No Brasil, a democracia participativa ainda tem muito que evoluir, em termos de qualidade e alcance. Uma série de experiências, dentro e fora da política, ensina a arte do diálogo e da convergência
A plenária está lotada. Centenas de pessoas aglomeram-se numa reunião que começou pela manhã e, madrugada alta, ainda não dá sinais de conclusão. A lista de inscrição parece não ter fim, já que mais e mais participantes interrompem o processo com encaminhamentos e questões de ordem. Alguns dormem nas cadeiras, escorados nas paredes, sem poder ir embora, para não se perder o quórum. Cada ponto da matéria tem de ser aprovado por votação, em um jogo previamente orquestrado por grupos de poder, prontos a premiar aliados e retaliar desertores.
Essa poderia ser a descrição de uma quarta-feira no Congresso Nacional, num daqueles raros momentos em que a relevância da votação empurra os trabalhos noite adentro. Mas não. Esse é um mosaico construído por nós a partir das lembranças de Clóvis Henrique Leite de Souza, facilitador profissional de processos participativos, sobre espaços em que a sociedade ganhava o direito de debater e intervir na política. O que há de errado com essa cena?
Na obra Democratizar a Democracia, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos explica que a democracia representativa e a participativa [1] têm, no fundo, a mesma motivação: o reconhecimento da pluralidade humana. Mas essa pluralidade latente vem-se tornando continuamente mais complexa. Ampla demais, diz a literatura especializada, para se contentar apenas com o voto e o direito à candidatura oficial.
[1] Enquanto a primeira restringe o envolvimento da população às eleições, a segunda amplia as possibilidades de consulta, deliberação e fiscalização.
No Brasil, por exemplo, a transição democrática vivida nos anos 1980 criou a ponte entre a atuação política monopolizada pelos sindicatos e um estouro de causas e movimentos os mais variados, como explica o pesquisador do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), José Moroni: “O que a gente tinha até então era a relação capital-trabalho. De um lado os sindicatos e, de outro, o movimento popular representado pelas associações de bairros, que eram interpretados como algo menor. O que se viu depois foi a afirmação de diferentes sujeitos políticos”.
Não é por acaso, portanto, que, de 115 conferências nacionais temáticas realizadas no País entre 1941 e 2010, 74 tenham acontecido só nos últimos oito anos, segundo dados da Secretaria-Geral da Presidência da República. Destas, ao menos um terço corresponde a temas inéditos para a participação institucionalizada, como direitos indígenas, direitos da pessoa idosa, juventude, LGBT.
A moral da nossa historinha de abertura é que, além do conteúdo, a participação política tem a oportunidade de inovar também na forma de diálogo, em lugar de mimetizar velhos processos. Se é verdade que duas cabeças pensam melhor que uma, também é verdade que milhares de cabeças podem dar um nó. E isso abre caminho para confirmar aquilo que Moroni chama de “mitos da democracia participativa”, segundo os quais a população não estaria preparada para decidir, ou, quanto maior a escala, mais moroso e difícil é o processo.
Com tantas aspirações democráticas pululando em diferentes partes do mundo, Página22 oferece sua contribuição de um jeito particular: aproveitando o ensejo para refletir sobre a qualidade da nossa própria democracia. Ao longo desta reportagem, apresentamos uma série de experiências que buscaram vencer os obstáculos e dar mais fluidez e efetividade à participação. (Mais em Artigo, desta edição)
Fora o protocolo
“Existem inúmeras boas formas de definir prioridades e nenhuma delas é votação”, diz Eduardo Rombauer [2], consultor que, ao lado de Leite de Souza, moderou oito conferências nacionais entre 2002 e 2009. “Um ponto central é aumentar a interação. Mudar a tradição ‘assembleísta’, em que, numa plenária de 500 pessoas, uma só fala, e o resto escuta”, diz Leite de Souza.
[2] É também um dos fundadores do Movimento Marina Silva e assina artigo nesta edição.
Com os participantes divididos em subgrupos, os facilitadores os encorajam a definir prioridades, em lugar de uma lista extensa de propostas. Transpostas para a plenária geral, as prioridades transformam-se em “ideias-força”, entre as quais cada pessoa pode distribuir uma quantidade definida de pontos, da maneira que desejar. Esse método possibilita enxergar as ideias num gráfico de pontuação, que revela aquelas com maior fator de convergência. O resultado é uma lista enxuta de recomendações prioritárias. Cada uma carrega consigo, no texto final, uma lista de argumentos favoráveis e contrários.
