No topo da pirâmide empresarial, não parece tão difícil ganhar adesão para a chamada economia verde. O problema, agora, é convencer os outros 99%. A boa notícia é que começa a pipocar uma série de movimentos nesse sentido
É inevitável que, ao ouvir falar dos esforços que empresas de porte global como uma Nike ou uma Wal-Mart estão levando a cabo para tornar suas operações mais sustentáveis, o pessoal que há anos tem batalhado por um mundo melhor e mais equilibrado sinta um alívio danado no peito. (Leia mais sobre a conversão da Nike na entrevista “A grande virada“)
Chegar a esse ponto em que os vilões do passado começam a fazer publicamente o mea-culpa e a rever suas maneiras de atuar foi meio como escalar o Everest – um esforço extenuante e que parecia não ter mais fim. O problema de chegar ao topo da montanha é que ainda falta encarar a descida e – como qualquer bom montanhista sabe – é justamente essa a parte mais perigosa. No caso em questão, convencer e engajar o 1% que está no zênite do empresariado global provavelmente vai parecer uma barbada quando comparada ao desafio de envolver as incontáveis hordas de micros, pequenos e médios empresários nos outros andares da pirâmide produtiva.
Para se ter uma ideia mais exata do tamanho da encrenca, convém refrescar a memória. Publicada na edição de número 24 de Página22 – há menos de três anos, portanto –, a reportagem “Para fora da bolha” abriu justamente contando o causo do cacique Paulo Cipassé Xavante, que, depois de passar três dias inteiros escutando um bando de especialistas esmiuçar os riscos do aquecimento global e as entranhas do mercado de carbono em um seminário voltado para pequenos agricultores de Mato Grosso, levantou e perguntou o que exatamente era o tal do carbono com o qual aqueles brancos estavam tão preocupados.
Para os padrões urbanos, a dúvida do cacique é inconcebível, mas desnuda o tamanho do abismo sobre o qual será preciso saltar. Não que tenhamos de dar aulas de ciências básicas para todos. Mas, quanto antes perdermos a ilusão de que estamos todos na mesma página, tanto melhor!
GIGANTES EM NÚMEROS
Há nada menos que 5,8 milhões de micros, pequenas e médias empresas (MPME) espalhadas pelo Brasil, segundo o levantamento do Anuário do Trabalho na Micro e Pequena Empresa 2009, publicado no ano passado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) – enquanto as grandes não somam 18 mil (O documento completo pode ser baixado no site dieese.org.br). E esses dados só contam as empresas formais. Há um número bem maior de micros, pequenas e médias escondidas sob a linha d’água da informalidade.
Juntas, empregam mais 17 milhões de brasileiros – 60% da força de trabalho do País – e respondem por um terço do PIB. Em outras palavras, se for mesmo para a tal economia verde que vai ser debatida na Rio+20 sair do papel, então, será preciso dar um jeito para que essa turma toda passe a levar a sustentabilidade em conta na hora de fechar negócio.
Logo de saída, é preciso ter em mente que esse grupo corta um dobrado só para ficar de portas abertas. Dados do Sebrae apontam que 31% das empresas naufragam no primeiro ano e 60% delas não chegam a completar o quinto aniversário. Não é de estranhar, portanto, que os empreendedores desconfiem de qualquer coisa que não ajude no caixa.
Superar essa reticência é um primeiro passo. “O empresariado pequeno e médio vive uma situação bastante difícil e ainda não despertou para a importância da sustentabilidade. A sobrevivência vem antes”, relata Milton Luiz de Melo Santos, que ocupa a direção da Nossa Caixa Desenvolvimento.
[1] A Agência de Fomento Paulista/Nossa Caixa Desenvolvimento foi criada em março de 2009 pelo governo do estado de São Paulo para estimular as pequenas e médias empresas paulistas com oferta de crédito em condições mais favoráveis. Apesar do nome, a agência não tem nenhuma relação com o banco comprado pelo Banco do Brasil em 2008
Não é que sejam ambientalmente insensíveis. “O empresariado não é diferente da sociedade. Se a sociedade reflete a temática ambiental, ele também”, pondera a empresária Eliana Pinheiro Belfort Mattos, atual diretora do Comitê de Responsabilidade Social da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Atuando na área desde 1984, ela sabe que os empresários vivem em um mundo que parece um exercício ininterrupto e hipertrofiado do dilema do prisioneiro [2], que os obriga a serem pragmáticos e zelosos de sua competitividade. “Se ele tiver um resultado melhor ou se seus competidores estiverem adotando práticas sustentáveis, então ele também vai adotá-las”, diz.
