Nos ambientes digitais e nas redes sociais, escolhemos revelar um pouco mais sobre nós mesmos, transformando a noção de privacidade
Um pequeno terremoto assolou o mundo virtual em dezembro, quando o Facebook, sem fazer alarde, mudou sua política de privacidade. O sistema pediu aos usuários que escolhessem disponibilizar publicamente determinados conteúdos de suas páginas ou mantê-los acessíveis apenas a certos grupos. Muita gente não se deu conta do que se tratava e, clicando, tornou boa parte de suas informações públicas. Esta e mais um punhado de escorregadas do Facebook em relação à privacidade dos usuários geraram uma grita e até um movimento organizado – o Quit Facebook Day.
No dia de debandar – 31 de maio –, 33 mil dos cerca de 500 milhões de usuários deixaram de participar do Facebook. A relativa baixa adesão talvez indique que, apesar de preocupações acerca da facilidade de acesso a informações pessoais nos ambientes digitais, o que as redes sociais trazem é a redefinição de privacidade e, por consequência, de publicidade. Por mais que na era da interconexão global privacidade ainda seja muito importante, publicidade é essencial.
Enquanto a maioria das pessoas cuida de manter privadas informações sensíveis, seja o número do cartão de crédito, seja a orientação sexual, os usuários de redes como Facebook fornecem, voluntariamente, um sem-fim de dados sobre si mesmos. Fotografias, opiniões, preferências, música, localização, ou o famoso “o que estou fazendo” – quem não compartilha não petisca. Esse, afinal, é o nexo das redes sociais: sem um público, não há compartilhamento.
“Algumas pessoas são o equivalente na web a nudistas: vivem vidas muito abertas, revelam detalhes íntimos de seus relacionamentos, o que pensam de amigos e colegas de trabalho, suas interações com a família e as autoridades”, escreve o consultor e blogueiro Stowe Boyd. Nem todos. Em geral o usuário mantém certas informações visíveis a diferentes círculos de relacionamento, criando públicos menores. E, ao participar de vários “públicos” – um de “amigos” no Facebook, um de “seguidores” no Twitter, por exemplo –, forja sua identidade. Cada pessoa, destaca Boyd, torna-se uma rede de identidades, definidas no contexto de públicos específicos.
Ao contrário do mundo real, em que a privacidade é necessária porque compartilhamos espaço, no mundo virtual compartilha-se tempo. No ambiente on-line, lembra Boyd, para que as pessoas descubram algo sobre você, é preciso que você publique algo sobre si. “Nós escolhemos ser públicos na web”, afirma. Tal a diferença entre o real e o virtual, que o blogueiro cunhou o termo publicy para descrever a qualidade de ser público nas entranhas da rede mundial de computadores. “Em vez de esconder coisas e limitar o acesso àqueles explicitamente convidados a fazê-lo, as ferramentas baseadas em publicy têm como default ser abertas e com acesso aberto”, escreveu.
O Twitter, por exemplo, é público por natureza (embora seja possível ter uma conta privada). Você não conhece e provavelmente jamais vai encontrar as celebridades que povoam o sistema de microblogging, mas pode segui-las de perto. Não raro, o Twitter produz suas próprias microcelebridades, gente comum que constrói ampla audiência por meio de seus posts. Alguns observadores apontam que, ao mudar – inabilmente – seus padrões de privacidade, o Facebook busca tornar-se mais aberto, à Twitter.
A tendência em direção ao acesso aberto atinge também empresas e governos. A reputação das companhias não depende só de seus esforços de relações públicas, mas da capacidade de construir uma identidade a partir da interação com diversos públicos. E elas também lançam mão das redes sociais, seja para direcionar o sentimento do público, seja como ferramenta de gestão (mais aqui). Quanto aos governos, pelo menos nos países desenvolvidos, cresce a opção por abrir o acesso a estatísticas e políticas, convidando o cidadão a participar (mais em post de nosso blog).
A possibilidade de interação é tamanha que há quem enxergue a publicy como reação ao fenômeno conhecido como bowling alone, em referência à tese defendida pelo cientista político Robert Putnam em 1995 sobre o declínio nas atividades sociais e no engajamento cívico dos americanos. Não que as pistas de boliche e os centros cívicos estejam cheios atualmente, mas é possível pinçar um germe de engajamento em eventos em que as ferramentas sociais foram importantes, como os protestos no Irã em 2009 ou a reação ao terremoto no Haiti este ano.
É claro que tanta abertura não vem sem o clamor de que, no fim, pagaremos um preço pela falta de privacidade. Há as tradicionais acusações de que a web funciona como um Big Brother que sabe tudo sobre você. E o recém-lançado site Please Rob Me rastreia mensagens do Twitter que identificam a localização do usuário para, em seguida, lembrá-lo de que o mundo todo pode ver que ele não está em casa, inclusive os ladrões. Mas, para alguns, com cada vez mais da nossa vida acontecendo on-line, o preço será pela privacidade: só quem puder pagar vai ter.
*Jornalista e fundadora de Página 22.