Entre a anistia e a inação, sobram propostas para recuperar o passivo ambiental sem inviabilizar o agronegócio. Tudo depende de uma combinação de instrumentos de mercado e de governo, além de altas doses de boa vontade
O feliz proprietário de uma padaria acorda um dia para descobrir que toda sua rua foi tomada por concorrentes. Logo as lojas se multiplicam em cada esquina do bairro, depois pelos bairros adjacentes, até que a cidade inteira se vê assoberbada de fazedores de pãezinhos.
Fatalmente, o preço do produto despenca, achatando ou aniquilando a margem de lucro. O sujeito, estarrecido, não tem alternativa senão fechar as portas. Em lugar disso, no entanto, ele expande seus domínios sobre a paisagem infindável de padarias na esperança de garantir algum fluxo de caixa.
Segundo Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra e autor dessa analogia, é exatamente assim que se comporta um produtor rural. Em parte pela crescente demanda mundial, especialmente por grãos, e em parte pela cultura de economia de fronteira que marcou o agronegócio brasileiro com o único diferencial de terra barata e preço baixo, a atividade no campo prende-se ao paradigma da expansão horizontal.
“O negócio se torna insustentável ambientalmente porque é insustentável economicamente”, diz Smeraldi, “o produtor não deve só ao Ibama, ele deve também ao Banco do Brasil”. Não deveria ser surpresa, portanto, a enorme resistência da categoria em arcar com os custos da recuperação ambiental, após décadas de descumprimento do Código Florestal, enquadrado na peculiaridade brasileira das leis que não pegam.
O ambientalista conta que, durante uma reunião em Mato Grosso, ouviu um produtor do município de Sinop lamentar-se da margem de lucro de R$ 3 pela saca de milho de 60 quilos. Mal dá para cobrir os custos. Em resposta, o presidente da federação dos agricultores conclamou os presentes a não se preocuparem com seus passivos ambientais, já que se poderia costurar uma anistia.
Para Smeraldi, esse é o retrato de uma distorção de mercado, que leva ao ciclo vicioso. Em qualquer outro terreno do mundo dos negócios, alguma restrição é bem-vinda. É assim que se refina a dinâmica da concorrência, garantindo preços melhores. No Brasil, no entanto, a lucratividade da base dessa cadeia está tão aviltada e por vezes negativa que só se pensa em garantir retorno pela quantidade, sem restrições, o que no fim das contas segue penalizando o próprio produtor.
“Se na Europa alguém levantasse a possibilidade de expandir a área, digamos, de beterraba, os produtores iriam a Bruxelas para protestar em frente à Comissão Europeia jogando beterraba em cima dos funcionários”, diz. Em lugar de combater a legislação ambiental, melhor seria que se discutissem formas de aprimorar a remuneração da base produtiva.
É desse panorama que partem as principais conclusões a que chegaram os dez especialistas consultados por Página22, entre representantes de ONGs, consultores, produtores e cientistas. A primeira delas é de que está fora da realidade supor que os proprietários rurais pagariam a conta ambiental sozinhos.
“Hoje é um mico ter reserva legal. O mercado simplesmente não reconhece. Paga-se o mesmo pela produção que vem de uma fazenda com ou sem reserva”, diz José Carlos Pedreira, consultor em sustentabilidade para o agronegócio.
Para amortizar os custos, há uma miríade de sugestões que apontam para a combinação de políticas públicas, requalificação de subsídios agrícolas e mecanismos de mercado. É compreensível que se torça o nariz para o rateio, quando todo o problema se originou pelo descumprimento de uma obrigação vigente desde 1965.
Por outro lado, a valorização do produtor rural como prestador de serviços ambientais pode não apenas erguer uma bandeira branca na briga entre ruralistas e ambientalistas, como também inaugurar o tão sonhado paradigma segundo o qual as florestas e os recursos naturais passam a ter valor de mercado.
