Está no site de relacionamentos: enquanto 500 mil amam milk-shake de Ovomaltine do Bob’s e 800 mil adoram McDonald’s, apenas 549 amam a Mata Atlântica e 1.600, a Amazônia
Tenho críticas a fazer às árvores: elas não realizam campanhas publicitárias. Em um mundo que se move a ritmo cada vez mais ligeiro, os troncos mantêm sua inércia verde. E, quando convidados pelo vento a sair do lugar, tombam. Ou as árvores viraram um produto ultrapassado, ou o que falta mesmo é uma agência de comunicação para promover seus benefícios.
Prova disso está em uma página de relacionamentos da internet, última moda para conhecer os anseios e as opiniões do público, quando o assunto é mercado consumidor. Por meio de uma breve consulta ao site, descobri que mais de 800 mil pessoas amam Coca-Cola.
Enquanto isso, à exceção da escola de samba carioca, a mangueira não tem nada em sua homenagem, nem a amendoeira. Com 6 pessoas, há uma comunidade de fãs do limoeiro. A jabuticabeira é amada por quase três vezes esse número, ao passo que 14 indivíduos adoram o pau-brasil. O indicador mais preocupante, todavia, tem a ver com a macieira, já que 110 pessoas nunca viram uma, embora, tenho certeza, conheçam um Big Mac.
Além de sombra, absorção do gás carbônico da atmosfera e alimentação, as árvores e suas folhas protegem o solo contra a erosão. De acordo com artigo do site Árvores Brasil, a erosão leva areia para o fundo do rio, deixando-o mais raso. A menor capacidade de guardar água em seu curso leva à falta do líquido, em meses de menos chuva. Um solo sem vegetação também fica sem barreira para a água, que escorre rapidamente quando chove. Isso dificulta a penetração dos pingos e acelera o ressecamento dos lençóis freáticos, levando à falta de água potável.
Para ficar em uma situação bem próxima, a seca pode influenciar no custo dos alimentos que chegam à sua mesa, fazendo com que se gaste mais para comer e falte orçamento para atividades de lazer, ou saúde. Se passarmos das árvores a outros símbolos da natureza que deveriam estar na principal pauta de diálogo do ser humano, visando o seu bem-estar, o panorama é muito parecido. Enquanto um número superior a 500 mil indivíduos ama milk-shake de Ovomaltine do Bob’s e em torno de 800 mil “adoram McDonald’s”, 549 amam a Mata Atlântica e cerca de 1.600, a Amazônia – ainda segundo o site.
É claro que nem toda a felicidade do mundo diz respeito à conservação do meio ambiente, porém, o respeito ao verde é uma das condições fundamentais para a satisfação de nossas necessidades básicas. Em um meio de vida impróprio, torna-se mais fácil adoecer, esgotam-se os recursos do planeta, não se desenvolvem o conhecimento e nem mesmo as relações com as pessoas.
Um exemplo é o trânsito. De acordo com pesquisa feita em 2010 pelo Movimento Nossa São Paulo, o paulistano gasta, em média diária, 2 horas e 42 minutos no trânsito. Por mês, o equivalente a quase três dias e meio. É tempo que ele poderia relaxar, dedicando-se à atividade física, à família ou a uma viagem. Um hobby, e até ficar de pernas para o ar. Assim, feliz.
A dependência criada em relação ao carro é evidente, seja pelo modelo de sociedade, seja pelo incentivo de políticas de transporte e cultura da população mundial. A Chevrolet já apostou no slogan “Andando na frente”. E quem quer ficar para trás? Ser superado a pé? Perder tempo no desconforto de um ônibus lotado? O crescimento industrial traz benefícios. No entanto, promove desequilíbrios. Segundo indicadores do site São Paulo é Tudo de Bom, a cidade tem 54 parques e áreas verdes, contra 34 mil indústrias. Algo deve estar errado, se desejamos preservar a alegria de nossos pulmões.
As empresas criam discursos publicitários para associar suas marcas a conceitos abstratos, conquistam as pessoas e vendem produtos. O problema é se deixar levar pelas mensagens, acreditando nelas como a mais pura verdade. Quando o consumidor se identifica com a marca, perde sua capacidade crítica. Bebe Coca-Cola por acreditar que aquilo lhe atribui juventude. Traga um cigarro Carlton por ver naquele rolo de tabaco um dos mais raros prazeres que a vida pode lhe proporcionar.
A margarina Qualy se relaciona com qualidade de vida. Mas quem consegue ter qualidade de vida em uma casa erguida em terreno irregular? Toneladas de margarina no café da manhã da população de cidades da Região Serrana, no Rio de Janeiro, não teriam evitado a tragédia das chuvas. Na propaganda das árvores, uma sugestão pouco usual: “Na hora de construir, se você procura uma resposta, qualidade de vida é longe da encosta”. Jamais observei um produto com frases desse tipo no rótulo. Ótima para acompanhar tijolos.
Os valores embutidos nas mensagens publicitárias começam a ser introjetados ainda na infância. O Passaporte da Alegria, no Playcenter, e Quick (faz do leite uma alegria) agem como se fosse necessário adquirir algo para ter acesso à satisfação plena. A hora do lanche é a hora mais feliz, hora de comer biscoitos São Luiz. Em primeiro lugar, a hora mais feliz pode ser a de jantar em casa, com a família. E não a do lanche. Em segundo lugar, o que faz do momento o mais feliz pode não ser o biscoito no prato, mas a espontaneidade da vida, sem os seus sorrisos programados.
Uma das primeiras músicas cantadas pela apresentadora Xuxa em seu programa, nos anos 1980, continha os versos Amiguinha Xuxa é hora de brincar,/ estamos esperando só você chegar./ A felicidade se fantasiou de amor./ Bom dia, amiguinhos, já estou aqui./ Tenho tanta coisa pra nos divertir. A melodia fica na cabeça. Contudo, não podemos ser dependentes de produtos da publicidade para ser felizes, da forma que eles esperam que nós sejamos.
Quando tinha 17 anos, comecei a usar óculos. Percebi que o mundo era um sem óculos e outro, com as lentes corretivas. O desenho de uma mesa ganhava contornos diferentes. Nas distinções do rosto das pessoas, de um barco no horizonte ou nas letras do texto, vi que o mundo está nos olhos de quem vê. O lugar de gente feliz não é o supermercado da esquina, um grande salão organizado por seções, onde você paga por suas compras no fim do percurso entre as prateleiras.
O discurso da propaganda de um produto se apropria de elementos com os quais o público já se identifica, dando a impressão de que acabamos de encontrar o produto de que mais necessitávamos. É possível que a crítica sobre a falta de campanhas publicitárias das árvores não se justifique. Elas devem se expressar e divulgar de outras formas, usando mídias menos digitais e mais naturais. A gente é que não entende. Fica distraído com outras coisas.
*Jornalista.