Nas filas e no trânsito, nas imagens de cineastas e fotógrafos, a “Locomotiva do Brasil” revela a sua imobilidade. Efeito e reprodução de um ímpeto modernizador que acentua cisões
Por Flavio Lobo
Na lanchonete de um shopping center paulistano, umas dez pessoas fazem fila. Enquanto o primeiro se entretém com as tarefas, aparentemente complexas, de definir o pedido, escolher a forma de pagamento, e, em seguida, a funcionária digita e redigita números, o grupo perfilado aguarda em silêncio. Um rapaz checa o relógio, alguns olham para os lados no ritmo ansioso da hora do almoço no meio da semana.
Ao lado da funcionária ocupada em atender a clientela, outra, postada à frente de uma segunda máquina registradora, apenas espera. A possibilidade de abertura do segundo caixa, entretanto, não suscita reação visível nos perfilados, a não ser por uma tendência geral de evitar um olhar direto naquela direção.
Vencida a perplexidade inicial diante da cena, o último da fila acena para a funcionária ociosa, que, com um gesto afirmativo, confirma: sim, o caixa está livre. Segundos depois, o cliente que ousou conferir a disponibilidade do segundo caixa – apesar do “risco” de uma resposta negativa – dirigi-se ao balcão com a ficha do pedido. A fila única, entretanto, para sua maior perplexidade, permanece imóvel. Exceto, provavelmente, por um tremor de raiva e vergonha no interior dos cidadãos ali parados, que, a despeito de toda a discrição com que se portaram, se sentem, provavelmente, expostos ao ridículo.
Filas imóveis
Como explicar a um carioca ou a um soteropolitano, por exemplo, uma situação tão paulistana? O que explica, no universo de uma cultura nacional que insiste em se identificar com o jeitinho e a esperteza e o calor humano, tanto retraimento individual no espaço público, tamanho desconforto ou medo diante do outro? Seria o fenômeno explicável pela necessidade uma obediência rígida a regras de convívio impostas na maior metrópole brasileira? Haveria respeito ao direito alheio no fundo dessa imobilidade? Não é o que evidenciam outros flagrantes do cotidiano da cidade.
Perto dali, nas escadas rolantes do metrô, por exemplo, formam-se filas continuamente. Nelas, misturam-se pessoas apressadas e outras nem tanto, gente que quer, e pode, usar as próprias pernas para acelerar a subida ou a descida e outros que, por falta de mobilidade ou urgência, se contentam em ser levados para cima ou para baixo na velocidade propiciada pela máquina. Um conflito potencial que, em muitas paragens mundo afora, se desarma graças a uma regra simples: quem opta por ficar parado posta-se, em geral, à direita, e quem quer se mover mais rápido passa pela esquerda. Mas não em São Paulo.
Na capital paulista bastam duas pessoas sem pressa para obstruir a passagem de dezenas de profissionais a ponto de perder a reunião, estudantes atrasados para a prova, namoradas cujos parceiros se recusam a entrar no cinema com o filme começado ou passageiros do trem das 11 que só conseguiram se desvencilhar de suas amadas às 22h55. Os esbaforidos, quase todos, estacam diante do duplo dique humano silenciosos como os perfilados da lanchonete. Tão incapazes de um “com licença” quanto aqueles de acenar à moça do caixa.
Assim, multiplicam-se filas que, em vez de agregar cidadãos a compartilhar direitos e um certo respeito mútuo, mesmo que impessoal, são constituídas por seres que, na falta da disposição para qualquer contato com o vizinho, se submetem à sua inevitável presença física. Não se trata de um modo de agir exclusivo dos usuários do transporte público. Basta constatar o comportamento reproduzido diária e maciçamente pelos proprietários e usuários de automóveis no trânsito da cidade.
