Os aparelhos podem ser ultramodernos, mas o processo de extração de metais usados em sua produção é, em muitos casos, dos mais arcaicos
Boa parte da indústria de eletrônicos depende de minérios cuja extração alimenta guerras sangrentas na África. O pior desses conflitos vem-se desenrolando na região leste da República Democrática do Congo, o antigo Zaire, que tem um subsolo muito rico. Ao longo da última década, ele matou pelo menos 5 milhões de pessoas – algo em torno de 8% da população do país.
“O Congo está ficando conhecido como o equivalente africano do Afeganistão, devido à violência interminável e à complexidade do conflito”, declarou recentemente Annika Hilding-Norberg, diretora do Instituto de Treinamento para Operações de Paz, nos Estados Unidos, ao New York Times.
O comércio de minerais ajuda a perpetuar esse quadro. As empresas de mineração são obrigadas a pagar um pedágio a grupos rebeldes, que empregam o dinheiro na compra de armas. Esses grupos invadem aldeias e promovem estupros para intimidar e punir as populações locais. No final de julho, por exemplo, os rebeldes invadiram um vilarejo isolado, próximo a uma base das Forças de Paz da ONU. Estupraram 200 mulheres, inclusive idosas, e vários meninos.
Os minérios obtidos pelos guerrilheiros são contrabandeados para países vizinhos, sobretudo Uganda e Ruanda. De lá viajam para a Malásia, a Tailândia, a Índia e a China, onde são processados e mesclados a metais de outras procedências, dificultando o rastreamento de sua origem. Por fim, eles são incorporados a componentes adquiridos pelas indústrias de notebooks, games, iPods, celulares e câmeras digitais.
Os quatro metais envolvidos nessa guerra são o ouro, usado em filamentos internos, o tungstênio, que permite que um celular vibre, o estanho, empregado na solda de componentes, e o tântalo, usado nos capacitores que armazenam eletricidade. Tem destaque o tântalo, essencial para a portabilidade dos eletrônicos – 70% das reservas conhecidas de tantalita estão no Congo.
Os protestos contra o comércio desses “metais conflituosos”, como são conhecidos, começam a pipocar em várias partes do mundo. Liderados pela Enough, um projeto que luta contra genocídios e crimes contra a Humanidade, celebridades estão propagando seu descontentamento e pressionando as indústrias de eletrônicos. Entre eles, a atriz Ashley Judd e Eve Ensler, autora da peça Monólogos da Vagina, que foram ao Congo para checar a situação de perto. Em junho, músicos famosos, como Norah Jones e Sheryl Crow, lançaram um CD para alertar sobre o conflito.
A ONU também acordou para o assunto e aprovou duas resoluções – uma no fim de 2008, outra um ano depois – propondo o congelamento dos bens de indivíduos ou empresas que apoiem grupos armados clandestinos na África. Agora em julho o governo americano posicionou-se oficialmente a respeito. A reforma das regras de Wall Street assinada pelo presidente Barack Obama incluiu um item que impõe às corporações americanas transparência quanto à origem dos minerais adquiridos para a produção de eletrônicos.
Além disso, em uma iniciativa rara nos Estados Unidos, dois deputados de partidos rivais, o democrata Jim McDermott e o republicano Frank Wolf, apresentaram conjuntamente um projeto de lei que pretende restringir as importações de produtos que utilizam minerais provenientes de zonas de conflito. Ele propõe que as empresas peçam à sua cadeia de fornecedores comprovação de que suas matérias-primas não fomentaram a crise do Congo e que aceitem as inspeções necessárias (que seriam pagas pelas próprias indústrias). Esse projeto de lei recebeu o apoio formal da Motorola e da Hewlett-Packard.
A HP já vem pressionando seus fornecedores para que revelem a procedência de suas matérias-primas há alguns anos. Embora a empresa não tenha encontrado evidências de que eles adquiram minério no Congo, pairam dúvidas. “Eles responderam que é difícil rastrear os metais até a mina de origem”, declarou recentemente Zoe McMahon, gerente de responsabilidade socioambiental da cadeia de valor da Hewlett-Packard. Na sua opinião, esse debate só poderá avançar se indústrias e stakeholders acompanharem de perto a situação na África, trabalharem pela pacificação do Congo, e desenvolverem juntos um sistema eficiente de rastreamento e certificação. Sem isso, de duas, uma – ou a indústria de eletrônicos terá sua sobrevivência comprometida ou terá que assumir que trabalha com materiais de procedência, no mínimo, duvidosa.
