Vamos imaginar, ainda que com máximo poder de abstração, como seriam as nossas cidades se a bicicleta fosse encarada como um veículo legítimo. Os benefícios difusos, econômicos, sociais, ambientais e urbanísticos são surpreendentes
“As cidades são manifestações físicas das nossas crenças mais profundas e de pensamentos muitas vezes inconscientes, não tanto como indivíduos, mas como os animais sociais que somos. Um cientista só precisa analisar o que construímos – as colmeias que criamos – para saber o que se passa pelas nossas cabeças e aquilo a que damos importância.”
Essas linhas foram escritas pelo músico David Byrne, em seu livro Diários de Bicicleta. Trata-se de um senso de iluminação, de verdade revelada nas ruas, que é muito comum entre os amantes da bicicleta. Conversar com um ciclista, quando você não é um deles, é como ouvir o relato de uma festa muito legal para a qual você não foi convidado. Ainda.
A citação está aí também para justificar que pela primeira vez na minha vida profissional estou incluindo a experiência pessoal numa reportagem. Fora da caixa de jornalista isenta, sinto-me como o estudante que faz a redação do vestibular em primeira pessoa, um pecado mortal para a maioria dos cursinhos. Mas parece indispensável vivenciar a bicicleta para entender o que há de especial nesse ponto de vista “mais rápido que uma caminhada, mais lento que um trem e ligeiramente mais alto que o de uma pessoa”, o que aparentemente muda tudo.
Outra ambição estruturante é compreender por que uma peça tão simplória da tecnologia industrial do século XIX, um dos veículos mais populares do mundo, uma lembrança calorosa da infância da grande maioria das pessoas, pode se tornar um alienígena subversivo no cenário de uma grande cidade.
Tão subversivo que, há poucos anos, os passeios de bicicleta em grupo eram alvo frequente de abordagem policial. O hábito de perguntar pelo líder do suposto entrave ao trânsito motivou respostas bem-humoradas. Certa vez, uma centena de ciclistas a caminho de Santos vestiu a mesma camiseta, onde se lia “vice-líder”. Dá vontade de perguntar a Byrne: o que esse estranhamento diz sobre nós?
Alguma coisa acontece
Quando fui apresentada à minha magrela de trabalho, discutimos de que tipo de equipamento eu precisaria. Um capacete, luzes refletoras para pedalar à noite, roupas claras ou de cores vibrantes. Convencida de que estava diante de uma aventura de alto risco, mencionei cotoveleiras e joelheiras, mas o meu bike anjo [1], Felipe Gasko, foi gentil o bastante para não me chamar de ridícula e apenas desconsiderou minha sugestão.
[1] Bike anjo é a denominação do ciclista mais experiente que oferece as primeiras lições ao iniciante, também chamado de padrinho.
Só mais tarde descobri que, apesar de o número de viagens de bicicleta em São Paulo ter aumentado quase 200% em 10 anos (de 1997 a 2007), os acidentes fatais com ciclistas vêm caindo consideravelmente. O sistema cicloviário da cidade é praticamente inexistente [2], o que torna mais certeiro atribuir o avanço aos próprios atores do trânsito, que paulatinamente começam a se acostumar com os ciclistas, hoje estimados em mais de 300 mil.
[2] São Paulo tem menos ciclovias que Sorocaba, no interior do estado, com 70 quilômetros, e perde de longe para Rio Branco, capital acreana, com mais de 100.
É possível literalmente enxergar o processo de inclusão da bicicleta no espaço urbano, apenas com base em quem pedala e como pedala. A parafernália de equipamentos é um indicador. Nas cidades europeias notoriamente amigáveis com a bicicleta é quase impossível avistar um ciclista vestido a caráter. “Aqui tem essa ‘neura’ de luzinha, lanterninha, capacete. É mais seguro pedalar parecendo uma árvore de Natal. Tem de ser assim até que eles (os motoristas) nos vejam de verdade”, diz Teresa D’Aprile, uma veterana de 63 anos que pedala em São Paulo desde 1985.
Aprendi com Denis Russo, jornalista e autor do blog Sustentável é Pouco, que os primeiros cicloativistas americanos eram muito identificados com o perfil dos bike messengers: homens jovens que pedalavam agressiva e velozmente. André Pasqualini, fundador do Instituto CicloBR, conta que muitos dos desbravadores em São Paulo foram os esportistas radicais, uma turma predominantemente masculina.
Conforme a bicicleta vai se consolidando como alternativa de transporte num ambiente relativamente seguro, despontam mais mulheres. Elas ainda são um décimo do total de ciclistas na capital paulista, mas já é possível avistá-las na rua, assim como aqueles que aposentaram a lycra e usam roupas sociais – 70% dos deslocamentos de bicicleta são para ir e voltar do trabalho.