[2] O dilema do prisioneiro é um cenário clássico da Teoria dos Jogos, na qual um jogador pode ganhar se escolher trair os demais jogadores, mas todos os jogadores podem ganhar ainda mais caso colaborarem entre si. O problema é que as decisões de cada jogador devem ser tomadas sem saber das escolhas dos demais
QUEBRANDO A INÉRCIA
É uma postura que cria uma armadilha do tipo “ovo e galinha” difícil de quebrar. “Há uma relutância grande de ser o primeiro, porque a sustentabilidade exige investimentos que não dão retorno imediato”, avalia o engenheiro britânico e consultor da Gestão Origami, Richard Wightwick. Mesmo reconhecendo que o empresariado é formado por gente disposta a correr riscos e em que “sempre aparece alguém esticando o pescoço para chegar na frente”, Wightwick acha que falta aos pequenos musculatura o suficiente para lançar tendências de mercado, e isso os inibe de tentar.
Após 30 anos de experiência na diretoria de bancos internacionais, Wightwick fartou-se do mundo das finanças. Apaixonado pelo tema da sustentabilidade, ele resolveu reorientar sua carreira e, durante o processo, acabou aceito em um programa de pós-graduação da renomada Universidade de Cambridge, onde pesquisou como as MPME têm se relacionado com as questões da responsabilidade social empresarial (RSE) e ambiental.
Wightwick tem dúvidas de que elas estejam aptas a liderar a transição em direção a práticas mais verdes. “Os pequenos não conseguem influir sobre as tendências do mercado. Nesse sentido, acho que sempre serão seguidores”, opina.
A gerente de sustentabilidade do Citibank no Brasil, Daniela Stucchi, aponta em direção parecida. Para ela, o cerne dessa questão está nas grandes empresas, porque são estas que detêm o poder de compra. “São os grandes compradores – como as corporações e os governos – que determinam o que será produzido e como”, afirma.
Pode ser que o empurrão que faltava para tirar as MPME do repouso esteja a caminho. Como a direção da Zara descobriu recentemente, ganha corpo a noção de que as grandes empresas têm responsabilidade sobre suas cadeias produtivas. “Os grandes compradores estão usando sua força financeira para movimentar sua cadeia da mesma forma como o Poder Público vem fazendo ao determinar que só fecha contratos com quem atenda a critérios de sustentabilidade”, explica a coordenadora do Programa de Consumo Sustentável do GVces, Luciana Stocco Betiol. Como prova disso, ela destaca que as empresas que fazem parte do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) [4] são incentivadas a desenvolver inovação e soluções juntamente com seus fornecedores. Mario Monzoni, coordenador do GVces, defende esse trabalho em conjunto como uma forma mais justa e equilibrada de operar, uma vez que o poder de barganha das grandes empresas em relação às pequenas é muito assimétrico.
[3] Em agosto passado, a grife de origem espanhola meteu-se em um escândalo quando várias das confecções que fabricam roupas da marca em São Paulo foram flagradas usando trabalho escravo de imigrantes bolivianos
[4] Índice criado pela BM&FBovespa composto exclusivamente de ações de empresas que atendam a determinados critérios de responsabilidade social e ambiental
A adesão de pequenos e médios negócios às novas práticas deve ser facilitada pela norma ISO 14005 brasileira, que permitirá a implementação de sistemas de gestão ambiental por etapas. Haroldo Mattos de Lemos, superintendente do Comitê de Gestão Ambiental da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Lemos é um dos principais nomes no processo para a definição dessa nova norma da International Organization for Standartization (ISO).
As grandes não estão fazendo isso de forma gratuita. No fundo, estão apenas repassando as cobranças que vêm recebendo dos consumidores por meio de sua cadeia produtiva. “Acho que essa é uma tendência irreversível. Só que é difícil dizer se ela está avançando a galope, trote ou se arrastando”, adverte Wightwick.
