Uma folha em branco onde desenhar seu próprio destino político é o que querem as populações do Egito e da Tunísia, países em que a legitimidade das ruas falou mais alto e derrubou regimes autoritários. Segundo Bassma Kodmani, diretora-executiva da Arab Reform Initiative – uma rede de institutos de pesquisa sediada na França que busca desenvolver um programa para a reforma democrática no mundo árabe –, na nova era que se abre a participação direta da população será crucial para a estabilidade.
Para chegar lá, Egito e Tunísia partem do zero e têm de aprender com a experiência de países que fizeram a transição democrática. O Brasil é inspirador, diz Bassma, por ter conseguido romper com a cultura política elitista e eleger um líder próximo dos movimentos sociais. Ela espera que o mundo árabe saiba também rejeitar os aspectos negativos da experiência latino-americana, como a manutenção do modelo neoliberal de desenvolvimento econômico. Para Bassma, que nasceu na Síria, a mensagem que os movimentos no Oriente Médio enviam ao resto do mundo é a de que as pessoas comuns podem ter uma voz nos temas sociais e econômicos.
Há diversas situações no Oriente Médio – é possível apontar um desejo único por trás dos protestos recentes em vários países? É democracia que buscam ou simplesmente melhores condições materiais? Ou essas duas andam juntas?
A palavra-chave em todos os movimentos na região é “dignidade”. É um conceito rico e complexo, porque engloba importantes demandas sociais e econômicas para que as pessoas vivam uma vida digna. Sim, é preciso um mínimo de recursos para viver decentemente, mas há também uma forte dimensão relacionada com o desprezo em relação a todos os sistemas políticos na região, sistemas autoritários e extremamente corruptos, que usam os recursos naturais de forma predatória. Para a população, esse comportamento representa um desprezo em relação ao povo, que se sentia humilhado ao se ver sem poder em face de tais práticas predatórias de governo. Há uma terceira dimensão, particularmente no Egito, que é a posição do país no sistema internacional, a perda da influência que o Egito tradicionalmente teve e a falta de uma política externa independente nos últimos 30 a 40 anos.
Mas as pessoas também querem democracia, participar de seu próprio destino político?
Democracia é ainda um conceito abstrato para a maioria das pessoas na região, especialmente a maioria dos jovens, aqueles que nunca experimentaram a democracia como tal. Então é preciso usar outras palavras, desempacotar o conceito de democracia para chegar perto do que as pessoas querem. E aí você descobre que a parte mais atrativa da democracia é a participação e isso significa mais do que a separação dos diferentes ramos do poder, mais do que simplesmente partidos políticos que representam o povo.
Acho que vamos chegar perto de uma democracia aberta, que permite a participação nas esferas locais, municipais, talvez por meio da ativação de redes sociais – países como o Brasil têm familiaridade com esses padrões. As pessoas têm condições de vida muito difíceis e estão ansiosas para ser ouvidas e incorporadas em algum processo pelo qual as autoridades atentem para as necessidades do povo. Acho que participação é o conceito mais atrativo e poderoso nisso tudo, e certamente também haverá partidos políticos para carregar as demandas do povo, a agenda social, assim como novos sindicatos que representem as forças e as demandas sociais.
A senhora acredita que há espaço no Oriente Médio para uma democracia em que as pessoas participem e se engajem em assuntos políticos? Na maioria dos países ocidentais o que se vê é que as pessoas parecem satisfeitas apenas em votar.
Acho que esse é o grande desafio. Países que foram bem-sucedidos em derrubar regimes autoritários serão democráticos com certeza, não tenho grande preocupação em relação ao Egito ou à Tunísia. Eles serão democráticos, o desafio é que tipo de democracia terão. Se será apenas a separação dos poderes, a representação por meio de partidos políticos, participação em eleições, em que você vai para casa e confia que a liderança vai implementar o que prometeu. Esse não é o padrão que permitiria enfrentar os grandes desafios, as crescentes dificuldades de natureza social e econômica.
A participação do povo é vital para assegurar a estabilidade social, e eu certamente gostaria de ver isso nesses países. Algumas pessoas têm essa visão de que é preciso descentralizar e enfatizar a governança local, é preciso aprender com outros países os mecanismos que permitem essa democracia direta, aberta, participativa.
A senhora disse que um dos países que inspiram o Oriente Médio é o Brasil. De que forma o Brasil inspira?
