Apesar das perspectivas sombrias sobre o que ainda está por vir, a catástrofe não é o único final possível, mesmo na ficção científica. Na arte como na vida, mais do que nunca precisamos de visões que unam cautela e esperança
Faz um tempo que decidi que basta, não quero mais encher olhos, ouvidos e mente com futuros apocalípticos, imagens do mundo sem nós ou os mais diferentes tons do armagedom. Claro, fica difícil ir ao cinema – onde reina uma profusão de catástrofes, zombies, heróis solitários em paisagens devastadas – ou mesmo assistir ao telejornal. Mas eis que, do reino da ficção científica, ergue-se uma voz: precisamos de utopias!
O britânico Charlie Stross, autor de duas dúzias de livros do gênero, explica por quê. “O consenso sobre o futuro que lemos na mídia e para o qual nos dirigimos é um nevoeiro turbulento, assaltado por demônios semiavistados: mudança climática, exaustão de recursos, pico do petróleo, extinção em massa, colapso da cadeia alimentar no oceano, superpopulação, terrorismo, estrangeiros que querem roubar nossos empregos”, Stross, que mora na Escócia, discorreu em seu blog. “Não é um bom lugar para se estar; se o passado é outro país, a visão consensual do futuro atualmente se parece com uma favela com esgoto correndo nas ruas.”
Faz sentido que o clamor por visões mais positivas venha da ficção científica, afinal trata-se do gênero que explora possibilidades alternativas, sempre em conexão com os impactos de inovações na ciência ou tecnologia em um cenário futuro. Ou, como definiu a canadense Margaret Atwood, autora do brilhante Oryx e Crake, entre outras obras de ficção científica: “É a porta para a parte mais sombria e também a mais iluminada de nosso mundo imaginativo; é um mapa do que mais desejamos e também do que mais tememos. Aponta para o que faríamos se pudéssemos”.
Nada de Pollyannas
“Utopia – um país fictício com sistemas legal e sociopolítico perfeitos – é, claro, ficção. É uma ferramenta polêmica mais bem usada como lente para examinar nossas ideias e como gostaríamos de viver”, escreveu Stross. Embora seja ela mesma ficção, a utopia é veículo pobre para a ficção: por ser perfeita, não se presta à tensão dramática e, pior, é persistente, não se esvai para dar lugar a algo diferente.
Apesar disso, Stross não está sozinho a pedir por visões otimistas, especialmente na ficção de futuro próximo, aquela que se passa nas próximas décadas e forja uma conexão com a vida do leitor. Em março de 2010 foi publicada Shine: An Anthology of Optimistic SF (Solaris Books), uma antologia de ficção científica otimista. Seu editor, Jetse de Vries, explicou: “O otimismo que busco é do tipo em que o futuro é melhor do que hoje. Não uma Pollyanna irracional, mas um futuro tão complicado e com escalas de cinza como hoje, onde pelo menos algum progresso suado é feito, onde as coisas mudam – mesmo com alguns sacrifícios – para melhor”.
Segundo De Vries, os autores lançam mão de várias desculpas para evitar cenários otimistas, a mais usada delas a de que neles falta tensão dramática. Para Kim Stanley Robinson, autor da Mars Trilogy – série de novelas dos anos 90 sobre a colonização de Marte com uma visão quase utópica –, trata-se de desculpa de “gente branca com a barriga cheia”. “Minha sensação é que, se estivessem famintos e doentes e vivendo em barracos de papelão [os autores], estariam mais dispostos a dar uma chance à utopia”, disse. Robinson garante que, se alcançássemos uma civilização sustentável, não faltaria drama: “Ainda haveria amor perdido, ainda haveria morte”.
Usar o artifício, como fazem muitos autores, de “pular” o próximo século e se aninhar nos confortos da ficção espacial não é válido, na visão de Robinson. “Sem incluir o próximo século, a conexão histórica imaginada entre agora e então se quebra, e a ficção espacial se torna um tipo de fantasia. Precisamos imaginar a coisa toda.”
