Desafios de ordem global põem em debate o papel dos diplomatas na defesa dos chamados interesses nacionais
Durante um encontro em Copenhague, em maio deste ano, cerca de 400 delegados de diversos países discutiam novos processos da certificação da futura ISO 26000 [1]. Houve um embate em que uma diplomata norte-americana, instruída a obstruir o ponto que se discutia, acabou se colocando contrária ao resto da convenção. Depois de esgotados seus argumentos, ela se desesperou e se desmanchou em pranto.
[1] A terceira geração da norma ISO, que vai incorporar orientações sobre responsabilidade social e ambiental.
O fato marcante – além do evidente conflito entre portavoz e mensagem – é que tudo aconteceu durante um debate que caminhava para um acordo, mas que, devido à estrutura a que a diplomata estava submetida, ela ficou constrangidamente de mãos atadas.
Esse fato ilustra a dificuldade de arcabouços rígidos, como o diplomático, sustentarem-se em um mundo sob constante transformação. Os diplomatas sempre foram importantes atores do diálogo entre as nações. Sua habilidade negociadora os faz encontrar pontos comuns entre os mais sangrentos inimigos. Mas agora, mais que nunca, os países deparam-se com questões de ordem global, enquanto o mundo apresenta-se cada vez mais conectado a uma rede de comunicação que ultrapassa fronteiras e formalidades hierárquicas.
Como a diplomacia, voltada para a defesa dos assuntos nacionais, vai responder a esses desafios mundiais?
Uma das críticas que se faz ao Itamaraty, por exemplo, é que em algumas vezes seus representantes suspendem o diálogo, alegando que determinada proposta esbarra no “interesse nacional”. O que querem dizer com isso? Quem define o que é ou não de interesse nacional? E mais, se vamos a um encontro internacional em busca de soluções globais, não seria contraproducente estabelecer como inegociável um suposto interesse nacional?
Everton Vargas, que dirigiu o Departamento de Meio Ambiente e Temas Especiais do Ministério das Relações Exteriores (Dema/MRE) entre 2003 e 2008 e hoje é embaixador em Berlim, não enxerga essa contradição. Embora acredite que os Estados sejam sistemas de defesa de interesses e que ninguém vai a uma COP por filantropia, ele entende que o papel das negociações multilaterais é exatamente encontrar pontos de convergência. Para isso é que serve o diálogo.
Vargas conta ter assistido a consensos inesperados, durante as reuniões técnicas que promovia nos tempos do Dema. Sentavam-se lado a lado setores que, no Brasil, frequentemente têm dificuldade de se entender, como ambientalistas e empresários, por exemplo. “Mas, depois que cada um dos lados apresentava suas propostas, percebia-se que muitas delas eram convergentes”, afirma.
O embaixador concorda, no entanto, que em algumas vezes o consenso é impossível. Nessas horas, o diplomata aposta no tempo como aliado para chegar a um acordo. Mas, quando o colapso tem “data marcada”, como na questão climática, a solução, segundo ele, está na pressão da sociedade sobre os governos. “Muito embora, sei que sempre há diferentes sensibilidades dos governos às pressões sociais”, pondera.
O ministro Sérgio Barreiros, diretor-geral adjunto do Instituto Rio Branco, órgão responsável pela qualificação do corpo diplomático brasileiro, diz que a instituição não está parada diante das novas exigências contemporâneas. Para ele, apesar de ter mais de meio século, o instituto sempre soube se atualizar, garantindo a melhor formação para o corpo diplomático.
De fato, os diplomatas brasileiros sempre exibiram formação técnica ilustre. Se as negociações estão ocorrendo em eventos planetários, com pressões de todos os lados, em meio a um caos informativo, esses profissionais chegam reconhecidamente preparados para defender a posição brasileira. E sua arma é sempre a mesma: o conhecimento.
Segundo Barreiros, atualmente o instituto ministra módulos específicos sobre a sociedade civil contemporânea. Um desses módulos investiga como ela se comporta hoje, quais são suas diferenças e como se tem organizado no chamado terceiro setor.
O módulo inclui ainda um treinamento de como melhorar a interlocução com as organizações não governamentais. Quem ministra o módulo é Átila Roque, militante do terceiro setor – ligado ao Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em Brasília.
A questão ambiental também não é deixada de fora. Ela é ministrada transversalmente durante todo o curso, que ainda prevê uma imersão, na qual o aluno passa cinco dias, assistindo a aulas e palestras, ministradas por especialistas no assunto, somando um total de dez horas.