Como exemplo, Pedreira cita o mecanismo da servidão florestal [1], já previsto no Código. “Se a gente consegue chegar a um acordo, o cara que fez uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), e foi chamado de louco pela mulher e pelos filhos, passa a ter o que oferecer. Está cheio de hectare de soja por aí. Hectare de floresta, não.”
[1] O proprietário rural pode compensar a sua reserva legal comprando ou arrendando outra área já florestada fora da propriedade, desde que na mesma microbacia.
Nos últimos dez anos, o Brasil avançou com medidas para restringir o crédito a propriedades irregulares, criminalizando não apenas os produtores como também os grandes compradores de commodities. Mas faltam os incentivos. “O que acontece se afugentarmos o setor agrícola só com multas? Reformam a lei. Bela solução”, ironiza André Nassar, do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).
Enquanto a polêmica proposta de reforma do Código Florestal dorme no Congresso à espera do resultado das eleições, está aberta a temporada de ideias arrojadas e conciliadoras. Vamos a elas.
Virando o jogo
Para Paulo Barreto, pesquisador do Instituto do Homem e do Meio ambiente da Amazônia (Imazon), e Raul do Valle, do Instituto Socioambiental (ISA), é necessário estabelecer, antes de tudo, que o passivo ambiental brasileiro não é apenas formal, mas tremendamente real.
Às tragédias de deslizamento em Santa Catarina e no Rio de Janeiro somam-se agora as enchentes no Nordeste, que castigaram, sobretudo, o estado de Alagoas. “Naquela região, há cidades na várzea, desmatamento excessivo e rios extremamente assoreados, com pouquíssima capacidade de reter água”, explica Valle. Para Barreto, a ciência está devendo estimativas mais claras sobre os custos de fundo ambiental dos desastres.
Philippe Lisbona, diretor da empresa Verdesa, dedicada à regularização ambiental de propriedades rurais, acrescenta ainda os prejuízos para a hidreletricidade. Florestas e rios são irmãos. É a cobertura vegetal que reduz a velocidade da água, aumenta a captação e porosidade dos solos e contribui para os aquíferos subterrâneos, que, por sua vez, geram as nascentes.
“Se você pegar a curva hidrológica dos últimos 30 anos, verá que a constância dos rios diminuiu muito. E constância é a coisa mais importante para um empreendimento de energia. Do contrário, são necessários altos investimentos com baixa eficiência”, afirma Lisbona. Belo Monte, por exemplo, gerará energia média de 40% da sua capacidade.
Caracterizado o interesse público, justifica-se a proposta de subsídios para recuperação de reservas legais e áreas de preservação permanente, o que não necessariamente precisa acarretar mais pressão sobre os cofres públicos. O modelo lembrado pelos especialistas é o europeu, chamado de cross compliance. Para adquirir crédito subsidiado, o produtor precisa comprometer-se com metas e normas ambientais.
Considerando que o enforcamento do crédito agrícola para propriedades irregulares já causou mais insatisfação que benefícios, Francisco Maciel, diretor da Bravo Ambiental, propõe uma estratégia: “Não precisamos cancelar o que já existe, mas garantir maiores vantagens para quem se propõe a recuperar. Assim, não se entra em conflito com o lobby estabelecido, mas criam-se condições para surgir um novo lobby de produtores engajados na recuperação”.
Isso é música para os ouvidos de John Carter, fundador da Aliança da Terra – rede de grandes proprietários rurais na Amazônia interessados em cumprir a legislação ambiental –, assim como para Brás Albertini, presidente licenciado da Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de São Paulo, mais ligado à pequena agricultura.
Ambos concordam, por exemplo, que a manutenção de nascentes e mata ciliar é uma obrigação inerente à propriedade da terra e que, ao propor a redução, o projeto de reforma que corre no Congresso jogou o acordo pela janela. É a reserva legal, nas palavras de Carter, que se apresenta como “uma mochila de chumbo que só o produtor brasileiro precisa carregar”.