O último estágio é dado pela presença de crianças e idosos, até que o cenário ciclístico se torna tão diverso e corriqueiro que não há mais necessidade sequer da irmandade entre os adeptos. É o que notou João Paulo Amaral, com seus quatro anos de pedal paulistano, em visita a Copenhague, na Dinamarca: “Lá é tanta gente pedalando, tão comum, que isso não une as pessoas. No Brasil a gente ainda compartilha a descoberta da liberdade, de sair às seis da tarde e saber que o trajeto vai levar só 20 minutos. E todo mundo se identifica como minoria”.
O sistema de apoio montado pela comunidade de ciclistas para instruir iniciantes é vastíssimo. No meu caminho para encontrar Teresa D’Aprile e seu grupo, o Saia na Noite, só para mulheres, cruzo com outros ciclistas que invariavelmente buzinam e me cumprimentam. Lembro da saudação N’Avi, no filme Avatar: “Eu vejo você”.
A demora no trânsito é apontada por todos como o principal motivador para aderir à bicicleta. “Não deixa de ser triste perceber que foi só a partir do uso da classe média que esse assunto entrou no radar do governo”, diz o arquiteto e urbanista Ricardo Corrêa, cuja empresa, a TC Urbes, especializou-se em projetos cicloviários.
Depois de duas horas pedalando à noite, sinto-me relaxada pela primeira vez na semana. Poderosa endorfina. Não é à toa que, de todos os transeuntes de São Paulo, os ciclistas são praticamente os únicos com bons testemunhos sobre seus deslocamentos.
Psicocidade
Pedalar também pode ser estressante, especialmente porque as infrações consideradas pequenas por quem dirige podem representar risco de morte para quem está de bicicleta. É possível que todos estejamos imersos na mesma “seleção natural do trânsito”, como diz Russo, segundo a qual só os mais agressivos sobrevivem.
O jornalista remete-se ao guarda de trânsito que sinaliza freneticamente para que os carros passem, enervando quem gostaria de manter um ritmo tranquilo, e também ao “monstro de Porto Alegre”, o bancário Ricardo José Neis, que atropelou um grupo de ciclistas em fevereiro. “Esse cara não é punido quando está num estágio ligeiramente anterior a ser um doido que tenta matar 20 pessoas. Esse tipo de personagem se sente à vontade no trânsito, enquanto as pessoas mais sensíveis e tranquilas vão deixando de dirigir.”
A explicação do sociólogo Roberto DaMatta, em seu novo livro Fé em Deus e Pé na Tábua, é que a igualdade incomoda os brasileiros, acostumados ao sistema de privilégios e regras turvas. É como se tivéssemos recebido todo o aparato de um sistema moderno de trânsito, mas, culturalmente, ainda estivéssemos no tempo em que as senhoras distintas eram transportadas em cadeirinhas carregadas por escravos e a carruagem do senador merecia todas as reverências. Cada deslize alheio se transforma num insulto.
O carro como símbolo de status social, privilegiado no espaço, é um excelente gatilho para esse tipo de postura. Mas, segundo o sociólogo, todos os demais também são capazes de formular justificativas para sua superioridade. Na internet, os comentários em torno do incidente em Porto Alegre assumem o tom de uma guerra de culturas. Ciclistas são assim, motoristas são assado, qualificações nada lisonjeiras.
Psicólogos americanos descobriram, nos anos 60, um fenômeno chamado “categorização social”. Uma série de experimentos demonstrou que a simples divisão das pessoas em grupos estimula a rivalidade. Segundo Pasqualini, o movimento cicloativista vem tentando superar o discurso de superioridade moral de quem pedala.
“No começo, o pessoal protestava parando o trânsito e erguendo as bicicletas. Hoje eu não quero mais convencer ninguém a sair do carro. Já tem muita gente querendo pedalar.” No entanto, frases de ordem como “menos carro, mais bicicleta” e “eu transito, você congestiona” permanecem no repertório dos passeios ciclísticos em São Paulo.
De acordo com Esdras Vasconcellos, especialista em psicologia do trânsito, a vulnerabilidade de ciclistas e motociclistas é o que estimula o senso de comunidade. O mesmo não se observa nos motoristas, porque o carro, em que pese estar na rua, mantém o ocupante em seu espaço privado. Ainda mais em tempos de blindados e vidros escurecidos.
O efeito bicicleta
Uma das maiores descobertas de quem experimenta a vida sobre duas rodas é que trafegar vira sinônimo de ocupar a rua, diferentemente de quem está no carro ou no transporte público. É impossível evitar a interação com pessoas e o meio ambiente. Quando perguntei aos namorados João Paulo Amaral e Evelyn Araripe o que mais incomoda um ciclista, ele respondeu poluição; ela, o assédio dos homens na rua.
