O trabalho é uma parte fundamental da experiência humana, mesmo assim mantemos uma relação pra lá de contraditória com ele
“Não existe trabalho ruim. O ruim é ter de trabalhar”, cravava o inigualável Seu Madruga em um dos episódios de Chaves, seriado infantil mexicano dos anos 70 que continua sendo reprisado até hoje, para a alegria de muitas crianças e não poucos marmanjos.
Criatura do comediante Roberto Bolaños, Seu Madruga era um tipo de malandro romântico cuja graça derivava da forma como ele encarnava um tipo peculiar de aversão ao trabalho que todo mundo já sentiu, à exceção dos workaholics. Estamos tão identificados com o dissabor que o personagem caricato sente pelo batente que, de uns tempos para cá, o rosto de Ramón Valdés – o ator que o viveu – começou a aparecer estampado nas camisetas da juventude mais antenada.
Acontece que trabalho é daquelas coisas cheias de contradições que podem ser descritas nos termos do “ruim com, pior sem”. Primeiro porque não temos para onde correr, precisamos de dinheiro e este – salvo algumas exceções – só se consegue trabalhando. Depois, porque ocupa um pedaço tão significativo de nossas vidas que fica impossível não levar para o pessoal.
Raízes
No livro Qual é a Tua Obra?, o filósofo e professor titular da PUC-SP Mario Sergio Cortella esmiúça as origens da nossa histórica má vontade para com o trabalho. Para ele, é possível acompanhar as raízes dessa concepção até a Grécia Clássica, onde o trabalho manual era reservado aos escravos e, por consequência, considerado indigno dos homens livres.
Essa ideia ganharia inércia própria até receber um segundo impulso na época em que o Cristianismo transplantou parte da mentalidade judaica para a Europa. Para a mitologia hebraica, o trabalho foi a punição que Javé reservou a Adão após este ter comido do fruto proibido. “Temos uma marca muito grande numa sociedade que, pelos últimos 2.500 anos, tem associado o trabalho a algo indigno”, explica Mario Sergio a Página22. Essa aura negativa só se dissipou um pouco lá pelo fim da Idade Média, quando a Reforma Protestante e a ascensão da burguesia industrial começaram a desmantelar os velhos sistemas servis. No definitivo A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o sociólogo alemão Max Weber nota que o termo vocação só ganhou seu sentido atual nas primeiras traduções luteranas da Bíblia.
Um novo paradigma
Mas há traços culturais que mudam em ritmos geológicos e o trabalho é um desses. Em parte porque não estamos tão distantes da realidade dos apertadores de parafusos mal pagos e sem futuro que Charles Chaplin registrou no magistral Tempos Modernos, de 1936. É bom ressaltar que, de vez em quando, os movimentos geológicos viram terremotos. É mais ou menos isso o que a cofundadora do Movimento Novo Olhar sobre as Relações de Trabalho, Rita Monte, parece estar pressentindo no horizonte. Há tempos ela sente que tem alguma coisa fervilhando na forma como as pessoas se relacionam com o trabalho. “Eu conhecia um monte de gente que, como eu, estava em busca de formas de trabalhar que fossem mais significativas. Eu não estava sozinha nisso”, elabora.
O Novo Olhar foi criado no fim de 2008 para observar essa tendência e sistematizar os aprendizados contidos nas histórias dessas pessoas. Várias centenas de histórias depois, a evidência acumulada convenceu Rita de que estamos prestes a ver surgir um novo paradigma, que colocará mais ênfase na autorrealização e no senso de propósito maior.
Ela reconhece que ainda não dá para dimensionar o tamanho da onda, mas aponta que há movimentos similares na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. E também que o fato de um país semidesconhecido como o Butão ter conseguido chamar a atenção mundial ao propor um indicador de Felicidade Interna Bruta indica que este é um ponto sensível.
Se a intuição do Novo Olhar estiver mesmo correta, o problema da felicidade no trabalho não é só uma disputa salarial, mas um sentimento difuso e crescente de fastio em relação aos modelos tradicionais. O professor Cortella comunga dessa opinião e saca um exemplo doméstico do bolso para justificar a posição. Uma de suas filhas largou um empregão em um dos maiores escritórios de advocacia paulistanos e mudou-se para Florianópolis atrás de qualidade de vida. “Ela ganha muito menos do que recebia aqui, mas, do ponto de vista da felicidade, a vida dela melhorou”, conta.
O Movimento Novo Olhar sobre as Relações de Trabalho mapeou as sensações mais frequentes das pessoas em relação a seu trabalho. Conheça cada uma delas aqui.