“O cara que discorda fica feliz da vida, porque o argumento contrário dele também aparece lá na prioridade”, lembra Rombauer. “Você inclui o diferente. Pode não ser a hora daquela ideia, mas a inteligência da minoria precisa estar embutida no que a maioria construiu. Isso é inteligência coletiva.”
Isso é também uma resposta para duas problemáticas essenciais aos processos participativos. A primeira diz respeito ao componente pedagógico das metodologias. É imprescindível que as pessoas aprendam a conversar, uma arte finíssima que envolve saber ouvir, colaborar e lidar com a diferença.
Rombauer chegou a protestar contra o caráter deliberativo – que costuma ser o favorito dos atores sociais – da primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, antevendo que a obrigação de deliberar sobre pessoas que nunca tinham conversado antes transformaria o espaço num combate. Foi ao então ministro da Justiça, Tarso Genro, e conseguiu mudar a proposta para uma conferência consultiva. Sem a pressão de decidir, diz o facilitador, a encontro produziu boas propostas e, mais que um evento, inaugurou um processo de diálogo.
A segunda é a negação do temor que se criou, a partir da década de 80, de uma sobrecarga democrática. Na Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em 2004, quando o método das ideias-força foi testado pela primeira vez, o resultado foi uma lista de 30 propostas. No ano seguinte, a Conferência Nacional de Igualdade Racial chegou a 1.052 delas.
Segundo levantamento de Leite de Souza, durante os oito anos do governo Lula as conferências produziram mais de 14 mil deliberações. “Esse número é absurdo. É sinal de que as pessoas não encontraram a convergência”, diz o especialista.
Afunilar tantas agendas em consenso depende também da interação entre os diferentes temas. Se os ativistas da saúde desaprovam a legalização do aborto, por exemplo, e o movimento de mulheres é favorável, como avaliar a porosidade do governo às propostas da sociedade, quando acatar uma direção significa negar a outra?
Interdisciplinaridade é um passo novo para a democracia participativa. E, segundo Pedro Pontual, diretor de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, um passo que não está fora do radar governamental: “Tivemos recentemente uma conferência de saúde ambiental, porque ficou claro que existe uma intersecção das conferências de meio ambiente e saúde. Em Direitos Humanos, também existem quatro outros espaços (crianças, idosos, pessoas com deficiência e LGBT) que vinham caminhando numa dinâmica própria. Estamos tentando repensar essa lógica”.
É um desafio para a sociedade tanto quanto para os quadros de governo, especialmente numa época em que a mudança do clima impõe a necessidade de integração de políticas. Talvez este seja um indicativo da percepção de Rombauer de que a democracia, mais que um modelo de governo, é uma cultura que nós apenas começamos a construir.
São Paulo foi uma das poucas cidades do mundo a constituir um Comitê de Mudanças Climáticas, composto de representantes de governo e da sociedade civil. As dificuldades de colaboração não deixaram de aparecer, segundo Adalberto Maluf, da Fundação Clinton: “Alguns gestores não gostam de compartilhar informação, porque acreditam que significa perder poder. Significa que o processo pode continuar sem ele”. Em se tratando de continuidade das políticas a longo prazo, bem, a ideia é exatamente essa.
Missão de paz
Quem adentra um espaço de colaboração com gente que pensa diametralmente diferente deve considerar um conselho valioso: comece pelas convergências. Isso significa estabelecer uma base de linguagem comum. “Se eu acredito na reforma agrária e você acredita no latifúndio, e isso está no campo dos valores, a gente não vai chegar a um acordo. É melhor pactuar o que é convergente. Dá para fazer um Plano Safra diferenciado para latifundiários e pequenos agricultores? Aí a gente começa a caminhar juntos”, ensina Leite de Souza.