Não pude deixar de imaginar o que aconteceria com as cidades se todos – incluindo os mais privilegiados – estivéssemos mais expostos aos problemas permanentes do espaço público. Daí o significado amplo e poderoso da “massa crítica” [3], expressão favorita dos ciclistas.
[3] O termo, emprestado da física, significa a quantidade necessária de um material para manter uma reação nuclear. No contexto social, pode ser entendido como o auge da mobilização em que a realidade começa a se transformar.
Foi com a bicicleta que o arquiteto José Bueno redescobriu os rios de São Paulo. Fiquei boquiaberta ao saber que uma das nascentes do Rio Anhangabaú fica a poucas quadras da Avenida Paulista. Outras muitas nascentes e córregos estão espalhados em terrenos baldios e galerias submersas, ocultos nos pontos mais cinzentos da cidade. “O que aconteceria se as pessoas redescobrissem esses rios enterrados vivos?”, reflete Bueno.
Essa simples característica, ocupar e não apenas trafegar, tem o poder de revitalizar aqueles espaços que foram degradados, porque se tornaram mera via de passagem, ou porque a falta de vagas de estacionamento inibe a frequência. Se tiver ciclovia, melhor ainda. “O casamento do programa cicloviário com o de pedestres é indispensável. Se não tratar as calçadas, os pedestres ocupam a ciclovia. É natural que planejar esse dois modos envolva também árvores, bancos, praças”, diz Reginaldo Paiva, presidente de Comissão de Bicicletas da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
São esses os cenários perseguidos por grandes cidades do Novo Mundo, como Nova York, Seul e Bogotá, afinadas com Novo Urbanismo, que emergiu a partir dos anos 80 para defender os múltiplos usos do espaço público. Antes, o nascimento do urbanismo como disciplina coincidiu com o auge da Revolução Industrial. Conforme o espírito dos tempos, as ruas foram se assemelhando a engrenagens de uma máquina, ironicamente projetadas para a eficiência dos fluxos [4].
[4] Para saber mais, vale a pena conferir o livro Conquistar a rua! Compartilhar sem dividir (diversos autores, editora Romano Guerra).
Se não há permanência, não há necessidade de planejar ruas agradáveis. “Com a globalização, um dos grandes diferenciais para atrair investimentos passa a ser a qualidade de vida que a cidade proporciona a sua população”, lembra Adalberto Maluf, diretor da Fundação Clinton, em São Paulo. Inclua-se neste panorama a qualidade do ar, sempre associada ao fomento à bicicleta.
Talvez o mais importante aspecto dessa história é que a cidade congestionada se transforma também num lugar de imobilidade social, onde as oportunidades são limitadas por viagens penosas. Em São Paulo, um terço dos deslocamentos é feito a pé. Segundo Paiva, se apenas 10% dessas pessoas tivessem a chance de usar a bicicleta integrada ao transporte público convencional, a cidade teria 1,5 milhão de ciclistas cotidianos, fazendo trajetos curtos, não necessariamente atletas. Gente, como diz o urbanista Ricardo Corrêa, com mais flexibilidade e tempo para fazer um curso, cuidar dos filhos, consumir opções de lazer. Assim, qualidade de vida se aproxima da justiça social e faz a economia girar.
Se o leitor chegou até esse ponto e ainda está se perguntando o que a bicicleta pode fazer pelo trânsito, está fazendo a pergunta errada. Meu amigo Thiago Guimarães, economista que acaba de concluir um mestrado em planejamento urbano em Hamburgo, na Alemanha, diz que é tempo de superar os dilemas da mobilidade para entrar na era da acessibilidade: “Não importa se o cara consegue percorrer 400 quilômetros em um dia. O que importa é se as pessoas estão acessando os destinos que desejam”.
Encarar a mobilidade como um meio e não um fim revela o horizonte da multimodalidade, na qual há espaço para a bicicleta e também para os carros, ainda que sob restrições. Combina muito mais com a vida contemporânea, lembra Guimarães, porque o tempo em que as mulheres ficavam em casa e os homens se deslocavam religiosamente no mesmo horário ficou para trás. As múltiplas necessidades do século XXI requerem múltiplos modos de transporte, combinados entre si.
Sei que, no Brasil acostumado a espelhar suas diferenças no trânsito, a visão de um futuro em que todas as classes compartilham todos os modos é um tanto surreal. Mas algo que Corrêa disse ficou na minha cabeça: “No Brasil, a cada 30 anos, pelo menos, toda rua precisa ser refeita. Há um desgaste natural”. Voltando da entrevista, a bordo da minha bicicleta, eu não conseguia mais olhar as ruas da mesma forma. Cada esquina passou a simbolizar uma potência de transformação inexorável.