*Jornalista especializada em meio ambiente[:en]Os aparelhos podem ser ultramodernos, mas o processo de extração de metais usados em sua produção é, em muitos casos, dos mais arcaicos
Boa parte da indústria de eletrônicos depende de minérios cuja extração alimenta guerras sangrentas na África. O pior desses conflitos vem-se desenrolando na região leste da República Democrática do Congo, o antigo Zaire, que tem um subsolo muito rico. Ao longo da última década, ele matou pelo menos 5 milhões de pessoas – algo em torno de 8% da população do país.
“O Congo está ficando conhecido como o equivalente africano do Afeganistão, devido à violência interminável e à complexidade do conflito”, declarou recentemente Annika Hilding-Norberg, diretora do Instituto de Treinamento para Operações de Paz, nos Estados Unidos, ao New York Times.
O comércio de minerais ajuda a perpetuar esse quadro. As empresas de mineração são obrigadas a pagar um pedágio a grupos rebeldes, que empregam o dinheiro na compra de armas. Esses grupos invadem aldeias e promovem estupros para intimidar e punir as populações locais. No final de julho, por exemplo, os rebeldes invadiram um vilarejo isolado, próximo a uma base das Forças de Paz da ONU. Estupraram 200 mulheres, inclusive idosas, e vários meninos.
Os minérios obtidos pelos guerrilheiros são contrabandeados para países vizinhos, sobretudo Uganda e Ruanda. De lá viajam para a Malásia, a Tailândia, a Índia e a China, onde são processados e mesclados a metais de outras procedências, dificultando o rastreamento de sua origem. Por fim, eles são incorporados a componentes adquiridos pelas indústrias de notebooks, games, iPods, celulares e câmeras digitais.
Os quatro metais envolvidos nessa guerra são o ouro, usado em filamentos internos, o tungstênio, que permite que um celular vibre, o estanho, empregado na solda de componentes, e o tântalo, usado nos capacitores que armazenam eletricidade. Tem destaque o tântalo, essencial para a portabilidade dos eletrônicos – 70% das reservas conhecidas de tantalita estão no Congo.
Os protestos contra o comércio desses “metais conflituosos”, como são conhecidos, começam a pipocar em várias partes do mundo. Liderados pela Enough, um projeto que luta contra genocídios e crimes contra a Humanidade, celebridades estão propagando seu descontentamento e pressionando as indústrias de eletrônicos. Entre eles, a atriz Ashley Judd e Eve Ensler, autora da peça Monólogos da Vagina, que foram ao Congo para checar a situação de perto. Em junho, músicos famosos, como Norah Jones e Sheryl Crow, lançaram um CD para alertar sobre o conflito.
A ONU também acordou para o assunto e aprovou duas resoluções – uma no fim de 2008, outra um ano depois – propondo o congelamento dos bens de indivíduos ou empresas que apoiem grupos armados clandestinos na África. Agora em julho o governo americano posicionou-se oficialmente a respeito. A reforma das regras de Wall Street assinada pelo presidente Barack Obama incluiu um item que impõe às corporações americanas transparência quanto à origem dos minerais adquiridos para a produção de eletrônicos.
Além disso, em uma iniciativa rara nos Estados Unidos, dois deputados de partidos rivais, o democrata Jim McDermott e o republicano Frank Wolf, apresentaram conjuntamente um projeto de lei que pretende restringir as importações de produtos que utilizam minerais provenientes de zonas de conflito. Ele propõe que as empresas peçam à sua cadeia de fornecedores comprovação de que suas matérias-primas não fomentaram a crise do Congo e que aceitem as inspeções necessárias (que seriam pagas pelas próprias indústrias). Esse projeto de lei recebeu o apoio formal da Motorola e da Hewlett-Packard.
A HP já vem pressionando seus fornecedores para que revelem a procedência de suas matérias-primas há alguns anos. Embora a empresa não tenha encontrado evidências de que eles adquiram minério no Congo, pairam dúvidas. “Eles responderam que é difícil rastrear os metais até a mina de origem”, declarou recentemente Zoe McMahon, gerente de responsabilidade socioambiental da cadeia de valor da Hewlett-Packard. Na sua opinião, esse debate só poderá avançar se indústrias e stakeholders acompanharem de perto a situação na África, trabalharem pela pacificação do Congo, e desenvolverem juntos um sistema eficiente de rastreamento e certificação. Sem isso, de duas, uma – ou a indústria de eletrônicos terá sua sobrevivência comprometida ou terá que assumir que trabalha com materiais de procedência, no mínimo, duvidosa.
*Jornalista especializada em meio ambiente