Para alguns, isso pode ser o beabá do bom-senso, mas não é o que se vê de mais comum, na política ou fora dela. Tome-se como exemplo a disputa de ruralistas e ambientalistas em torno do Código Florestal. “Nenhum dos lados hoje tem força para enfiar goela abaixo da sociedade uma visão unilateral. Se for no ‘ganha-perde’, tem uma reação do outro lado”, avalia Clayton Ferreira Lino, presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Foi essa habilidade que Lino usou para dirimir um dos conflitos mais frequentes no mundo da conservação: ambientalistas querem manter uma área protegida e as comunidades do entorno acham que o progresso é limitado por ela. Para conseguir manter o Parque Estadual de Jacupiranga, no Vale do Ribeira (SP), Lino procurou o poder público não com os argumentos da conservação e da biodiversidade, mas com uma agenda comum. Lembrou ao prefeito que eliminar o parque significava reduzir substancialmente o ICMS Ecológico, o que acabaria forçando o poder público, no limite da Lei de Responsabilidade Fiscal, a promover demissões.
O processo participativo, que envolveu todas as partes interessadas, demorou dois anos, possivelmente o mesmo tempo que levaria a tentativa de extinguir o parque, sem garantia de sucesso. No começo de 2007, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou uma alteração consensual, que excluiu algumas áreas, agregou outras, e transformou a área num mosaico de unidades de conservação. “As pessoas querem que o município perca o ICMS Ecológico? Não. Querem destruir a natureza? Não. Querem expulsar populações tradicionais? Não. Tinha muito mais acordo que desacordo”, considera Lino.
Temas blindados
O que dizer daquelas áreas de interesse em que nem sequer há espaço para descobrir convergências? Em matéria de governo, elas são basicamente duas: política macroeconômica e projetos considerados estratégicos. De nada adiantou, como lembra Leite de Souza, que o Comitê da Bacia do São Francisco, o Conselho Nacional do Meio Ambiente e a Conferência Nacional do Meio Ambiente tivessem rechaçado em uníssono o projeto da transposição. (Leia mais na reportagem Goela Abaixo à pág. 30).
“Nessa área da economia, quem tem capital sempre foi considerado o principal agente da discussão. Ele não se sujeita a processos participativos. Liga para o ministro e resolve”, explica Moroni.
O argumento oficial corrente é que certas áreas de governo são essencialmente técnicas e não poderiam ficar vulneráveis às paixões da sociedade. O economista Eduardo Marques, coordenador do Fórum Paulista de Orçamento Participativo, chega a se exaltar quando ouve essa justificativa: “Se o problema fosse esse, vamos combinar que o Executivo não poderia apresentar orçamento e o Legislativo não poderia aprovar. O que tenho visto nas experiências do OP é que, no final de um período, a população sabe mais sobre orçamento que muitos secretários e vereadores”.
Resta ainda a conclusão bastante óbvia de que, se a participação é um valor, capacitar representantes da sociedade civil para debater em pé de igualdade não seria um procedimento do outro mundo. O Orçamento Participativo é um bom indicador dessa barreira. São raríssimos os casos em que a população tem a chance de deliberar sobre a totalidade do orçamento, diz Marques.
Pedro Pontual reconhece a legitimidade da demanda e diz que já se constatam alguns avanços. Para este ano, planeja-se uma reunião dos conselhos nacionais de políticas públicas sobre o Plano Plurianual (PPA). Mas a grande ambição continua sendo instituir a participação no Comitê de Política Monetária (Copom). “Nenhuma novidade. No regime militar esse espaço já contava com representantes dos empresários e dos trabalhadores”, diz Moroni.
Cidadão-pipoca
Incluir o cidadão não organizado é uma fronteira dos processos participativos. Muitas vezes, os espaços institucionalizados requerem formalidades, como CNPJ, e isso favorece mais o envolvimento de representantes da classe média. Outras vezes, as próprias organizações da sociedade civil resistem à abertura. A primeira experiência de orçamento participativo, em Porto Alegre, nos anos 1990, inovou ao garantir voto a qualquer pessoa interessada. Moroni relata que, nos primeiros dois anos, as organizações sociais chegaram a boicotar, porque entendiam que detinham o monopólio da participação.
Foi pensando nesse desafio que Eduardo Rombauer criou as conferências livres. A experiência, que aumentou de sete a dez vezes o número total de participantes sem elevar os custos, consistia em permitir que qualquer reunião de cidadãos, em qualquer contexto, pudesse encaminhar propostas para as conferências oficiais. “A gente percebeu que as ideias mais criativas vinham daí. O Estado deixa de determinar o espaço da participação e passa a reconhecer os espaços que a sociedade cria.”