Bumerangue
Em um artigo intitulado “O Centro no caminho da metrópole”, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Regina Meyer examina como o coração geográfico e simbólico da cidade foi retalhado em virtude de uma dinâmica centrífuga em sua expansão, mas centrípeta na organização viária. Por um lado, o crescimento populacional e a valorização crescente das áreas centrais foram empurrando a população mais pobre para periferias cada vez mais longínquas. Por outro, a falta de um planejamento que levasse seriamente em consideração interesses e necessidades outros que não os da reprodução do capital consolidou sistemas de transporte de alto custo socioambiental, que sobrecarregaram e desfiguraram o Centro, hoje cruzado por 2 milhões de pessoas diariamente.
Os atuais movimentos pela revitalização do Centro têm o mérito de pôr em pauta espaços públicos degradados, mas, freqüentemente, como assinala Vanderli Custódio, geógrafa do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, confundem recuperação com segregação. “O Centro já é cheio de vida. Poderia ser melhorado no sentido de oferecer mais oportunidades de habitação e convívio para muita gente, mas a idéia de revitalizar muitas vezes se traduz, sobretudo, numa elitização, em, por exemplo, afastar populações como as que integram os movimentos dos sem-teto”.
Atualmente, lembra Regina Meyer, passa por um novo surto de empreendimentos imobiliários para as classes média e alta baseado na multiplicação dos condomínios fechados. Além de agravar a segregação social, essa forma de urbanização verticalizada, ao contrário do que se imagina, nem ao menos contribui para a maior racionalização do uso do solo e da infra-estrutura disponível em bairros tradicionais, já que não garante o adensamento populacional.
Segregação
“Em bairros como a Vila Mariana, onde as casas foram substituídas por edifícios, o número de moradores por unidade de área construída diminuiu em vez de aumentar. Fenômeno que se explica, em parte, pelas grandes áreas destinadas a garagens”, conta Regina. “Desse modo essas regiões tornam-se mais elitizadas e as populações que não conseguem arcar com os custos crescentes da valorização imobiliária vão sendo empurradas para mais longe do Centro, onde a infra-estrutura e os serviços são mais precários.” Enquanto, nos bairros valorizados, a proliferação de “microcidades” muradas retira vitalidade dos espaços públicos.
Um episódio exemplar desse processo foi abordado pela cineasta Marta Nehring no documentário Vizinhos II, atualmente em etapa de finalização. O filme mostra como a valorização imobiliária e a implantação de novos condomínios de edifícios levou à expulsão, em 200X, dos moradores de uma pequena favela, que há décadas conviviam com os demais moradores do bairro da Vila Madalena. “Ao acompanhar essa história eu descobri a que ponto os movimentos populacionais da cidade são determinados pelos interesses dos agentes do mercado imobiliário e como faltam instrumentos, recursos e conhecimento aos mais pobres para enfrentar esse poder”, conta Marta.
A maioria dos antigos moradores da Favela do Rato hoje mora em regiões mais periféricas e, em geral, mais distantes dos locais de trabalho dos adultos e das escolas das crianças.
Atualmente Marta está na fase final do doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Sua tese é sobre a cidade de São Paulo no cinema dos anos 60. “O que existe de mais especificamente paulistano nas representações da cidade é o seu processo de modernização excludente, algo constante e flagrante, mesmo em filmes de cineastas considerados conservadores que não tematizam o assunto”, avalia a pesquisadora. “Desde as primeiras imagens de São Paulo, revelam-se nitidamente duas cidades: uma oficial, asséptica, retratada sob encomenda de empresários do café, outra marginal e conturbada, flagrada pela fotografia forense.”
Vãos centrais
Autodeclarada “locomotiva do progresso brasileiro”, que imprime em seu brasão a certeza de que lhe cabe indicar o caminho para o futuro do País (“Não sou conduzido, conduzo”), a “civilização paulista”, como dizia Glauber Rocha, não soube ainda apontar um destino desejável para sua própria população. Uns recolhidos em seus condomínios e veículos particulares, outros mantidos à distância das áreas onde a cidade concentra seus benefícios, a cruzar incessantemente seu território em longas e árduas viagens diárias. Pouco de São Paulo pertence a seus habitantes.
