No trilionário mercado de soluções para as cidades, nem todas as empresas estão se preparando para as novas demandas. No quesito trânsito, por exemplo, ainda se oferecem mais carros e menos mobilidade
Trinta e sete trilhões de dólares! A não ser que você seja o Tio Patinhas – que mantém seus “quaquilhões” guardados em sua inexpugnável Caixa Forte –, um volume de dinheiro desses é praticamente inconcebível. Pois é mais ou menos essa quantia que a consultoria americana Booz & Company calcula que as cidades ao redor do mundo devam investir nos próximos 25 anos em soluções de inteligência urbana para preparar sua infraestrutura aos desafios deste novo século.
Isso equivale a praticamente US$ 1,5 trilhão por ano, algo entre o PIB do México (12º do mundo) e o da Coreia do Sul (13º do mundo) [1]. Trata-se de uma enorme oportunidade de negócios para empresas dispostas a abrir mão dos confortáveis paradigmas do século XX e caminhar de peito aberto para o século XXI.
[1] A edição 2010 do World Factbook, da Agência Central de Inteligência do governo dos EUA, calcula o PIB mexicano em US$ 1,56 trilhão e o da Coreia do Sul em US$ 1,46 trilhão. O do Brasil ficou em quase US$ 2,2 trilhões.
Segundo a ONU, por volta de 2050, aproximadamente 70% de todos os seres humanos estarão vivendo em cidades e isso significa que vamos precisar inventar novas saídas para uma porção de velhos problemas que se têm mostrado praticamente insolúveis dentro do modelo de sempre. No Brasil, esse futuro já chegou: 84% da população é urbana, segundo Censo 2010. Entre os problemas mais espinhosos a resolver, temos a racionalização do consumo de recursos essenciais, como água e eletricidade, a universalização do acesso a serviços públicos de boa qualidade e o cada vez mais desesperador problema da mobilidade urbana.
Nas contas da Comissão Europeia de Mobilidade & Transporte, os congestionamentos custam aproximadamente 1% do PIB da UE. Isso equivale a rasgar mais ou menos US$ 149 bilhões anualmente. Sem contar os prejuízos de toda ordem decorrentes da emissão de gases de efeito estufa.
É desafio pra ninguém botar defeito. A nosso favor, contudo, temos um arsenal inteiramente novo de ferramentas tecnológicas que promete revolucionar de forma radical o funcionamento e a eficiência das cidades. Esse fenômeno tem, entre seus apelidos, o de cidade inteligente (mais em reportagem desta edição).
Ainda não se sabe que feições terão as cidades inteligentes daqui a alguns anos, mas está ficando claro que as melhores soluções não vêm do lugar que se esperava. Exemplo: é bem possível que a maioria dos problemas do trânsito acabe sendo resolvida nos laboratórios das megacorporações de tecnologia da informação ou por alguma startup [2], em vez de partir das grandes montadoras, que, teoricamente, estariam mais bem posicionadas para bolar uma saída a um problema que elas ajudaram a fabricar.
[2] Startup é uma companhia recém-fundada e que ainda está desenvolvendo seus produtos e tecnologias. O termo foi popularizado na época da bolha das ponto.com e acabou se tornando um sinônimo para empresas jovens e inovadoras.
Nesse sentido, chega a ser sintomático que nenhum representante da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) tenha aceitado falar com a reportagem. Mesmo enviando as questões por email a pedido assessoria de imprensa da entidade, a única resposta veio na forma de um artigo assinado pelo diretor de relações institucionais da Anfavea, Ademar Cantero (acesse aqui).
Enquanto isso, a seguradora Porto Seguro topou o desafio de fazer algo e lançou o Porto Vias, serviço que usa os dados produzidos pelos mais de 700 mil carros que a empresa rastreia por GPS para gerar um mapa em tempo real das condições de trânsito em São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba e Rio de Janeiro. Dessa forma, os mais de 40 mil usuários podem ter uma ideia melhor de quanto tempo vão levar até seus destinos ou recorrer a seus smartphones em busca de rotas menos congestionadas.
A gerente de marketing, Tanyze Marconato, conta que todo o sistema foi desenvolvido internamente e, por enquanto, é um benefício que a empresa oferece a seus clientes – mas que novas oportunidades de negócio são sempre bem-vindas. “A gente tem consciência de que nossa precisão é muito grande, temos algo muito bom nas mãos”, comemora Tanyze, informando que a empresa já foi procurada por redes de TV interessadas em ter acesso aos dados e também tem conversado com a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo.