Mãos à obra
Fora do universo duro da política, uma porção de experiências locais pode dar boas lições sobre participação. Aqui destacamos duas. O movimento Transition Towns, que visa enfrentar a mudança do clima e reduzir a dependência de petróleo no nível local, instalou-se há pouco mais de um ano na Granja Viana, em São Paulo.
Nesse período, o movimento conseguiu realizar uma feira de orgânicos mensal para apoiar produtores da região, oficinas de lixo, um mutirão para transferência de domicílio eleitoral dos moradores, entre outras atividades. Tudo com apenas quatro mulheres na coordenação e outros colaboradores que elas chamam de “satélites”.
O segredo, segundo a arquiteta Isabela Menezes e a psicanalista Adriana Trindade, é a diversão. A possibilidade de as pessoas contribuírem com o que gostam de fazer aumenta as chances de sucesso, além de garantir a diversidade de talentos. Outro ponto é que a liderança circular, orgânica, permite que o movimento continue mesmo quando alguns participantes desistem.
O caráter lúdico também é o forte dos projetos Oásis, do Instituto Elos. Thaís Polydoro, gestora do núcleo de realização do Elos, destaca algumas etapas importantes. Por exemplo: envolver lideranças afetivas do local, que não necessariamente são as lideranças políticas. Realizar algum passo concreto em direção ao sonho no intervalo de dois dias (restaurar uma praça, por exemplo), para estimular a continuidade. E, ainda, reservar tempo para celebrar cada realização, uma lição da pedagogia indígena.
O cerne da proposta dos Oásis é transformar a realidade a partir dos recursos locais, materiais e humanos. Um olhar de abundância, não de escassez, que pode ser aplicado mesmo numa tragédia. Foi o que aconteceu em doze comunidades de Santa Catarina, depois do desastre das chuvas em 2010. “O barro que tomava o lugar podia ser usado para fabricar tijolos. O mesmo vale para as árvores que desabaram dos morros. Em apenas um dia, moradores construíram uma ponte com essa madeira, algo que eles esperavam que o poder público fizesse havia seis meses”, lembra Thaís. Vai ver que a participação não é tão complicada assim.[:en]No Brasil, a democracia participativa ainda tem muito que evoluir, em termos de qualidade e alcance. Uma série de experiências, dentro e fora da política, ensina a arte do diálogo e da convergência
A plenária está lotada. Centenas de pessoas aglomeram-se numa reunião que começou pela manhã e, madrugada alta, ainda não dá sinais de conclusão. A lista de inscrição parece não ter fim, já que mais e mais participantes interrompem o processo com encaminhamentos e questões de ordem. Alguns dormem nas cadeiras, escorados nas paredes, sem poder ir embora, para não se perder o quórum. Cada ponto da matéria tem de ser aprovado por votação, em um jogo previamente orquestrado por grupos de poder, prontos a premiar aliados e retaliar desertores.
Essa poderia ser a descrição de uma quarta-feira no Congresso Nacional, num daqueles raros momentos em que a relevância da votação empurra os trabalhos noite adentro. Mas não. Esse é um mosaico construído por nós a partir das lembranças de Clóvis Henrique Leite de Souza, facilitador profissional de processos participativos, sobre espaços em que a sociedade ganhava o direito de debater e intervir na política. O que há de errado com essa cena?
Na obra Democratizar a Democracia, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos explica que a democracia representativa e a participativa [1] têm, no fundo, a mesma motivação: o reconhecimento da pluralidade humana. Mas essa pluralidade latente vem-se tornando continuamente mais complexa. Ampla demais, diz a literatura especializada, para se contentar apenas com o voto e o direito à candidatura oficial.
[1] Enquanto a primeira restringe o envolvimento da população às eleições, a segunda amplia as possibilidades de consulta, deliberação e fiscalização.
No Brasil, por exemplo, a transição democrática vivida nos anos 1980 criou a ponte entre a atuação política monopolizada pelos sindicatos e um estouro de causas e movimentos os mais variados, como explica o pesquisador do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), José Moroni: “O que a gente tinha até então era a relação capital-trabalho. De um lado os sindicatos e, de outro, o movimento popular representado pelas associações de bairros, que eram interpretados como algo menor. O que se viu depois foi a afirmação de diferentes sujeitos políticos”.
