Nada de palcos. Artistas entregam-se e integram-se ao cotidiano, ressensibilizam o espaço urbano e provocam a real convivência
Uma amiga me confidenciou que o amor está na moda. Pensei: era o que faltava, o último bastião da expressão e naturalidade humanas empacotado para delivery! Corta para a Virada Cultural, em abril, em São Paulo: 4 milhões de pessoas tomam o Centro da cidade para assistir a shows, encontrar a turma, dançar e passear admirando a beleza peculiar da arquitetura da região.
A vida urbana brasileira data de pouco. Somente a partir da década de 1970, a população das cidades ultrapassou a rural, em um processo de inchaço e esvaziamento de determinadas regiões, mas, sobretudo, de transformações, inaugurando uma cultura urbana e um aumento extraordinário dos intercâmbios sociais, além de mobilidade, eficiência, produtividade, tecnologia. Mas a massificação do mundo tornou o vínculo social um produto padronizado, o anonimato passou a massacrar a maioria dos assalariados (nós) e a vida midiática e espetacularizada tomou o lugar de afetos reais e espontâneos. Nesse contexto, aportam as teorias e manifestações artísticas em direção a utopias da proximidade, do convívio, das relações humanas no mundo real, e não mediadas pelos facebooks da vida.
No pano de fundo histórico-cultural e econômico, resumido no parágrafo acima, ao longo das últimas décadas permitiu-se vislumbrar uma arte relacional – termo criado pelo crítico francês Nicolas Bourriaud para uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado.
Trata-se de uma arte que se vê como oportunidade para “habitar melhor” o mundo, em vez de construí-lo segundo uma ideia preconcebida da evolução histórica – conforme nos explica o crítico, escritor e curador francês em seu Estética Relacional, publicado no Brasil pela Martins Fontes. O livro é de 1998, mas a tradução brasileira somente chegou em 2009. Pela observação de Bourriaud, o artista sai do palco e integra o cotidiano como um cidadão interferindo na realidade, propondo reações ou colaborações na perspectiva da proximidade. A arte não é mais mero espelho, reflexo e representação da realidade, mas parte indissolúvel dela.
“Assim, a obra de arte, especialmente dos anos 90 para cá, poderia funcionar como um dispositivo relacional aleatório, uma máquina de provocar e gerar encontros casuais, individuais ou coletivos”, escreve Bourriaud.
Naturalmente, na história da arte já se observa a formação de relações de convívio desde os anos 60: Lygia Clark, Lygia Pape e Helio Oiticica podem ser citados como bons exemplos brasileiros. Clark considerava a arte um exercício para a vida. No caso de Pape, não por acaso a intervenção Divisor foi recriada na última Bienal de São Paulo. Encenada pela primeira vez em 1968, consiste em um enorme tecido branco com fendas em que as pessoas colocam suas cabeças e se movimentam, gerando um corpo único, distante da presença do artista.
A geração dos 90 em diante retoma a problemática das relações humanas, mas sem a questão da definição de arte, o que era essencial para as décadas de 60 e 70. A ideia agora não é ampliar os limites da arte, mas testar sua capacidade de resistência dentro do campo social global.
Se artista é igual a pedreiro, como diz o nome do disco da banda Macaco Bong (Artista Igual Pedreiro), a arte agora se vale de microutopias cotidianas e estratégias miméticas. Qualquer posição crítica direta contra a sociedade é inútil.
Nesse rastro, ouvimos alguns coletivos artísticos brasileiros, que prezam o relacional e têm a cidade como a grande galeria de arte para suas peripécias.
Poro – Intervenções Urbanas e Efêmeras é um coletivo mineiro formado pela dupla Marcelo Terça-Nada e Brígida Campbell. Letras escorrem pelos canos dos muros e bocas de lobo das calçadas, como uma poesia aleatória do concreto. No meio de um canteiro de avenida abandonado pelo poder público, a dupla “plantou” flores de papel prontas para serem colhidas ou, pelo menos, vistas pelos passantes. Em outra ação rápida e singela, o Poro prega azulejos de papel em muros degradados e vai registrando a transformação do mural, novos rabiscos, o descolamento provocado pelo tempo e clima. Em ações mais diretamente políticas, o grupo já carimbou notas de dinheiro com os dizeres FMI – Fome e Miséria Internacional. Neste caso uma referência ao artista Cildo Meireles, que primeiro carimbou notas no seu Projeto Cédula.
O trabalho do Poro acaba sendo guiado pelo que acontece (ou deixa de acontecer) na cidade, é realizado com poucos recursos financeiros e prima pela efemeridade.
Marcelo Terça-Nada acrescenta que o efêmero acaba com a obrigação da durabilidade, que implica um “culto ao objeto” e desemboca no consumo. E, ao mesmo tempo, relaciona-se com a mutação constante que é o cotidiano de uma cidade – as coisas se diluem na vida real, os cartazes são rasgados, as pistas gastas, as faixas sofrem interferências. E a opção da arte do possível, com uso de materiais baratos e mídias populares, também torna o trabalho mais independente.