Ordem-unida
Quando começa a trabalhar, no entanto, esse profissional é submetido a uma hierarquia rígida, prima-irmã da carreira militar. O critério de promoção é principalmente por tempo de serviço. Somente por volta dos 50 anos terá condições de disputar um cargo de destaque na instituição.
Quem defende essa estrutura argumenta que isso possibilita uma unidade de atuação como em nenhum outro órgão do governo federal. Se você substituir uma peça, o organismo continua funcionando com a mesma eficiência. Além do mais, isso garantiria uma atuação do órgão de forma mais contínua e menos susceptível às conjunturas políticas, uma vez que dificilmente os cargos de chefia são ocupados por não diplomatas.
O que se questiona, porém, é se uma estrutura rígida como a do Itamaraty pode ser eficiente em um mundo que vive dinâmicas transformações.
A professora Ligia Maura Fernandes Garcia da Costa, da FGV-Eaesp, especialista em relações internacionais, avalia que não. Para ela, em qualquer corporação é fundamental uma certa flexibilidade para conviver sem choques com o mundo atual. “Hoje, precisamos de respostas rápidas”, afirma.
Realidade 2.0
O embaixador Everton Vargas admite que isso é um problema a ser enfrentado pelo Itamaraty. Para ele, as novas tecnologias de informação impactaram a vida da sociedade e não vão deixar a diplomacia de fora. Quando esteve à frente do Dema, Vargas buscava uma sintonia com os novos tempos. Uma de suas estratégias era abrir um melhor diálogo com a sociedade civil organizada.
“Quando cheguei, percebi uma forte exigência por transparência. Decidimos então que, antes de qualquer encontro internacional, organizaríamos reuniões técnicas para apresentar nossas posições”, conta ele.
“Nesses encontros, tomei conhecimento do tanto de informação que circulava fora do governo, e como elas eram importantes para a formulação de uma posição nacional negociadora”, explica. Tratava-se de uma via de mão dupla.
Vargas admite que nem todas as propostas podiam ser aceitas. Muitas delas “feriam o principio da soberania, já que acabavam sendo uma interferência indevida nos assuntos do Estado”. Ele acha, porém, que isso não acontecia por má-fé, mas porque as pessoas estariam mal informadas. “Quando isso acontece, cabe a nós (diplomatas) fazer uma decantação; assim, aproveitamos ao máximo o que a sociedade nos traz, para que nossa agenda reflita as aspirações sociais.”
Mesmo depois da saída de Vargas, essa dinâmica foi mantida no Dema. Antes da 15ª Conferência das Partes (COP 15), da Convenção-Quadro sobre Mudança Climática, em Copenhague, no ano passado, vários encontros foram organizados no Itamaraty, dos quais participaram técnicos governamentais, ONGs, acadêmicos, empresários, entre outros. Para a COP 16, marcada para dezembro próximo, no México, dois encontros devem ser organizados, o primeiro ainda neste mês de agosto.
“Acho que foi na área ambiental onde conseguimos abrir melhor o diálogo”, comemora o embaixador.
No entanto, ao contrário de outros países, essas oitivas não têm nenhum tipo de regulamentação. São organizadas informalmente. Na África do Sul, por exemplo, o processo é conduzido, desde o princípio, seguindo normas claras, que não deixam nenhuma parte interessada ficar de fora, tampouco que um órgão se sobreponha a outro.
E isso faz falta. Alguns técnicos de outros ministérios reclamam que, apesar desses encontros, o Itamaraty segue ouvindo muito pouco as demais pastas.
“Muitas vezes essas reuniões são apenas para legitimar a posição que o Itamaraty vai discutir lá fora”, afirma um gestor ministerial que preferiu não ser identificado. “Participamos da delegação como se fôssemos meros convidados, sem acesso às instruções a serem adotadas nas negociações. Isso é falta de transparência”, reclama.
A queixa faz sentido. Quando Vargas diz anteriormente que o corpo diplomático “decantava” as propostas da sociedade civil, devido ao que classificou como “ingenuidade das pessoas” e “falta de envolvimento (delas) com o métier”, fica a impressão de que a diplomacia teria um certo papel de tutela sobre uma sociedade ainda em formação.