Não é por acaso, portanto, que, de 115 conferências nacionais temáticas realizadas no País entre 1941 e 2010, 74 tenham acontecido só nos últimos oito anos, segundo dados da Secretaria-Geral da Presidência da República. Destas, ao menos um terço corresponde a temas inéditos para a participação institucionalizada, como direitos indígenas, direitos da pessoa idosa, juventude, LGBT.
A moral da nossa historinha de abertura é que, além do conteúdo, a participação política tem a oportunidade de inovar também na forma de diálogo, em lugar de mimetizar velhos processos. Se é verdade que duas cabeças pensam melhor que uma, também é verdade que milhares de cabeças podem dar um nó. E isso abre caminho para confirmar aquilo que Moroni chama de “mitos da democracia participativa”, segundo os quais a população não estaria preparada para decidir, ou, quanto maior a escala, mais moroso e difícil é o processo.
Com tantas aspirações democráticas pululando em diferentes partes do mundo, Página22 oferece sua contribuição de um jeito particular: aproveitando o ensejo para refletir sobre a qualidade da nossa própria democracia. Ao longo desta reportagem, apresentamos uma série de experiências que buscaram vencer os obstáculos e dar mais fluidez e efetividade à participação. (Mais em Artigo, desta edição)
Fora o protocolo
“Existem inúmeras boas formas de definir prioridades e nenhuma delas é votação”, diz Eduardo Rombauer [2], consultor que, ao lado de Leite de Souza, moderou oito conferências nacionais entre 2002 e 2009. “Um ponto central é aumentar a interação. Mudar a tradição ‘assembleísta’, em que, numa plenária de 500 pessoas, uma só fala, e o resto escuta”, diz Leite de Souza.
[2] É também um dos fundadores do Movimento Marina Silva e assina artigo nesta edição.
Com os participantes divididos em subgrupos, os facilitadores os encorajam a definir prioridades, em lugar de uma lista extensa de propostas. Transpostas para a plenária geral, as prioridades transformam-se em “ideias-força”, entre as quais cada pessoa pode distribuir uma quantidade definida de pontos, da maneira que desejar. Esse método possibilita enxergar as ideias num gráfico de pontuação, que revela aquelas com maior fator de convergência. O resultado é uma lista enxuta de recomendações prioritárias. Cada uma carrega consigo, no texto final, uma lista de argumentos favoráveis e contrários.
“O cara que discorda fica feliz da vida, porque o argumento contrário dele também aparece lá na prioridade”, lembra Rombauer. “Você inclui o diferente. Pode não ser a hora daquela ideia, mas a inteligência da minoria precisa estar embutida no que a maioria construiu. Isso é inteligência coletiva.”
Isso é também uma resposta para duas problemáticas essenciais aos processos participativos. A primeira diz respeito ao componente pedagógico das metodologias. É imprescindível que as pessoas aprendam a conversar, uma arte finíssima que envolve saber ouvir, colaborar e lidar com a diferença.
Rombauer chegou a protestar contra o caráter deliberativo – que costuma ser o favorito dos atores sociais – da primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, antevendo que a obrigação de deliberar sobre pessoas que nunca tinham conversado antes transformaria o espaço num combate. Foi ao então ministro da Justiça, Tarso Genro, e conseguiu mudar a proposta para uma conferência consultiva. Sem a pressão de decidir, diz o facilitador, a encontro produziu boas propostas e, mais que um evento, inaugurou um processo de diálogo.
A segunda é a negação do temor que se criou, a partir da década de 80, de uma sobrecarga democrática. Na Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em 2004, quando o método das ideias-força foi testado pela primeira vez, o resultado foi uma lista de 30 propostas. No ano seguinte, a Conferência Nacional de Igualdade Racial chegou a 1.052 delas.
Segundo levantamento de Leite de Souza, durante os oito anos do governo Lula as conferências produziram mais de 14 mil deliberações. “Esse número é absurdo. É sinal de que as pessoas não encontraram a convergência”, diz o especialista.
Afunilar tantas agendas em consenso depende também da interação entre os diferentes temas. Se os ativistas da saúde desaprovam a legalização do aborto, por exemplo, e o movimento de mulheres é favorável, como avaliar a porosidade do governo às propostas da sociedade, quando acatar uma direção significa negar a outra?