Ao mexer na vida da cidade, pergunto se essa interferência precisa ter continuidade ou algum limite. “A gente quer lidar com a cidade de modo a levantar questões e problemas, mas somos parte dela. Então, por exemplo, quando fazemos um panfleto para distribuir no Centro, procuramos a mesma gráfica rudimentar que os cartomantes ou vendedores de ouro buscam”, diz Terça-Nada.
A vida que mora na deriva
O grupo GIA – Grupo de Interferência Ambiental, da Bahia, também valoriza o aleatório e a deriva em suas intervenções urbanas. É formado por artistas visuais, designers, arte-educadores e músicos que têm em comum, além da amizade, uma admiração pelas linguagens artísticas contemporâneas, mais especificamente aquelas relacionadas à arte e ao espaço público.
“Um dos principais objetivos do grupo é a utilização de meios que possibilitem atingir uma margem cada vez maior de pessoas, tomando de assalto o espaço público. “A estética GIA, baseada na simplicidade e, ao mesmo tempo, na ironia, procura mostrar, portanto, que a arte está indissoluvelmente ligada à vida”, diz o grupo, em uma espécie de manifesto.
Um carrinho amarelo tocando vários CDs no centro de Salvador, empurrado por um dos integrantes do grupo: cena simples que atrai gente, conversas, cria relações instantâneas e gostosas na cidade. Reações parecidas com as provocadas pelo coletivo paulistano Dulcineia Catadora, quando resolve se aventurar pela cidade.
Carregando capas de papelão com livros pendurados, em certa ocasião, pediram que as pessoas escrevessem num livro branco. O silêncio da grande metrópole se quebrou e apareceram cartas de amor, manifestos raivosos, discursos e reações diversas naquela intervenção de algumas horas numa área de intenso movimento do centro paulistano.
É importante deixar claro que o destaque desse texto para os coletivos brasileiros vai além do modismo a que foram delimitados no princípio dos anos 2000, mas busca uma perspectiva de iluminar formas do bem habitar as cidades, participar da vida urbana com intensidade e poesia.
Nicolas Bourriaud cita exemplos da arte contemporânea mundial com esse perfil relacional em variadas opções artísticas. Movida pela angústia gerada pelo sentimento da inutilidade que sempre toma a classe média urbana, a americana Christine Hill passou um período executando as tarefas mais subalternas – fazer massagens, engraxar sapatos, ser caixa de supermercado, animar reuniões de grupo.
Outros exemplos instigantes listados pelo crítico são o argelino Philippe Parreno, que convida pessoas a praticar seus hobbies favoritos no dia 1º de maio em uma linha de montagem industrial. E Carsten Holler, ao recriar a fórmula química das moléculas secretadas pelo cérebro humano em estado amoroso.
Trocando a casca
Em 1997, estudantes de arquitetura e artes plásticas de São Paulo juntaram-se pela necessidade de criar um espaço coletivo físico, e também reflexivo, para a produção dos saberes artísticos, arquitetônicos e urbanísticos para além da Academia, de onde vinham inspirados, mas se sentiam limitados. O nome “Bijari” veio da rua da primeira casinha que ocuparam no Butantã. Depois ficaram sabendo que bijari tem sua origem no tupi e designa uma árvore que troca sua casca e se renova.
O grupo ficou conhecido por apontar as diferenças sociais e questionar decisões do poder público de São Paulo em algumas ações memoráveis. Em 2004, com balões, placas e volantes, o grupo discutiu o que era vendido como “revitalização” do Largo da Batata. A reforma de propriedades e a remoção de população de baixa renda fundamentava a obra. Em outra intervenção, o Bijari colocou uma galinha circulando por aquele largo popular e pela calçada do sofisticado shopping Iguatemi. As diferentes reações por parte de públicos distintos, apesar de próximos geograficamente, expunham o abismo entre as classes na cidade.
No ano passado, o grupo propôs a ocupação subjetiva de um ônibus, sobrepondo a sua função e uso reconfigurado e apropriado. A partir de projeções, efeitos luminosos e sonoros, instalação de plantas e vegetação na intervenção, colocaram a questão: “Para quem o espaço urbano é feito? O ônibus é a melhor solução para o transporte público nas cidades?”
Sobre o método de ação e poder da política poética ou poética política nas cidades, o coletivo Bijari diz: “Pensamos o poder da micropolítica como ação individual desperta por uma subjetividade livre dos poderes ‘biopolíticos’ e por uma sensibilidade consciente, crítica e criativa. As ações do grupo buscam ser táticas em relação aos espaços públicos e independentes em relação aos circuitos formais da arte. Ao buscar esse hiato, esse oco, esse espaço indeterminado e desapropriado, age de forma a criar novos territórios políticos e poéticos”.
Assim, conclui: “Devemos seguir agindo até o limite da arte e ativação do sensível”.
Leia aqui a íntegra da entrevista concedida pelo coletivo Bijari.