Futuro legado
O futuro imaginado, porém, é carregado de passado. O escritor escocês Ken MacLeod faz uma analogia com a tecnologia da informação e o chamado “código legado”, código escrito por alguém que não está mais disponível e para o qual não há notas ou explicação, o que complica a vida dos programadores atuais. No caso da ficção científica, há o “texto legado” – todas as histórias de ficção científica que influenciam a história que um autor escreve. “A maioria de nós tem imagens default do futuro que vêm de Star Trek ou 2001 ou 1984 ou Dr. Who ou filmes catastróficos ou jogos de computador”, escreveu MacLeod. “Essas imagens interagem com a inclinação a projetar tendências diretamente para o futuro.” E, assim, o futuro acaba parecendo uma extensão do passado.
O futurista Jamais Cascio lembra que todos temos um tipo de “código legado” cognitivo: “Recebemos futuros legados nos negócios devido a estratégias e planos velhos, na política com orçamentos e projeções velhas, e no ambientalismo com análises antigas”. Assim como o “código legado” dificulta a vida dos programadores, os futuros legados complicam a tarefa de autores de ficção e pensadores do futuro, diz Cascio. “Não apenas temos que descrever um futuro surreal, mas plausível, que se coaduna com o pensamento atual, temos também que descobrir como lidar com as visões passadas do futuro que ainda colonizam nossas mentes.”
O futuro legado pode ser visto, segundo Cascio, nas projeções de população que não levam em conta as tecnologias que estendem a vida produtiva e a expectativa de vida; nas visões de um futuro sustentável reminiscentes da vida comunitária dos anos 70; nas previsões de um futuro viável que excluem a necessidade de lidar com desastres ambientais.
Não dá pra rebobinar
Nos anos 60 e 70, apesar da ameaça nuclear e da Guerra Fria, as histórias sobre o futuro previam o avanço da tecnologia, a exploração espacial e a formação de civilizações avançadas em colônias extraplanetárias. Mas o fracasso dos voos espaciais tripulados roubou o sentido de tais representações, diz a escritora e crítica Jo Walton.
Ela também credita a falta de cenários otimistas à reação às mudanças climáticas. “Muito mais do que a ameaça de aniquilação nuclear, elas parecem trazer consigo um anseio puritano por uma vida mais simples e verde, e a correspondente desconfiança da ciência e, especialmente, do progresso”, escreve Jo Walton. “Não é a realidade das mudanças climáticas o problema, mas a mentalidade que vem com ela. Se você sugerir a algumas pessoas que pequenos reatores nucleares, modernos e limpos, são uma boa maneira de gerar eletricidade, elas se contorcem de horror.”
Por fim, especula ela, há o fato de que a tecnologia se tornou complicada e misteriosa para o cidadão comum e, por isso, as pessoas preferem olhar para trás, para um tempo em que a tecnologia era compreensível e feita de bronze. Feliz ou infelizmente, não andamos para trás, e as histórias que inventamos sobre o futuro – há milhares e somos viciados nelas – acabam influenciando o aqui e agora.
Foi o que perceberam pesquisadores envolvidos na elaboração da Avaliação Ecossistêmica do Milênio, estudo do estado dos ecossistemas globais divulgado em 2005. Os cientistas construíram cenários para tentar prever como diferentes políticas afetariam os homens e os recursos que extraem do meio ambiente. Segundo Steve Carpenter, da Universidade de Wisconsin, cenários nada mais são do que “uma série de histórias sobre o futuro, derivadas de processos colaborativos e modelos, desenhadas para integrar diferentes perspectivas” e abordar questões complexas. “Para se livrar de armadilhas, as pessoas precisam de histórias positivas do que o futuro pode ser, e de alertas bruscos sobre caminhos perigosos”, escreveu (mais aqui).
Caminhos perigosos abundam, mas os riscos que inevitavelmente aparecerão não devem nos impedir de acreditar em futuros melhores, afirma Jamais Cascio. Ele defende que os pensadores do futuro adotem “um discurso que trate o medo de resultados perigosos como uma preocupação real e significativa, algo que não pode nem ser descartado como pessimismo nem tratado como a única verdade”. Tal discurso, acrescenta ele, poderia até reabilitar o conceito de progresso – a ideia de que, como civilização, aprendemos com nossos erros e somos capazes de tornar o futuro melhor do que o passado. Dificilmente alcançaríamos a fictícia utopia, como quer Charlie Stross. Mas, com uma visão em que convivem cautela e esperança, talvez fosse mais fácil acreditar que ainda há um futuro que vale construir.[:en]Apesar das perspectivas sombrias sobre o que ainda está por vir, a catástrofe não é o único final possível, mesmo na ficção científica. Na arte como na vida, mais do que nunca precisamos de visões que unam cautela e esperança
Faz um tempo que decidi que basta, não quero mais encher olhos, ouvidos e mente com futuros apocalípticos, imagens do mundo sem nós ou os mais diferentes tons do armagedom. Claro, fica difícil ir ao cinema – onde reina uma profusão de catástrofes, zombies, heróis solitários em paisagens devastadas – ou mesmo assistir ao telejornal. Mas eis que, do reino da ficção científica, ergue-se uma voz: precisamos de utopias!