Interdisciplinaridade é um passo novo para a democracia participativa. E, segundo Pedro Pontual, diretor de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, um passo que não está fora do radar governamental: “Tivemos recentemente uma conferência de saúde ambiental, porque ficou claro que existe uma intersecção das conferências de meio ambiente e saúde. Em Direitos Humanos, também existem quatro outros espaços (crianças, idosos, pessoas com deficiência e LGBT) que vinham caminhando numa dinâmica própria. Estamos tentando repensar essa lógica”.
É um desafio para a sociedade tanto quanto para os quadros de governo, especialmente numa época em que a mudança do clima impõe a necessidade de integração de políticas. Talvez este seja um indicativo da percepção de Rombauer de que a democracia, mais que um modelo de governo, é uma cultura que nós apenas começamos a construir.
São Paulo foi uma das poucas cidades do mundo a constituir um Comitê de Mudanças Climáticas, composto de representantes de governo e da sociedade civil. As dificuldades de colaboração não deixaram de aparecer, segundo Adalberto Maluf, da Fundação Clinton: “Alguns gestores não gostam de compartilhar informação, porque acreditam que significa perder poder. Significa que o processo pode continuar sem ele”. Em se tratando de continuidade das políticas a longo prazo, bem, a ideia é exatamente essa.
Missão de paz
Quem adentra um espaço de colaboração com gente que pensa diametralmente diferente deve considerar um conselho valioso: comece pelas convergências. Isso significa estabelecer uma base de linguagem comum. “Se eu acredito na reforma agrária e você acredita no latifúndio, e isso está no campo dos valores, a gente não vai chegar a um acordo. É melhor pactuar o que é convergente. Dá para fazer um Plano Safra diferenciado para latifundiários e pequenos agricultores? Aí a gente começa a caminhar juntos”, ensina Leite de Souza.
Para alguns, isso pode ser o beabá do bom-senso, mas não é o que se vê de mais comum, na política ou fora dela. Tome-se como exemplo a disputa de ruralistas e ambientalistas em torno do Código Florestal. “Nenhum dos lados hoje tem força para enfiar goela abaixo da sociedade uma visão unilateral. Se for no ‘ganha-perde’, tem uma reação do outro lado”, avalia Clayton Ferreira Lino, presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
Foi essa habilidade que Lino usou para dirimir um dos conflitos mais frequentes no mundo da conservação: ambientalistas querem manter uma área protegida e as comunidades do entorno acham que o progresso é limitado por ela. Para conseguir manter o Parque Estadual de Jacupiranga, no Vale do Ribeira (SP), Lino procurou o poder público não com os argumentos da conservação e da biodiversidade, mas com uma agenda comum. Lembrou ao prefeito que eliminar o parque significava reduzir substancialmente o ICMS Ecológico, o que acabaria forçando o poder público, no limite da Lei de Responsabilidade Fiscal, a promover demissões.
O processo participativo, que envolveu todas as partes interessadas, demorou dois anos, possivelmente o mesmo tempo que levaria a tentativa de extinguir o parque, sem garantia de sucesso. No começo de 2007, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou uma alteração consensual, que excluiu algumas áreas, agregou outras, e transformou a área num mosaico de unidades de conservação. “As pessoas querem que o município perca o ICMS Ecológico? Não. Querem destruir a natureza? Não. Querem expulsar populações tradicionais? Não. Tinha muito mais acordo que desacordo”, considera Lino.
Temas blindados
O que dizer daquelas áreas de interesse em que nem sequer há espaço para descobrir convergências? Em matéria de governo, elas são basicamente duas: política macroeconômica e projetos considerados estratégicos. De nada adiantou, como lembra Leite de Souza, que o Comitê da Bacia do São Francisco, o Conselho Nacional do Meio Ambiente e a Conferência Nacional do Meio Ambiente tivessem rechaçado em uníssono o projeto da transposição. (Leia mais na reportagem Goela Abaixo à pág. 30).
“Nessa área da economia, quem tem capital sempre foi considerado o principal agente da discussão. Ele não se sujeita a processos participativos. Liga para o ministro e resolve”, explica Moroni.