Para Albertini, repasses da ordem de um salário mínimo por hectare, bem abaixo do preço de restauro florestal, já fariam diferença. “Assim o produtor também paga a sua parte, mas pelo menos se sente valorizado.”
Outro candidato primordial a subsídios públicos é o aumento da produtividade na pecuária. A atividade ocupa hoje 80% das áreas agricultáveis no Brasil, cerca de 220 milhões de hectares. Segundo estudo do Banco mundial sobre baixo carbono no Brasil, em parceria com o Icone, seriam necessários 70 milhões de hectares [2] adicionais até 2030.
[2] 17 milhões para expansão da agropecuária e 53 milhões para mitigação de emissões e sequestro de carbono, dos quais 44 milhões iriam para restauração florestal.
Teoricamente, é possível encontrar todo esse espaço apenas nas pastagens subutilizadas. “Isso aconteceu nos Estados Unidos já nos anos 80. Mas o Brasil precisaria de 20 anos para entrar num sistema especializado. Ou vai ter muito incentivo ou não se consegue fazer essa revolução completa”, diz Nassar.
Carbono pra que te quero
Está no mecanismo Redd (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) a maior oportunidade para financiar a recuperação florestal no Brasil. Por enquanto, o mecanismo ainda não teve as regras definidas pela Convenção do Clima, mas é uma das poucas expectativas para a próxima reunião das partes, tendo em vista o esperado aumento de demanda por créditos nos Estados Unidos.
Segundo Lisbona, o Brasil já tem 21 milhões de toneladas de créditos de carbono anuais registrados no MDL [3]. No dia da entrevista, a tonelada estava cotada em 14 euros, o que representa R$ 693 milhões. Na pauta de exportações, esse montante coloca os projetos de carbono em uma posição atrás do suco de laranja e à frente do algodão.
[3] Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, criado pela Convenção do Clima, possibilita que países sem compromissos quantitativos no Protocolo de Kyoto reduzam emissões e vendam créditos para os países com metas formais de redução.
Ressalte-se que no momento há apenas projetos de energia limpa, área em que o Brasil tem poucas chances de competir com países de matriz mais suja, como China e Índia. “Hoje, o Brasil ocupa por volta de 7% desse mercado. Com a entrada em vigor do Redd, poderíamos dominar tranquilamente 30% a 40%”, aposta Lisbona.
O obstáculo é o critério de adicionalidade. Pelas regras atuais, um projeto que resulte do mero cumprimento da lei não é elegível para gerar créditos, pouco importando se no caso do Brasil trata-se de letra morta. Para Lisbona, cabe ao País negociar esses termos. “Vamos focar no que o Brasil tem potencial competitivo, que é floresta, em lugar de ficar brigando com o Código.”
Uma saída seria integrar o restauro florestal aos compromissos voluntários de redução de emissões, já assumidos nacionalmente e em alguns estados. Se é voluntário, é elegível. Assim, os governos poderiam atuar como repassadores desses recursos, poupando os produtores rurais da burocracia altamente especializada.
Roberto Smeraldi propõe ainda que se cobre a responsabilidade dos atores com maior margem de lucro na cadeia agropecuária, notadamente redes de supermercados e frigoríficos. Ele explica que, na maioria dos estados, o pecuarista é pago apenas pelo peso do boi. A pele do animal acaba saindo de graça. “É o negócio dos sonhos. Eu recebo couro de graça e vendo a peso de ouro para a Gucci fazer bolsas. Ou recebo o sebo de graça e uso para abastecer meus caminhões com biocombustível.”
A Amigos da Terra propõe que frigoríficos e supermercados não se atenham apenas aos critérios negativos, que excluem da lista de fornecedores aqueles em desconformidade ambiental, mas também adotem políticas de remuneração positiva para premiar os bons exemplos.
Até para os pontos mais polêmicos do Código Florestal há propostas nem tanto ao céu nem tanto à terra. Para as áreas consolidadas em encostas e várzeas – leia-se frutas, arroz e café – Smeraldi e Nassar sugerem que a lei deveria balizar-se pelas melhores práticas em cada segmento. Com uso de piquetes e curvas de nível, uma plantação de maçã no morro pode ter benefício ambiental de fixação do solo, e não o contrário.