O britânico Charlie Stross, autor de duas dúzias de livros do gênero, explica por quê. “O consenso sobre o futuro que lemos na mídia e para o qual nos dirigimos é um nevoeiro turbulento, assaltado por demônios semiavistados: mudança climática, exaustão de recursos, pico do petróleo, extinção em massa, colapso da cadeia alimentar no oceano, superpopulação, terrorismo, estrangeiros que querem roubar nossos empregos”, Stross, que mora na Escócia, discorreu em seu blog. “Não é um bom lugar para se estar; se o passado é outro país, a visão consensual do futuro atualmente se parece com uma favela com esgoto correndo nas ruas.”
Faz sentido que o clamor por visões mais positivas venha da ficção científica, afinal trata-se do gênero que explora possibilidades alternativas, sempre em conexão com os impactos de inovações na ciência ou tecnologia em um cenário futuro. Ou, como definiu a canadense Margaret Atwood, autora do brilhante Oryx e Crake, entre outras obras de ficção científica: “É a porta para a parte mais sombria e também a mais iluminada de nosso mundo imaginativo; é um mapa do que mais desejamos e também do que mais tememos. Aponta para o que faríamos se pudéssemos”.
Nada de Pollyannas
“Utopia – um país fictício com sistemas legal e sociopolítico perfeitos – é, claro, ficção. É uma ferramenta polêmica mais bem usada como lente para examinar nossas ideias e como gostaríamos de viver”, escreveu Stross. Embora seja ela mesma ficção, a utopia é veículo pobre para a ficção: por ser perfeita, não se presta à tensão dramática e, pior, é persistente, não se esvai para dar lugar a algo diferente.
Apesar disso, Stross não está sozinho a pedir por visões otimistas, especialmente na ficção de futuro próximo, aquela que se passa nas próximas décadas e forja uma conexão com a vida do leitor. Em março de 2010 foi publicada Shine: An Anthology of Optimistic SF (Solaris Books), uma antologia de ficção científica otimista. Seu editor, Jetse de Vries, explicou: “O otimismo que busco é do tipo em que o futuro é melhor do que hoje. Não uma Pollyanna irracional, mas um futuro tão complicado e com escalas de cinza como hoje, onde pelo menos algum progresso suado é feito, onde as coisas mudam – mesmo com alguns sacrifícios – para melhor”.
Segundo De Vries, os autores lançam mão de várias desculpas para evitar cenários otimistas, a mais usada delas a de que neles falta tensão dramática. Para Kim Stanley Robinson, autor da Mars Trilogy – série de novelas dos anos 90 sobre a colonização de Marte com uma visão quase utópica –, trata-se de desculpa de “gente branca com a barriga cheia”. “Minha sensação é que, se estivessem famintos e doentes e vivendo em barracos de papelão [os autores], estariam mais dispostos a dar uma chance à utopia”, disse. Robinson garante que, se alcançássemos uma civilização sustentável, não faltaria drama: “Ainda haveria amor perdido, ainda haveria morte”.
Usar o artifício, como fazem muitos autores, de “pular” o próximo século e se aninhar nos confortos da ficção espacial não é válido, na visão de Robinson. “Sem incluir o próximo século, a conexão histórica imaginada entre agora e então se quebra, e a ficção espacial se torna um tipo de fantasia. Precisamos imaginar a coisa toda.”