Para o Novo Olhar, esse desprendimento está ligado a algo chamado Ponto de Suficiência, ou seja, o patamar financeiro em que suas necessidades básicas estão confortavelmente cobertas e você opta por abrir mão de correr atrás de estilos de vida cheios de glamour em nome de mais paz de espírito. (Mais em reportagem desta edição.)
Esse tipo de pensamento tem aparecido com força entre pessoas ligadas ao Terceiro Setor e ao chamado empreendedorismo social. O gerente de finanças da Care do Brasil, Waldir Mafra, trocou os bons salários da iniciativa privada pela satisfação de fazer algo socialmente positivo. Embora ele admita que nem tudo é perfeito, saber que seu trabalho beneficia pessoas e comunidades o “motiva mais do que o salário no final do mês”.
O administrador de empresas Rafael Mambretti seguiu um caminho parecido, quando resolveu largar o cargo promissor numa empresa de e-commerce para empreender. Com o apoio do The Hub [1], Rafael e seu irmão – e sócio – Danilo fundaram a Carbono Zero Courier, em outubro passado. Trocando em miúdos, a empresa faz os mesmos serviços que uma empresa de motoboys, a diferença é que troca as motos por bicicletas.
[1] Iniciativa paulistana de coworking cuja proposta é funcionar como nó central em uma rede de negócios sustentáveis.
A empresa ainda não entrou no azul. Por enquanto, Rafael tem vivido de reservas e precisou fazer cortes. Meio por economia, meio por coerência, seu carro e sua moto foram trocados pela bicicleta. “Dá um pouco de medo, mas o dinheiro não faz tanta falta. Você descobre que tem uma camada de gordura que pode queimar sem sofrer. Estou feliz com o estilo de vida que estou levando e não pretendo alterá-lo quando a Carbono Zero começar a dar lucro”, conta. “O que me anima é mais o sentimento de realização do que o que poderei comprar com o dinheiro que vou ganhar”, completa.
Uma nova organização
Baiano radicado em São Paulo há 16 anos (mas sem perder o sotaque), Reinaldo Pamponet não se sente à vontade no papel de empreendedor-social – na opinião dele, a distinção entre o social e o mercado é artificial e só serve para enfraquecer ambos. Mas vale frisar que ele seguiu a trajetória canônica, largando um cargo executivo na Microsoft para explorar o potencial transformador das economias criativas primeiro com a Eletrocooperativa e, atualmente, com a Itsnoon, rede social de cocriação.
Para ele, há um descompasso entre as possibilidades criadas pelas novas redes tecnológicas e as iniciativas altermundistas, que, mesmo bem-intencionadas, acabam reproduzindo os padrões de sempre. “Nosso sistema foi desenhado como um centro de poder verticalizado e não como uma rede. Não adianta só tentar ‘rebootar’ o sistema, você precisa redesenhar tudo”, provoca.
E dá mais uma agulhada ao apontar como a estabilidade do emprego público voltou a atrair os jovens. “É um paradoxo, a gente tem um discurso muito inovador em uma sociedade extremamente careta”, prossegue.
O X e o Y da questão
O professor da Fundação Dom Cabral Heiko Spitzeck vê na busca por “algo mais” um reflexo do desembarque das gerações X e Y no mercado [2]. “Eles já têm um padrão de vida elevado e não estão atrás de empregos só por causa do salário, também dão muito valor a sua realização pessoal”, comenta o acadêmico, destacando que os departamentos de RH têm feito contorcionismos para manter essa turma contente. “Oferecer apenas salário é pouco para reter esse pessoal, eles costumam exigir das empresas uma visão diferente de gestão de carreiras e desenvolvimento pessoal”, conclui.
[2] Entre 30 e 40 anos, a geração X foi a pioneira do mundo digital. Já a Y tem entre 20 e 30 e é formada pelos nativos digitais. Confira outras diferenças em reportagem da edição 47 de Página22.
Nem todo mundo concorda que seja uma questão geracional. A Great Place to Work (GPTW) é uma consultoria que avalia a qualidade dos ambientes de trabalho desde os anos 80 – é dela o ranking anual das Melhores Empresas para Trabalhar, publicado pela revista Época. Segundo a diretora de projetos da GPTW, Roberta Hummel, os dados das gerações X e Y não têm revelado nenhum desvio significativo. Apesar dessa divergência, a opinião do GPTW não fica longe da do professor Spitzeck a respeito do que fixa os funcionários em seus empregos.
“O mais importante para manter os funcionários na empresa são as possibilidades de crescimento profissional. Isso não significa necessariamente avanços de carreira e de status, mas o desejo das pessoas de estar inseridas em ambientes desafiadores onde elas possam desenvolver novas habilidades e contribuir”, avalia.
