponta que, no Brasil, entre 2004 e 2009, “mais de 30 milhões de pessoas tiveram ascensão social”. Isso contribui para o aumento do consumo e, consequentemente, de problemas relacionados a produtos e serviços.
Indivíduos que não usavam cartão de crédito, por exemplo, adquirem um e precisam se adaptar ao seu uso. As empresas, por sua vez, necessitam atender a exigências maiores, treinando funcionários, incrementando pontos de atendimento e investindo em infraestrutura.
Na opinião de Meir, é natural que organizações com milhões de clientes, como as de telefonia, contabilizem mais reclamações. Em 2009, foram registradas 15.337 demandas não solucionadas contra a Telefônica, no Procon-SP, que viraram processos no órgão de defesa do consumidor. O natural também é caro. Pelo quarto ano consecutivo, a companhia lidera o ranking de reclamações, e pode ter de pagar multas que ultrapassam R$ 25 milhões.
Em nota, a Telefônica informa que o número de clientes da empresa que buscaram atendimento no Procon-SP “caiu 78,6% na comparação entre os números de dezembro de 2009 e os de abril do mesmo ano, quando houve o pico de reclamações contra a companhia”. E acrescenta “A empresa continua empenhada em melhorar ainda mais suas relações com os consumidores.”
Carlos Thadeu de Oliveira, gerente de informação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), acredita que, no caso de algumas companhias telefônicas, houve expansão maior de capacidade comercial e publicitária do que, propriamente, do sistema. E isso levaria às falhas. Além desse fator, a comunicação de detalhes importantes, por meio de letras pequenas dos anúncios, e as informações pouco claras da propaganda deixariam o consumidor frustrado, esperando por algo que não terá.
Oliveira crê também que deveria haver mudanças e maiores investimentos nas agências reguladoras, como a Anatel, na área de telefonia, ou ANS, de saúde. “Aumentar a fiscalização sobre as prestadoras de serviço e agilizar processos é importante. Às vezes, elas levam entre seis meses e um ano para definir questões básicas. As agências precisam ser fortes, com objetivo de enfrentar interesses”, sugere.
Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Pro Teste), chama atenção para a dificuldade de punição das falhas. “A lei oferece às empresas a possibilidade de recorrer diversas vezes, o que atrasa o pagamento das multas e permite a repetição dos erros, sem motivar o aperfeiçoamento de serviços e produtos”, afirma.
O Idec e a Pro Teste realizam pesquisas, estudos e testes para melhor orientar o consumidor. No começo de 2009, o Idec abriu conta em dez bancos, para examinar o relacionamento das instituições com o correntista, os canais de comunicação, as tarifas cobradas, entre outros tópicos. A Pro Teste observa marcas de diversos setores e recomenda aos associados os itens que mais atendem à legislação e se destacam na relação custo vs. benefício, elaborando rankings.
Se as empresas tanto perseguem a excelência em responsabilidade social – por, teoricamente, estarem preocupadas com o bem-estar do ser humano e do planeta -, as corporações não deveriam excluir da lista de “beneficiados” por essa responsabilidade o consumidor, que até onde se sabe também é ser humano, com direito a bem-estar na vida e respeito em suas trocas comerciais.
Maria Inês observa que existem fabricantes, ainda, que esperam o aumento do número de reclamações ou o surgimento de casos de maior repercussão para começar uma campanha de recall. “O recall deveria ser feito assim que o defeito fosse percebido na organização, sem esperar o estímulo externo”, destaca.
Na área de alimentos, ela prossegue, “há itens que não deveriam ser oferecidos às crianças na publicidade”, por seu alto teor de açúcar e gordura. “Mas isso acaba passando batido.”
Batizado pelo Código
Em junho de 2006, o advogado carioca Maurício Balaciano, então com 24 anos e formado havia seis meses, viajou com um grupo de amigos para passar férias em Israel. Na volta, o voo que faria escala em Madri atrasou. E o grupo perdeu o horário do avião que completaria o trajeto seguinte, entre a capital espanhola e o Rio de Janeiro.
Balaciano e os amigos ficaram nove horas no aeroporto, em busca de informações sobre o que deveriam fazer, bem como se embarcariam para casa naquela data. Não foi possível. Assim, o grupo passou a noite em um hotel e retornou ao aeroporto no dia seguinte. Acabou aterrissando no Rio com 24 horas de atraso.
O jovem tinha recebido a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) alguns dias antes de viajar. O documento lhe deu a possibilidade de exercer a profissão de maneira independente, diferente de quando era estagiário, podendo assinar petições e entrar com processos na Justiça. Foi o que fez, pela primeira vez. Por si próprio e por dez companheiros de passeio. Todos ganharam indenização relacionada a danos morais, pelo “abalo psicológico e íntimo”, além da “situação desgastante e desrespeitosa causada”.
Hoje, o advogado cuida de cerca de 40 ações contra empresas aéreas, já tendo finalizado, aproximadamente, 30. Mas não faltam processos também contra operadoras de telefonia e empresas de cartão de crédito.
Maria Rita Borba não é advogada, mas, graças a problemas no relacionamento com algumas empresas, passou a entender um pouco mais sobre seus direitos. Quando voltou de viagem à França, teve problemas no transporte que a companhia aérea fez de sua bicicleta, a qual teria sido danificada durante o voo.
Geógrafa, ela entrou com uma ação no juizado de pequenas causas, depois de não ter obtido resposta em suas reclamações por telefone ou correio eletrônico. O processo levou um ano e meio até a tentativa de acordo. Como não houve maneira de conciliar, no total, foram quase três anos, até que recebesse a indenização.
A ideia dos juizados seria a de reduzir ainda mais o tempo dos processos. No entanto, no estado de São Paulo, há pouco mais de 300 unidades para uma população de 42 milhões de pessoas. A estatística é apontada por José Geraldo Filomeno, um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor. Aqui, ele fala sobre as novidades que o Código trouxe ao relacionamento entre empresas e clientes no País.
Caro leitor, obrigado pela sua leitura e volte sempre.