Futuro legado
O futuro imaginado, porém, é carregado de passado. O escritor escocês Ken MacLeod faz uma analogia com a tecnologia da informação e o chamado “código legado”, código escrito por alguém que não está mais disponível e para o qual não há notas ou explicação, o que complica a vida dos programadores atuais. No caso da ficção científica, há o “texto legado” – todas as histórias de ficção científica que influenciam a história que um autor escreve. “A maioria de nós tem imagens default do futuro que vêm de Star Trek ou 2001 ou 1984 ou Dr. Who ou filmes catastróficos ou jogos de computador”, escreveu MacLeod. “Essas imagens interagem com a inclinação a projetar tendências diretamente para o futuro.” E, assim, o futuro acaba parecendo uma extensão do passado.
O futurista Jamais Cascio lembra que todos temos um tipo de “código legado” cognitivo: “Recebemos futuros legados nos negócios devido a estratégias e planos velhos, na política com orçamentos e projeções velhas, e no ambientalismo com análises antigas”. Assim como o “código legado” dificulta a vida dos programadores, os futuros legados complicam a tarefa de autores de ficção e pensadores do futuro, diz Cascio. “Não apenas temos que descrever um futuro surreal, mas plausível, que se coaduna com o pensamento atual, temos também que descobrir como lidar com as visões passadas do futuro que ainda colonizam nossas mentes.”
O futuro legado pode ser visto, segundo Cascio, nas projeções de população que não levam em conta as tecnologias que estendem a vida produtiva e a expectativa de vida; nas visões de um futuro sustentável reminiscentes da vida comunitária dos anos 70; nas previsões de um futuro viável que excluem a necessidade de lidar com desastres ambientais.
Não dá pra rebobinar
Nos anos 60 e 70, apesar da ameaça nuclear e da Guerra Fria, as histórias sobre o futuro previam o avanço da tecnologia, a exploração espacial e a formação de civilizações avançadas em colônias extraplanetárias. Mas o fracasso dos voos espaciais tripulados roubou o sentido de tais representações, diz a escritora e crítica Jo Walton.
Ela também credita a falta de cenários otimistas à reação às mudanças climáticas. “Muito mais do que a ameaça de aniquilação nuclear, elas parecem trazer consigo um anseio puritano por uma vida mais simples e verde, e a correspondente desconfiança da ciência e, especialmente, do progresso”, escreve Jo Walton. “Não é a realidade das mudanças climáticas o problema, mas a mentalidade que vem com ela. Se você sugerir a algumas pessoas que pequenos reatores nucleares, modernos e limpos, são uma boa maneira de gerar eletricidade, elas se contorcem de horror.”
Por fim, especula ela, há o fato de que a tecnologia se tornou complicada e misteriosa para o cidadão comum e, por isso, as pessoas preferem olhar para trás, para um tempo em que a tecnologia era compreensível e feita de bronze. Feliz ou infelizmente, não andamos para trás, e as histórias que inventamos sobre o futuro – há milhares e somos viciados nelas – acabam influenciando o aqui e agora.
Foi o que perceberam pesquisadores envolvidos na elaboração da Avaliação Ecossistêmica do Milênio, estudo do estado dos ecossistemas globais divulgado em 2005. Os cientistas construíram cenários para tentar prever como diferentes políticas afetariam os homens e os recursos que extraem do meio ambiente. Segundo Steve Carpenter, da Universidade de Wisconsin, cenários nada mais são do que “uma série de histórias sobre o futuro, derivadas de processos colaborativos e modelos, desenhadas para integrar diferentes perspectivas” e abordar questões complexas. “Para se livrar de armadilhas, as pessoas precisam de histórias positivas do que o futuro pode ser, e de alertas bruscos sobre caminhos perigosos”, escreveu (mais aqui).
Caminhos perigosos abundam, mas os riscos que inevitavelmente aparecerão não devem nos impedir de acreditar em futuros melhores, afirma Jamais Cascio. Ele defende que os pensadores do futuro adotem “um discurso que trate o medo de resultados perigosos como uma preocupação real e significativa, algo que não pode nem ser descartado como pessimismo nem tratado como a única verdade”. Tal discurso, acrescenta ele, poderia até reabilitar o conceito de progresso – a ideia de que, como civilização, aprendemos com nossos erros e somos capazes de tornar o futuro melhor do que o passado. Dificilmente alcançaríamos a fictícia utopia, como quer Charlie Stross. Mas, com uma visão em que convivem cautela e esperança, talvez fosse mais fácil acreditar que ainda há um futuro que vale construir.