Em vez de repartir e democratizar, seu arroubo futurista sedimentou e aprofundou dicotomias. Centro e periferia, novo e velho, motoristas e pedestres, os consumidores compulsivos e os desprovidos do básico… Castas protegidas por muralhas, blindagens, armas, e os violentados pela brutalidade criminal e policial.
Antagonismos que abrem vãos estéreis no lugar de praças capazes de abrigar o encontro das diferenças, essencial à urbanidade. Abismos sociais freqüentemente expressos arquitetonicamente.
Ao refletir sobre a modernização do marco zero da metrópole, por exemplo, Regina Meyer conclui: “O vazio criado na Sé é pura indeterminação; remete ainda hoje, em termos puramente espaciais, mais claramente ao que foi implodido do que ao que conquistou – a nova estação (de metrô)”.
Praça periférica
Mas onde há quase 20 milhões de almas, há esperança. E a sedução da rua, do encontro e da diversidade, mesmo intimidada, dá sinais de vida. É o que evidencia a Virada Cultural. Além de inúmeros eventos menores, cidade afora. Como o Sarau da Cooperifa, promovido semanalmente no Jardim Guarujá, região sul da metrópole, que acolhe e abre o microfone a amigos, curiosos e poetas de onde quer que venham. Onde, numa quarta-feira de maio, Elber e Samantha, dois jovens negros, moradores da periferia, levantam-se para declamar Navio Negreiro.
Com o auxílio da marcação do ritmo improvisada no tampo de uma mesa por um amigo, o casal desfralda a indignação de Castro Alves: (…) Ouvem-se gritos…/ o chicote estala…/ Presa nos elos de uma só cadeia,/ a multidão faminta cambaleia…/
A formação da metrópole paulista e das identidades de seus habitantes é marcada por um processo de sujeição, baseado em permanente medo do castigo, a uma ordem que se pretende moderna, diz Eda Tassara.
Durante o Sarau da Cooperifa, numa vizinhança onde integrantes do movimento hip-hop lutam para transformar exclusão em protagonismo, o bar do Zé Batidão, embalado pela ira cívica da poesia abolicionista e republicana, vira praça do povo. Reduto de luta pela cidadania, possuído coletivamente pelos que aqui estão. Inspiração para uma cidade entregue aos outros.
Mais do que cogumelos no deserto
O historiador Nicolau Sevcenko diz como a cidade pode sair do atual “atoleiro de anomia”
Página 22: Uma cidade como São Paulo ainda pode abrigar transformações sociais, culturais, econômicas e ambientais que permitam o aprofundamento e a sustentabilidade dos ideais civilizatórios da urbanidade?
Nicolau Sevcenko: Acredito que São Paulo possa tentar se erguer do fundo do atoleiro de anomia e dispersão esquizóide em que se encontra, porque ainda aposto nas múltiplas energias sociais e criativas concentradas nessa megalópole. O que significa que essa cidade teria de reinventar o espírito de oposição, que tantas vezes na história nasceu e floresceu aqui, descortinando um horizonte viável de alternativas ao bloco neoconservador que, literalmente, nas últimas décadas, vem bloqueando a cidade e o País. Já contribuir para o avanço “dos ideais civilizatórios da urbanidade”, no ponto em que estamos, acho otimista demais. Temos ainda muita lição de casa para fazer, acumulada há muito tempo, antes de pretender ensinar alguma coisa aos outros.
22: Há exemplos auspiciosos na cidade atualmente?