O argumento oficial corrente é que certas áreas de governo são essencialmente técnicas e não poderiam ficar vulneráveis às paixões da sociedade. O economista Eduardo Marques, coordenador do Fórum Paulista de Orçamento Participativo, chega a se exaltar quando ouve essa justificativa: “Se o problema fosse esse, vamos combinar que o Executivo não poderia apresentar orçamento e o Legislativo não poderia aprovar. O que tenho visto nas experiências do OP é que, no final de um período, a população sabe mais sobre orçamento que muitos secretários e vereadores”.
Resta ainda a conclusão bastante óbvia de que, se a participação é um valor, capacitar representantes da sociedade civil para debater em pé de igualdade não seria um procedimento do outro mundo. O Orçamento Participativo é um bom indicador dessa barreira. São raríssimos os casos em que a população tem a chance de deliberar sobre a totalidade do orçamento, diz Marques.
Pedro Pontual reconhece a legitimidade da demanda e diz que já se constatam alguns avanços. Para este ano, planeja-se uma reunião dos conselhos nacionais de políticas públicas sobre o Plano Plurianual (PPA). Mas a grande ambição continua sendo instituir a participação no Comitê de Política Monetária (Copom). “Nenhuma novidade. No regime militar esse espaço já contava com representantes dos empresários e dos trabalhadores”, diz Moroni.
Cidadão-pipoca
Incluir o cidadão não organizado é uma fronteira dos processos participativos. Muitas vezes, os espaços institucionalizados requerem formalidades, como CNPJ, e isso favorece mais o envolvimento de representantes da classe média. Outras vezes, as próprias organizações da sociedade civil resistem à abertura. A primeira experiência de orçamento participativo, em Porto Alegre, nos anos 1990, inovou ao garantir voto a qualquer pessoa interessada. Moroni relata que, nos primeiros dois anos, as organizações sociais chegaram a boicotar, porque entendiam que detinham o monopólio da participação.
Foi pensando nesse desafio que Eduardo Rombauer criou as conferências livres. A experiência, que aumentou de sete a dez vezes o número total de participantes sem elevar os custos, consistia em permitir que qualquer reunião de cidadãos, em qualquer contexto, pudesse encaminhar propostas para as conferências oficiais. “A gente percebeu que as ideias mais criativas vinham daí. O Estado deixa de determinar o espaço da participação e passa a reconhecer os espaços que a sociedade cria.”
Mãos à obra
Fora do universo duro da política, uma porção de experiências locais pode dar boas lições sobre participação. Aqui destacamos duas. O movimento Transition Towns, que visa enfrentar a mudança do clima e reduzir a dependência de petróleo no nível local, instalou-se há pouco mais de um ano na Granja Viana, em São Paulo.
Nesse período, o movimento conseguiu realizar uma feira de orgânicos mensal para apoiar produtores da região, oficinas de lixo, um mutirão para transferência de domicílio eleitoral dos moradores, entre outras atividades. Tudo com apenas quatro mulheres na coordenação e outros colaboradores que elas chamam de “satélites”.
O segredo, segundo a arquiteta Isabela Menezes e a psicanalista Adriana Trindade, é a diversão. A possibilidade de as pessoas contribuírem com o que gostam de fazer aumenta as chances de sucesso, além de garantir a diversidade de talentos. Outro ponto é que a liderança circular, orgânica, permite que o movimento continue mesmo quando alguns participantes desistem.
O caráter lúdico também é o forte dos projetos Oásis, do Instituto Elos. Thaís Polydoro, gestora do núcleo de realização do Elos, destaca algumas etapas importantes. Por exemplo: envolver lideranças afetivas do local, que não necessariamente são as lideranças políticas. Realizar algum passo concreto em direção ao sonho no intervalo de dois dias (restaurar uma praça, por exemplo), para estimular a continuidade. E, ainda, reservar tempo para celebrar cada realização, uma lição da pedagogia indígena.
O cerne da proposta dos Oásis é transformar a realidade a partir dos recursos locais, materiais e humanos. Um olhar de abundância, não de escassez, que pode ser aplicado mesmo numa tragédia. Foi o que aconteceu em doze comunidades de Santa Catarina, depois do desastre das chuvas em 2010. “O barro que tomava o lugar podia ser usado para fabricar tijolos. O mesmo vale para as árvores que desabaram dos morros. Em apenas um dia, moradores construíram uma ponte com essa madeira, algo que eles esperavam que o poder público fizesse havia seis meses”, lembra Thaís. Vai ver que a participação não é tão complicada assim.