Não que todas as montadoras estejam alheias à questão. Várias delas andam rascunhando planos B, nos quais, implicitamente, reconhecem que a venda de carros já não é um negócio tão atraente. A alemã BMW, por exemplo, lançou em fevereiro a submarca BMW i, que enfoca a oferta de “soluções sustentáveis de mobilidade”. A princípio, a nova bandeira centraliza o desenvolvimento de veículos híbridos e elétricos. É uma boa notícia, mas não resolve o problema. Entupir as ruas de carros menos poluentes não reduz os congestionamentos. Mas há sinais de esperança. Em março, a BMW i lançou um serviço de car sharing [3] chamado DriveNow.
[3] O car sharing é um novo modelo de mobilidade. As empresas do ramo alugam carros por períodos curtos e preços módicos para clientes que pagam uma taxa mensal. A maior vantagem para os clientes é que eles têm praticamente os mesmos benefícios de ter um carro, sem ter de se preocupar com gasolina, manutenção, seguro etc.
Vistos como uma curiosidade até há pouco tempo, os esquemas de car sharing estão chegando rápido ao mainstream. “Cada carro compartilhado tira das ruas entre 9 e 13 automóveis”, conta o empresário Felipe Barroso. Ele é um dos fundadores da Zazcar, empresa que, desde julho de 2009, atua no segmento de car sharing em São Paulo.
Segundo Barroso, enquanto nos países em desenvolvimento a indústria automobilística continua nadando de braçada, nos mercados mais ricos e maduros, contudo, ela já está precisando fazer mudanças de rumo.
“Aqui no Brasil ainda se vende muito carro, ao passo que nos Estados Unidos estão saindo mais carros velhos das ruas do que novas unidades são vendidas”, diz. Para ele, as companhias vão continuar espremendo seu velho modelo de negócios enquanto der, mas já andam procurando outros caminhos. “Recentemente, a Renault mudou sua missão. Ela não é mais uma empresa que vende carros, mas uma fornecedora de mobilidade sustentável”, arremata.
Já o arquiteto e urbanista Caio Vassão, desconfia um pouco da capacidade das empresas automobilísticas de se reinventarem. O problema, segundo ele, está no fato de elas não passarem – em sua raiz mais profunda – de usinas siderúrgicas. “É uma indústria pesada que exige muito capital”, diz. O resultado é que elas são, quase sempre, conservadoras no que diz respeito ao repertório tecnológico que estão dispostas a testar.
Junto com o também arquiteto Marcus Del Mastro, Vassão trabalha desde 2008 no desenvolvimento de um produto de mobilidade chamado pocket car – um carrinho elétrico para uma ou duas pessoas que não passa dos 60 km/h e tem custo baixíssimo. “Comparando com produtos mais ou menos similares, calculamos que ficaria entre R$ 3 mil e R$ 5 mil, valor que pode cair quando tivermos escala de produção”, garante.
A ideia do pocket car não é tentar emular o modelo tradicional do transporte individual – o próprio Vassão reconhece que isso seria um despautério que causaria mais mal do que bem –, mas que ele funcione num modelo similar ao car sharing e em estreita articulação com o transporte público. “A ideia é que o pocket car não seja uma posse. O usuário chegaria a um ponto como um aeroporto ou uma estação de metrô e pegaria um pocket car para fazer a última etapa do trajeto”, explica.
De acordo com Felipe, um esquema parecido já é testado em Paris. “Eles vão colocar uma frota de 3 mil carros elétricos à disposição da população pelo mesmo modelo das bicicletas Vélib [4]” , anima-se, ressaltando que o modelo que está sendo esboçado turva a antes claríssima distinção entre transporte individual e público.
[4] Vélib é o programa público de aluguel de bicicletas criado pela prefeitura de Paris em julho de 2007. Mais de 20 mil bicicletas estão disponíveis nas mais de 1.200 estações espalhadas pela capital francesa.
Outras inteligências
Trocar o atual modelo de mobilidade urbana por outro mais eficaz é um bom começo, mas não esgota as promessas que os “vendedores de cidades inteligentes” andam fazendo mundo afora. A confiar em cada uma delas, a impressão é que não demora para o nosso dia a dia começar a ficar parecido com o dos Jetsons.