Há duas coisas no Brasil que parecem atrativas à primeira vista. Uma delas é a forma com que as forças sociais se organizaram de maneira efetiva e desafiaram a cultura política elitista do país – eventualmente chegaram ao poder, com Lula, e isso vem continuando. O que temos aí é um partido político forte, poderoso, que de fato representa as forças e as demandas sociais. Isso é crucial para um país como o Egito. A segunda fonte de inspiração é a forma como alguns dos candidatos nas eleições, me parece, foram capazes de mobilizar por meio de redes sociais importantes setores da sociedade de forma muito direta. É um modelo promissor e pode ser usado tanto na esfera local como na nacional, dependendo dos temas em questão.
Agora, o que sabemos sobre o Brasil é definitivamente insuficiente, e nosso objetivo na Arab Reform Initiative é organizar essa troca com alguns países que têm experiências com a democracia. Outro país que queremos explorar é a Índia, que conta com importantes movimentos de base que conseguem se expressar e participar.
Algumas pessoas no Brasil parecem ter dúvidas sobre quão rica é nossa experiência, em parte porque o país ainda é dominado pela desigualdade, em termos econômicos, mas também em termos de participação política.
O que queremos aprender a não fazer, a partir da experiência brasileira, é construir uma democracia política sem desafiar os modelos econômicos de desenvolvimento. As disparidades sociais entre ricos e pobres na América Latina são uma fonte enorme de instabilidade. Precisamos aprender com essas experiências e compreender que é preciso incorporar os temas sociais e econômicos no debate político e sentir-se confiantes o suficiente para, com um governo eleito legitimamente, levar seu caso às instituições financeiras internacionais, à Organização Mundial do Comércio, à União Europeia, ao Banco Mundial. Dizer que nossos países não podem sustentar privatizações, certas regras para a legislação trabalhista, esses tipos de políticas que os países nunca contestaram, simplesmente implementaram as condições impostas pelas organizações internacionais porque nunca sentiram que tinham o direito de contestar.
Acho que agora há espaço para alguma forma de coalizão internacional dos países do Sul para dizer que não podem sustentar o modelo econômico neoliberal. A nossa experiência acontece 20 anos depois da América Latina, agora há algum questionamento mesmo dentro dessas instituições internacionais sobre a validade desses modelos, e acho que é justamente a hora de começar a contestá-los.
O que detonou os protestos no mundo árabe? São os jovens que se conectam com o restante do mundo e, vendo seus pais sem avançar depois de anos de trabalho, se revoltam?
Não estou certa de que foi a mesma coisa no Egito e na Tunísia. Eu estava mais inclinada a achar que aconteceria no Egito primeiro… aconteceu quase ao mesmo tempo. No Egito havia indicações de uma mobilização social e política e o ímpeto na sociedade vinha crescendo há cinco ou seis anos. A curto prazo, o que detonou os protestos provavelmente foi o fato de que o regime abriu algum espaço para a sociedade civil e grupos políticos se organizarem, mas de forma limitada, e para a mídia se expressar livremente. E, em novembro, de repente, o regime decidiu que a situação demandava total controle devido às eleições parlamentares, que seriam uma preparação para que a sucessão do presidente [Hosni Mubarak] por seu filho ocorresse de forma ordenada. Então as eleições foram menos livres e justas do que quaisquer outras que ocorreram em anos anteriores. Houve uma abertura e, de repente, eles fecharam o sistema, pensando que poderiam abrir e fechar como quisessem, que estavam com o controle da situação.
Para a população, as eleições sinalizaram que não havia esperança de que a reforma viesse por meio de um processo gradual de abertura a partir do topo. Na Tunísia foi muito menos previsível, porque por muito tempo o regime manteve uma vigilância da população muito mais forte do que no Egito. Em segundo lugar, não havia forças políticas organizadas. Não há muitas forças políticas organizadas no Egito, mas há ainda menos na Tunísia, apenas uma elite de ex-comunistas, socialistas e liberais com uma forte polarização entre os laicos e aqueles que promovem um modelo islâmico de sociedade.
Penso que os fatores que levaram aos protestos foram o nível de corrupção no sistema político e o fato de que o regime se enfraquecia, porque dependia inteiramente de forças de segurança para manter o controle, não lidava com temas políticos por vias políticas. A situação era a mesma no Egito, mas na Tunísia o presidente era muito mais fraco, sua família estava ocupada em ganhar dinheiro e organizar seus negócios privados, e se tornou completamente insensível ao que vinha da população. A economia funcionava, havia crescimento, mas isso não beneficiava a população. O estopim veio de uma das regiões mais pobres do país, por parte do camelô que incendiou o próprio corpo.