NS: Existem, mas, até onde sei, muito isolados, dispersos e contingentes para a escala dessa megacidade. Há a vizinhança progressista que zela pela área pública em que brincam crianças de comunidades menos prósperas; há o filantropo que doa a biblioteca para uma escola pública; há o líder religioso que dedica a vida às crianças e à população de rua. É maravilhoso saber que ainda existam tais atitudes “démodé” de desprendimento, dignidade e abnegação. Mas na escala da hiperconurbação paulista essas belas iniciativas são tão exóticas como cogumelos no deserto. Se não houver disposições coletivas sistemáticas, abrangentes, integradoras e, ao mesmo tempo, críticas e capazes de confrontar o marasmo de idéias e o vazio de alternativas que paralisam tanto o País quanto a cidade, nossa auto-estima vai continuar rolando, ladeira da memória abaixo, pelo buraco do Anhangabaú, à várzea do Tamanduateí, ao fundo lodoso do Tietê e daí pelos grotões afora desse país que parece ter perdido sua identidade e o sentido de um destino mais equilibrado e de um futuro mais promissor.
A cidade virada
Pelo terceiro ano seguido, São Paulo experimentou a Virada Cultural. A idéia da prefeitura é oferecer, por 24 horas sem interrupção, shows e apresentações de dança e teatro, de graça, em diversos pontos da cidade. E, pela primeira vez, dez outros municípios paulistas realizaram a Virada Cultural do Interior, nos mesmos moldes do projeto paulistano, no fim de semana seguinte.
Depois de começar tímida (choveu no primeiro ano) e ofuscada (pelos ataques do PCC, no segundo), esta terceira edição na capital atraiu a impressionante marca de 3,5 milhões de pessoas – num município habitado por 11 milhões. À disposição de tanta gente, 350 atrações em 80 locais diferentes. Os palcos eram nos espaços do Sesc nos bairros, em centros educacionais e culturais, em bares, parques e museus, até chegar ao Centro da cidade. Naquela noite, de 5 para 6 de maio de 2007, o metrô também virou e funcionou a madrugada toda.
O Centro Velho concentrou a maioria das apresentações. Além de shows no Teatro Municipal, dez palcos foram erguidos, ao ar livre, em praças, esquinas e calçadões – lugares por onde se passa e não se pára.
Estar na rua é diferente de passar por ela. Nesta Virada, quem saiu de casa ganhou cultura e, muito mais, ganhou as ruas. As calçadas do Centro fervilhavam de sons, de gente, de vida. Não naquela correria mecânica, de passos rápidos, bolsa apertada no braço, cara fechada. Uma correria diferente. De gente se olhando nos olhos, de amigos se esbarrando. De desconhecidos se esbarrando.
Termina um show aqui, começa outro acolá. Para ir de um ponto a outro, nada de carro, flanelinha, estacionamento. O caminho é o chão, a pé. Um, dois, três mil, todos na rua. Todos a pé e, dessa forma, mais iguais. O rico, o classe média, o pobre. O jovem, o adulto, o mais velho. É mágico ver tantos diferentes nas mesmas calçadas, compartilhando o espaço, verdadeiramente público, do povo todo. Nesse espaço está o mendigo de sempre, que essa noite, com certeza, está menos invisível. Tem mais gente olhando para a cidade, olhando para ele, olhando para o que não costuma ser visto.
Com o passar das horas, não dá para não se perguntar por que as coisas não podem ser assim mais vezes. Não dá pra não perceber que grades e muralhas cada vez mais altas não são o caminho. Que colocar lanças num degrau para impedir que um mendigo se deite, que alguém espere pelo ônibus sentado, que um casal namore, pô, não vai evitar o próximo assalto. A Virada foi um não aos muros altos, à cidade desumana. Foi a experiência de gente conviver com gente. De viver a cidade.
É claro, além do mendigo, a cidade tem os bebuns, a polícia, o grupinho adolescente que vai com tudo na garrafa pet de conteúdo-alcoólico-não-identificado, no baseado. A pé, de frente para a confusão, é hora de escolher entre passar reto, mudar de rumo ou interagir. E o que não é a vida, se não uma sucessão de escolhas como essa? Treinar na calçada é ótimo.