O especialista que prefere não se identificar considera também que em tais “diálogos” há decisões hipócritas, como a abertura para que todos façam parte da delegação brasileira nas convenções internacionais. Na COP 15, a delegação brasileira contou com cerca de 700 participantes, entre membros do governo, ONGs, acadêmicos e empresários.
“Trata-se de um equívoco; quem não participa da construção da agenda, nem compartilha da estratégia, não deveria ser membro da delegação”, ataca o gestor.
Marcelo Furtado, diretor de projetos do Greenpeace, por exemplo, evita que sua militância integre delegações governamentais. Ele reza a cartilha segundo a qual o almoço nunca sai de graça. “Para haver negociação equilibrada, tem de haver independência entre as partes”, afirma.
A boa experiência do Redd
No entanto, outras ONGs que vêm participando desses encontros pensam diferente. Elas dizem que há, sim, diálogo promissor com o Itamaraty. Paula Moreira, especialista do programa de Mudanças Climáticas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), diz que sua instituição se sente ouvida pelo órgão.
Ela admite que não é fácil incluir uma novidade na estratégia do governo brasileiro, mas cita a proposta de Redução Compensada do Desmatamento, iniciativa do Ipam e do Instituto Socioambiental (ISA), que hoje faz parte da estratégia do governo no combate à mudança climática.
Formulada durante a COP 9, em 2003, a ideia era criar um mecanismo para que as nações em desenvolvimento que possuíssem florestas pudessem participar do esforço de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), recebendo benefícios econômicos e ecológicos. A proposta foi bem aceita pelos participantes do encontro.
De volta ao Brasil, os técnicos do Ipam e do ISA promoveram inúmeras e infindáveis reuniões com a equipe do Ministério do Meio Ambiente, que enxergou ali uma estratégia que conjugava uso sustentável com captação de recursos financeiros e preservação de direitos sociais. A ideia foi encampada e subiu um degrau na burocracia brasileira.
O passo seguinte foi convencer a equipe do Itamaraty. Outra bateria de reuniões foi marcada e a proposta terminou aceita. Hoje, a proposta de Redução Compensada do Desmatamento ganhou um apelido em inglês: Reducing Emissions from Deforestation and Degradation (Redd) e não há fórum sobre mudanças climáticas no planeta que não a inclua na pauta.
“Peregrinávamos pelos gabinetes e, quando conseguíamos ser ouvidos, íamos muito bem fundamentados; sempre levando os resultados de nossas mais recentes pesquisas, publicadas em periódicos científicos respeitados.
Foi um grande êxito do terceiro setor”, comemora Paula. Para ela, uma das lições aprendidas é que, para emplacar uma ideia na agenda do Itamaraty, é necessário muito mais do que participar dos encontros técnicos.
_______________________________________
Uma diplomacia não estatal
A pesquisadora Mariana Pavan, ligada ao Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), luta contra o aquecimento global.
Sempre participa dos encontros governamentais de construção da agenda da Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas, mas seu trabalho não termina aí. Ela mantém contato com ONGs do mundo inteiro, que se mobilizam pela conservação das florestas.
Mariana garante que tais ações paralelas não ocorrem por falta de diálogo com o governo. “O caso é que temos de agir globalmente, com todos e de todas as formas”, explica. “E hoje a tecnologia permite essa comunicação, de modo eficiente e a baixo custo”, diz.
Para ela, ir às COPs não é só para pressionar chefes de Estado. Grande parte da informação que circula ali vem das organizações da sociedade civil. “Há inúmeras redes de informação, que disseminam experiências, e ONGs que oferecem capacitação técnica.”
Aron Belinky, coordenador da campanha TicTacTicTac/Brasil, diz que se trata de um fenômeno novo e inevitável. É novo porque, antes, a tecnologia não permitia que o relacionamento entre entidades de diferentes países passasse de uma mera “comunicação de princípios”. “Agora, estamos em diálogo permanente. Somos ativos tanto para com os aliados quanto para com os não aliados”, diz.
Aron não acredita que esse novo padrão vai “aposentar” o Itamaraty, mas percebe que os diplomatas estão com dificuldades para lidar com isso. Na COP 15, o contraste entre a incapacidade dos Estados e a mobilização social deixou clara a urgência em se criar uma governança global – ágil e democrática.
“A Rio+20 acontecerá aqui no Brasil, e será uma oportunidade não só para discutir alternativas, como testar formas mais flexíveis de interlocução e decisão. Começa no preparo do próprio evento”, afirma.