O que há de diferente do passado? A situação se perpetuou por anos, mas de repente as pessoas reagiram. Quão importantes são as mídias sociais para detonar esse movimento? Elas apenas conectam, ou de repente as pessoas têm a sensação de que não estão mais sozinhas?
Definitivamente isso teve um papel importante. Os sistemas autoritários tendem a dividir o espaço público e prevenir a comunicação horizontal e as conexões entre as pessoas. Na Tunísia não havia imprensa livre, não havia meio de conectar as pessoas. No Egito havia alguma liberdade de imprensa e as pessoas estavam tornando públicas suas preocupações e frustrações. A imprensa estava expondo o comportamento do governo, mostrando a corrupção, o tratamento de prisioneiros e das pessoas nas delegacias de polícia, todo o aparato repressivo do sistema político. Tudo isso apareceu por meio da mídia tradicional e das mídias sociais no Egito, e exclusivamente por meio da internet e das mídias sociais na Tunísia.
Porque não há forças políticas organizadas, definitivamente as mídias sociais foram um substituto para organizar as pessoas fora de um ambiente institucional.
A senhora também apontou que as informações vazadas pelo Wikileaks no ano passado tiveram impacto. Por quê?
Sim, acredito que tiveram impacto muito importante, simplesmente porque era a imagem de fora projetada de volta para as pessoas. Foi a visão de como seus próprios líderes eram vistos por quem estava fora e acho que isso teve um efeito devastador. Diplomatas estrangeiros dizendo ‘essas são máfias, são grupos políticos predatórios que estão no governo e que estão simplesmente exaurindo os recursos do país’… formou-se uma imagem de líderes políticos completamente desacreditados.
Parece que a comunidade internacional tem um importante papel, embora as pessoas nesses países rejeitem interferência ou modelos externos.
Acho que a sensibilidade quanto a modelos ocidentais não existe no momento. Há muita sensibilidade em relação à interferência estrangeira em assuntos domésticos, isso é verdade e sempre será. As pessoas observam com muito cuidado para ver se os EUA ou a Europa tentam fazer contato com algum grupo em particular para promover suas próprias agendas.
Mas, quanto ao Ocidente oferecer modelos de organização política, não há sensibilidade quanto a isso, o que há é uma certa avidez em obter inspiração de tais modelos, de adotar as coisas boas e não as más, mas com certeza em aprender com esses modelos. Porque há países no Sul que também desenvolveram sistemas democráticos, há um sentimento de proximidade e semelhança com esses países.
O momento é uma oportunidade para forjar um modelo único de organização política e reforma econômica, algo que seja verdadeiramente do Oriente Médio?
Sim, mas eu diria que isso não é dito consciente ou explicitamente no momento. Você só sabe que desenvolveu seu próprio modelo quando desenvolveu seu próprio modelo. E é difícil fazê-lo. As pessoas agora estão se esforçando para lidar com os desafios mais imediatos – como recomeçar um processo político do começo.
Quando o Exército intervém, o que se está dizendo é que há uma falência do sistema político, basicamente se está fazendo uma tabula rasa, que é o que as pessoas queriam, o que essa revolução estava pedindo. Mas tabula rasa é também uma grande fonte de ansiedade – como você reinicia o sistema, qual é o primeiro ato legítimo, e quem são as primeiras pessoas legítimas que podem desenvolver um processo legítimo?
Não há nesse momento o pensamento consciente de que vão desenvolver seu próprio sistema, o que acho que estão tentando fazer é aprender com o que puderem. Eles têm suas próprias ideias, sua própria cultura, suas experiências pessoais como indivíduos, mas a carga é tão pesada que acho que estão tentando se beneficiar ao máximo de trocas com outros países, ao mesmo tempo que se mantêm atentos às demandas vindas da sociedade.
O fato de que as ruas na Tunísia ou no Egito estão impondo mudanças no topo indica que no momento não há estrutura política ou partidos legítimos e, portanto, as ruas continuam sendo a maior fonte de legitimidade. Se isso vai se transformar em uma democracia aberta, participativa, é o que vamos ver durante o próximo ano.