O papel da liderança
Profissional de RH de uma empresa do ramo hospitalar e participante do Movimento Novo Olhar, Raylla Andrade considera que o excesso de pressão por resultados é o ralo por onde a felicidade vaza. “Bem usada, a pressão pode gerar bons resultados de curto prazo, porque muitos profissionais respondem bem sob pressão. Só que, se ela continuar indefinidamente, a tendência é que a coisa espane”, avalia, considerando que, apenas quando a liderança acha que vale a pena planejar um crescimento mais lento, é possível criar empresas felizes.
De acordo com Roberta, da GPTW, a relação entre chefia e empregados é vital. A relação com a liderança é, disparada, o fator mais importante na metodologia da Great Place to Work – contando 3/5 da nota final.
Evidente que nada é feito por filantropia. As empresas são animais monocórdios que sempre visam lucro, o que muda é a estratégia para chegar a ele. Roberta ressalta que, no caso dos investimentos em qualidade do ambiente de trabalho, a GPTW tem estudos sobre o impacto da felicidade dos trabalhadores no sucesso do negócio. “As empresas no topo do ranking também são as mais rentáveis em bolsa”, conclui.
Isso levanta dúvidas sobre os motivos que levam as empresas a serem “boazinhas”. O que as impediria de dar com a mão direita e tirar com a esquerda? Oferecendo, por exemplo, horários flexíveis que façam todo mundo trabalhar mais. A GPTW tenta blindar sua metodologia questionando os funcionários se eles são incentivados a equilibrar vida pessoal e profissional e se os benefícios oferecidos são percebidos como adequados e especiais. Além disso, Roberta considera que não seria possível obter bons resultados com ações da boca para fora. “Só dá certo quando a liderança acredita de verdade que as pessoas são estratégicas. Copiar práticas da moda não funciona, porque as pessoas percebem quando você está sendo sincero”, completa.
No fundo, nossa visão pessimista sobre o trabalho é parte da eterna insatisfação humana. Encontrar motivos para reclamar faz parte de nossa natureza, não importando se, no fim do dia, nosso peito estoure de orgulho. O que precisamos é permanecer atentos para ver se a experiência compensa ou é pura perda de tempo. “O trabalho não precisa ser um momento em que você troca sua dignidade por dinheiro. Ele possui uma forte dimensão existencial e pode ser uma expressão daquilo que você é”, arremata Rita, do Novo Olhar.
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Só trabalho e nenhuma diversão…
…fazem de Jack um bobão. Quem assistiu – ou leu – ao clássico O Iluminado conhece essa frase. A cena onde ela aparece repetida milhares de vezes é antológica. Terrores ficcionais à parte, a sentença alerta para um fantasma real: o da superexploração do trabalho.
No discurso oficial, a superexploração acabou junto com o capitalismo selvagem. Contudo, esse dragão costuma botar a cabeça para fora com frequência. Ano passado, a Foxconn – famosa por montar a maioria das iCoisas da Apple – lidou com uma onda de suicídios entre seus funcionários atribuída ao excesso de trabalho. Onze pessoas tiraram a própria vida.
Tem quem descarte essas histórias como se elas só acontecessem em cantos problemáticos. Mas há casos de más práticas até em setores que, na teoria, deveriam se opor a elas. “O Terceiro Setor adota um discurso de defesa da igualdade, mas, muitas vezes, encontramos problemas sérios nas organizações”, reconhece o diretor da regional São Paulo da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e gerenteadministrativo da Care do Brasil, Waldir Mafra.
O Terceiro Setor coloca uma armadilha que, se não for desarmada, pode provocar danos. Como os salários são mais magros do que os da iniciativa privada, grande parte dos profissionais trabalha por amor à causa. Aí que mora o perigo. Quando você se sente feliz em ajudar, fica mais difícil dizer não a situações abusivas.
O presidente da Federação Nacional dos Empregados em Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas, Geraldo Gonçalves, já viu coisas estapafúrdias. “Tem entidades que querem que seus empregados assinem termos de voluntariado, pois assim qualquer coisa que façam fora do horário de trabalho fica sendo serviço voluntário”, reclama.
Para piorar, muitas organizações desse setor são empreendimentos meio caseiros e financeiramente vulneráveis. “Quando os governos municipais cortam orçamento, começam pelos convênios sociais, o que deixa muitas organizações em apuros”, exemplifica Geraldo. Mesmo que as dificuldades existam, há coisas que não deveriam ser negociadas. “Precisamos ter cuidado com a coerência. Não podemos reproduzir o que o Segundo Setor tem de pior e passar a olhar nossos trabalhadores como máquinas”, diz Mafra.