Esses casos demandariam compensação fora da propriedade e uma das grandes reclamações é que a restrição à microbacia reduz muito a oferta de remanescentes florestais. São Paulo avançou nesse sentido ao dividir o Estado em apenas duas grandes bacias, a do Atlântico e a do Paraná. Esta última, que comporta quase toda a agricultura, também representa quase 90% do território, portanto há mais opções. O Programa Biota, da Secretaria de Meio Ambiente, identificou as áreas prioritárias para conservação e orienta os interessados na compensação.
O cômputo de APP na reserva legal para diminuir o encargo daqueles que iniciarem seus restauros é cada vez mais palatável para ambientalistas. Jean Paul Metzger, ecólogo do Instituto de Biociências da USP, diz ser indispensável manter as duas áreas, já que ambas apresentam funções ecossistêmicas e diversidades biológicas diferentes, porém igualmente importantes.
No entanto, segundo uma extensa revisão da literatura científica que inclui sua própria pesquisa de campo, Metzger afirma que 30% de remanescente nativo na Mata Atlântica é o mínimo necessário para manutenção da biodiversidade. Assim, seria aceitável cogitar a soma de APP e reserva legal para os casos em que a área florestal supere 30% da propriedade. Já para a Amazônia, o percentual razoável é de 50%, preferencialmente 60%.
Ao contrário do que dá a entender a contenda em Brasília, não faltam alternativas para conciliar os interesses do agronegócio e da sustentabilidade ambiental. Tudo depende da capacidade de ambos os lados dessa questão superarem diferenças históricas e baixarem as armas em favor do diálogo.
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O tamanho da conta
Estabelecer quanto custa recuperar o passivo ambiental no campo é um desafio à altura de Einstein. Tudo é relativo. A técnica para replantar vegetação nativa, e recriar a biodiversidade em um patamar aceitável, ainda não é plenamente dominada. Os custos dependem do tipo de bioma e das condições de degradação do solo e do entorno.
Há ainda a possibilidade de regeneração natural, que consiste basicamente em cercar a área, dedicar alguma manutenção para controle de pragas e deixar que a natureza se encarregue do resto. O custo é baixo e pelo menos o Cerrado e a Caatinga têm reconhecida capacidade de regeneração.
O Estudo de Baixo Carbono no Brasil, do Banco Mundial, trabalha com estimativas que vão de R$ 3 mil a R$ 10 mil por hectare na maioria dos casos, podendo chegar a R$ 17 mil na hipótese de uma intervenção severa no solo. Mas o Código Florestal também abre a possibilidade de compensação em áreas já florestadas fora da propriedade, cujos preços ainda precisam ser definidos por um mercado quase inexistente.
Francisco Maciel, diretor da Bravo Ambiental, promove plantio florestal há mais de dez anos e diz que nunca viu um hectare custar menos de R$ 4 mil. Para ele, uma média modesta de R$ 5 mil por hectare em todo o Brasil seria “cientificamente inquestionável”. Daí a conclusão de que o tamanho da conta está na ordem das centenas de bilhões. Mesmo que se aposte na menor estimativa, de R$ 3 mil, o cômputo final indica R$ 261 bilhões para recuperar áreas desmatadas ilegalmente e regularizar todas as propriedades rurais no Brasil.
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As peças da discórdia
Áreas De Preservação Permanente: são áreas específicas de grande importância ecológica, que têm como função preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. Exemplos: mata ciliar, encostas, topos de morro, várzeas.
Reserva Legal: são remanescentes genéricos de mata nativa que precisam ser mantidos no interior das propriedades rurais, seguindo percentuais que variam de 20% a 80%, dependendo da região do País. São necessários ao uso sustentável dos recursos naturais, à reabilitação dos processos ecológicos e à conservação da biodiversidade.