No Egito, em particular, o Exército teve um papel essencial para mudar o estado de coisas. O que devemos esperar do Exército daqui para a frente? É provável que os militares aceitem reformas democráticas? A intenção é possivelmente democrática no sentido de que o Exército não busca controlar o poder diretamente e preferiria devolvê-lo aos civis. Os militares sentem que não têm experiência e que seu envolvimento em assuntos políticos criaria tensões dentro de suas próprias fileiras. Por uma série de razões, o Exército gosta de ver civis no controle de assuntos civis e políticos.
Agora, há duas ressalvas muito importantes. Uma é que o Exército vai tentar preservar seus interesses econômicos no sistema, pois tem suas próprias empresas, indústrias e corporações. Outra é sua enorme presença dentro do aparato político – os governadores de todas as regiões do Egito são ex-militares, a maioria dos chefes de gabinete e ministros também. Houve uma profunda militarização do Estado, apesar do governo civil, o que significa obviamente que os militares controlavam boa parte do sistema. Como vimos, no momento em que a liderança política falhou em manter o país estável, eles agiram imediatamente e foram capazes de controlar a situação. Resta saber se o Exército vai abrir mão de seus privilégios econômicos e da militarização das instituições estatais, e como vão negociar isso.
Outro aspecto que limita a democratização das forças militares é que sua própria cultura é de disciplina, de eficiência, e não de discussão e de debate aberto, participação, compromisso. Não é isso que eles sabem. Quando há demonstração ou greve porque as pessoas estão infelizes, eles consideram isso o caos, uma instabilidade que deve ser controlada. Não concebem que isso é parte natural da vida política e que as pessoas terão representantes legítimos, e que isso precisa ser organizado.
É possível imaginar uma democracia no mundo árabe sem religião? É interessante ver a posição do Irã – as autoridades apoiam os protestos em outros países e, ao mesmo tempo, reprimem a oposição em seu próprio país. Iranianos expatriados parecem desencantados e dizem que as revoluções seguirão o rumo do Irã, que embarcou em uma teocracia. Qual a sua opinião?
O islamismo terá forte presença na vida pública porque essa é a cultura do povo, no Egito mais do que na Tunísia. É muito difícil dizer às pessoas que o secularismo é o que deve prevalecer na esfera pública. Não se pode separar o privado, as crenças das pessoas, do dia a dia e práticas das pessoas. A religião vai estar presente. Agora, como vai ser representada e por quem, é uma grande área para discussão.
Duvido muito que o Irã será um modelo a ser replicado no mundo árabe. Há muita consciência do risco de ver a democracia confiscada por qualquer grupo, se não serão os militares, também não serão os islâmicos. As pessoas querem liberdades e querem ver grupos políticos que tenham respostas concretas para problemas concretos.
Os grupos islâmicos tiveram uma situação privilegiada sob o regime autoritário porque foram capazes de expressar-se por meio de redes religiosas e mesquitas. Não eram responsabilizados por nada porque não tinham responsabilidades, estavam em uma posição confortável de criticar o governo pela corrupção, o comportamento anti-islâmico, mas não tinham responsabilidades. No momento em que forem responsabilizados pelo que falam, em que publicarem uma agenda política e disserem que querem implementá-la, eles terão duas dificuldades. Uma, estarão divididos, já estão divididos. Já sabemos que no Egito haverá mais do que um partido político, pelo menos dois, e há um terceiro emergindo. E a segunda dificuldade é que eles terão de responder a problemas concretos, mas eles discordam e não estão prontos para enfrentar esses assuntos de maneira coerente. Estão entrando em um espaço em que haverá competição – e eles nunca tiveram competição antes –, competição entre eles mesmos e com partidos de esquerda, liberais, e outras forças.
O que esperar em termos de mudanças para as mulheres? Falamos em dignidade, participação, mas há um contingente de mulheres longe disso tudo.
Há dois desafios para as mulheres, um de natureza social, outro de natureza política. O que vimos é que a mobilização das mulheres como cidadãs ativas durante a revolução teve um papel muito mais efetivo na emancipação das mulheres do que todos os programas destinados a elas durante o regime autoritário. O governo encorajava assuntos femininos e a melhoria do status das mulheres porque isso não representava um risco para o sistema político. Quanto mais autoritário o regime, mais as forças políticas conservadoras exercem influência.
Em um sistema aberto e competitivo, o conservadorismo é desafiado e há uma chance de que, em temas sociais, as forças políticas apresentem suas agendas e façam as mulheres participarem. O desafio social é proteger as mulheres da violência, assegurar direitos mínimos em casos de divórcio, guarda de crianças, herança etc. Há grandes batalhas a serem travadas nessas searas, um longo caminho à frente. Há também a representação política e a questão de quem vai carregar esses temas nas instituições políticas.