Em mais três anos fica pronta Songdo, cidade da Coreia do Sul que está sendo construída por US$ 35 bilhões com tudo o que há de mais sofisticado em termos de inteligência urbana. A Cisco é a empresa que está desenvolvendo as soluções tecnológicas que farão Songdo funcionar e está equipando a cidade com conexões de internet tão parrudas que os moradores poderão usar serviços de telepresença disponíveis hoje para clientes corporativos.
Segundo o diretor de estratégia e inovação para a América Latina da Cisco, Paulo Abreu, com o uso desses serviços de telepresença, é possível disponibilizar uma série de serviços públicos por uma fração do que eles custariam na versão analógica. “Você pode, por exemplo, oferecer aulas ou fazer consultas médicas sem ter de sair de casa”, diz.
No fundo, a revolução urbana seria só mais uma das revoluções que a microeletrônica vem produzindo em série desde meados do século XX. “Existe uma crescente digitalização da sociedade, o mundo está cada vez mais instrumentado”, explica o gerente de novas tecnologias aplicadas da IBM Brasil, Cézar Taurion. “Os chips estão cada vez menores e mais baratos, então, você consegue inseri-los na infraestrutura física das cidades, como redes de água, luz etc. É o que cria a oportunidade para que as cidades fiquem mais inteligentes”, resume.
O melhor testemunho da força com que a IBM companhia está entrando nesse novo filão vem do fato de ele ter sido o mote da campanha de TV que a empresa levou ao ar no ano passado, em vários países. Convenhamos que infraestrutura para cidades inteligentes não é o típico produto de consumo que precisa ser exaustivamente anunciado para vender bem, portanto levar o assunto para a TV sinaliza claramente que a companhia quer colar sua imagem corporativa ao tema.
Ligar um chip barato num equipamento urbano e conectá-lo numa rede, como propõe a IBM, abre um mundo de possibilidades. Processadores podem fazer uma porção de coisas interessantes, como interligar as câmeras que diferentes serviços da prefeitura – polícia, controle de tráfego etc. – têm espalhadas pela cidade a sistemas de computadores. Ao usar os softwares para analisar as imagens, torna-se possível controlar multidões que entram ou saem de estádios de futebol (o que pode ser útil num país que está às vésperas de uma Copa do Mundo) em busca de indícios de confusão e até flagrar espertinhos que estejam desrespeitando as regras de trânsito.
Não só o trânsito pode melhorar. Companhias de água e de luz também têm grandes expectativas sobre a forma como infraestruturas mais inteligentes poderão impactar seus resultados. O diretor de tecnologia e serviços da AES Eletropaulo, Ricardo van Erven, destaca que a adoção dos chamados grids inteligentes possibilitará uma gestão melhor do sistema elétrico como um todo, mas, para o cliente doméstico, o que mais deve chamar a atenção é a medição inteligente que vai permitir a criação de tarifas diferenciadas (mais na seção Estalo desta edição).
“Teremos equipamentos capazes de passar ao consumidor tarifas diferentes ao longo do dia, assim será possível escolher usar determinados equipamentos nos horários mais baratos”, relata o diretor, acrescentando que isso vai permitir o desvio de parte do consumo para fora do horário de pico.
A melhoria nas tecnologias de medição também tem sido uma das principais armas da Sabesp em seu objetivo de cortar pela metade as perdas do sistema que hoje estão em 26% (a média brasileira é de indecentes 45%). De acordo com o assessor de meio ambiente da presidência, Marcelo Morgado, os hidrômetros mais modernos medem muito melhor os consumos de baixa vazão. Clientes de grandes volumes também têm acesso a serviços de telemedição que permitem acompanhar o consumo em tempo real. “Os gestores podem saber em que pontos há um consumo anormal e agir preventivamente”, diz.
Segundo Taurion, da IBM, uma infraestrutura mais eficiente tornou-se peça-chave para conciliar crescimento econômico e padrões ambientais rigorosos. Melhorar os sistemas viário e elétrico é vital para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. “Isso abre uma oportunidade para o desenvolvimento de soluções inovadoras. Percebemos que havia oportunidade de negócios aí”, comenta.
Esse é um jogo novo até para uma empresa do porte da IBM. “Quando você pensa em cidades inteligentes, fala de um ecossistema de negócios que vai desenvolver os produtos e serviços para compor essas soluções. Isso envolve empresas de TI, de construção civil, de eletrônica e governos trabalhando em parceria. Estamos só aprendendo a fazer esse negócio”, diz Taurion.