A verdade é que as mulheres terão que lutar por seu lugar, porque ninguém vai fazer isso por elas. As pessoas tendem a pensar ‘agora construímos uma democracia e depois a aprofundamos ao envolver as mulheres’, mas não é assim. Obviamente, vai requerer muito aprendizado e conscientização por parte dos homens, não tanto entre as mulheres.
Há um movimento forte de mulheres na região para abraçar a causa?
Sim, é muito articulado e tem uma visão muito boa de aonde quer chegar. O problema é que ainda permanece elitista, embora tenha se expandido de maneiras importantes. A Tunísia é mais ativa na proteção das mulheres do que qualquer outro país árabe, é o mais avançado nessa área. Não é esse o caso no Egito.
A verdade é que agora há mulheres fortes, muito ativas, em todo o espectro político, incluindo os partidos islâmicos. Essas mulheres usam véu, dizem que querem ver os valores islâmicos na sociedade, mas ao mesmo tempo elas querem seu lugar no sistema político, garantem que o islamismo não é contrário à participação das mulheres – o que pode ser verdade, dependendo de que aspectos religiosos você usa –, dizem que você pode ser uma boa mulher islâmica e cidadã ativa ao mesmo tempo.
Mesmo mulheres nas esferas mais baixas da sociedade sabem que querem proteção e seus direitos econômicos mínimos. A esfera pública agora precisa promover tais valores por meio dos meios de comunicação de massa, TV etc. Uma fonte de atraso para as mulheres foi que as instituições religiosas eram muito dominantes, com mensagens conservadoras, e o sistema autoritário estava confortável com isso. Agora, com o espaço político aberto, as instituições religiosas vão perder parte de sua influência e as pessoas estarão mais ocupadas com problemas concretos. É disso que trata a política, acho que haverá uma secularização do espaço público na prática e isso vai beneficiar as mulheres.
Falamos até agora do Egito e da Tunísia, mas e a Líbia, onde as coisas estão tomando o caminho oposto [a entrevista foi realizada antes que a comunidade internacional optasse por intervir no conflito na Líbia]? O que deve acontecer lá?
A situação na Líbia parece muito alarmante e negativa, não tenho muita esperança sobre o que pode acontecer nas próximas semanas e meses. Espero que tenhamos uma boa surpresa e a mudança de curso por parte do regime, mas não há indicação disso. A verdade é que o Egito e a Tunísia são países que têm coesão social, no sentido de que a identidade nacional é claramente definida e consentida, há um consenso sobre ela. Em muitos outros países não há consenso e coesão na esfera nacional, portanto o que acontece na Líbia pode de fato ser um dos cenários a ser repetidos em outros países da região. Isso é uma fonte de preocupação por causa da composição fragmentada étnica, cultural e religiosa de muitas sociedades.
A senhora acredita que os protestos e as reformas no Oriente Médio e Norte da África ajudam a inspirar pessoas em outras partes do mundo a agir por mudanças? Recentemente houve protestos na Inglaterra, nos EUA, em Portugal. É o início do levante da multitude?
As revoluções no mundo árabe têm suas razões específicas, mas têm também algumas dimensões comuns com vários países, dimensões de natureza global, principalmente o questionamento do modelo de desenvolvimento econômico.
Especialmente em razão da crise que os países ocidentais vem sofrendo nos últimos dois a três anos, tem havido um sério questionamento da validade desse modelo. Quando países árabes dizem ‘queremos ter uma voz na definição das políticas sociais e econômicas’, isso pode muito bem inspirar outras regiões do mundo. Acho que os protestos e movimentos no mundo árabe são inspiradores, porque vêm da região mais autoritária do mundo, o último bastião do autoritarismo. E também porque temos tido – e isso deve soar familiar aos brasileiros – o movimento antiglobalização, ou por uma globalização alternativa, os fóruns sociais e protestos por meio desses fóruns.
Acho que isso está ganhando impulso, porque os movimentos sociais nas esferas nacionais estão mostrando que podem de fato mudar o sistema político, mesmo aqueles autoritários e poderosos. Esta é a mensagem que vem do Oriente Médio, um misto de movimento na esfera global e da habilidade de organização na esfera nacional para mudar os sistemas políticos.