BASTÃO E CENOURA
É evidente que a mudança não se dará apenas na base da ameaça. A compreensão de que a sustentabilidade é importante está se disseminando rumo à base. “Vejo isso cada vez mais em conferências e congressos. Qualquer que seja o assunto, sempre tem uma palestra sobre sustentabilidade. Existe um enorme interesse sobre como isso afeta as empresas e vai chegar o momento em que isso vai estourar”, diagnostica Wightwick.
A mera expectativa de que a situação esteja chegando ao ponto de inflexão tem feito coisas interessantes acontecerem. Desde março de 2009, a Nossa Caixa Desenvolvimento possui a linha Economia Verde, que oferece crédito mais barato – 0,49% ao mês mais IPC – e prazos espichados para pequenas e médias empresas paulistas com projetos de redução das emissões carbono. A linha ainda não decolou: até o momento, os empréstimos somam só R$ 1,8 milhão. “Essa demanda nos leva a concluir que essas empresas ainda não colocaram a adoção de práticas ambientais como prioridade”, reconhece, contrafeito, Melo Santos, diretor-presidente da agência de fomento.
O problema, segundo Mattos de Lemos, é que os pequenos negócios ainda estão muito apegados ao paradigma dos anos 70, que via apenas custos nos critérios ambientais. “Só bem mais tarde é que se começou a perceber que os processos de produção podem ser modificados para reduzir desperdícios. Hoje você encontra empresas que têm boa gestão ambiental, porque isso as torna mais competitivas”, diz.
“Ainda falta uma sinalização dos benefícios que eles vão ter”, avalia Luciana, do GVces, que vem contribuindo com um projeto de mapeamento sobre o tema para orientar o trabalho do Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS), fundado em abril passado. “As micros e pequenas terão de se regularizar. Para isso, elas precisarão saber o que é sustentabilidade e como podem atuar. O Sebrae entendeu que teria um papel para cumprir aí”, conta.
O diretor-técnico do Sebrae, Carlos Alberto dos Santos, explica que a ideia de fundar o CSS surgiu da percepção de que sustentabilidade está se tornando um fator de competitividade. Há dois componentes distintos: os esforços na racionalização do consumo de energia e de insumos, que se traduzem em menores custos de produção, e os clientes cada vez mais exigentes – há quem tope pagar 10% a 20% a mais por produtos ecologicamente corretos. “Os pequenos empresários precisam perceber o potencial desse mercado e que é um bom negócio ser sustentável”, anima-se Santos.
Mas, uma vez vencida essa barreira, Santos confia que as MPME não terão tanta dificuldade para fazer suas transições quanto as grandes tiveram. “Os pequenos negócios são flexíveis e transitam para novos modelos com bastante velocidade”, aponta. Luciana Betiol concorda com o prognóstico. “Elas não precisam mover grandes estruturas. Então, desde que tenham acesso adequado à informação, as micros e pequenas têm uma velocidade de resposta bem melhor”, arremata.
DE OLHO NO GRANDE CLIENTE
Tem mais gente trabalhando para levar adiante essa noção. Há alguns anos a Fundação Citi – braço social do Citibank – vem colocando recursos em ações no que a superintendente de assuntos corporativos do Citibank no Brasil, Priscilla Cortezze, chama de “empreende- dorismo sustentável”. “Temos programas voltados para startups, para negócios mais estruturados e para geração de renda”, explica.
Até o fim deste ano, uma parceria entre o banco e o GVces lançará um novo programa, chamado Inovação e Sustentabilidade na Cadeia de Valor. A ideia é descobrir pequenas e médias empresas com produtos e serviços inovadores nas áreas ambiental e social e ajudá-las a fechar contratos com grandes corporações. Segundo a gerente de sustentabilidade do Citibank, Daniela Stucchi, o resultado será potencializar novos “ecossistemas econômicos com inclusão social e preservação ambiental”. “Nosso entendimento é o de que os investimentos devem ir para organizações com o potencial de formar tais ecossistemas”, conta.
Não é a primeira investida do Citibank. Desde 1999, o banco é um dos apoiadores globais do New Ventures, um programa que incentiva novos empreendimentos com DNA verde ajudando-os a refinar planos de negócios e encontrar investidores. Em 2002, o programa ganhou uma versão brasileira que, em nove anos, potencializou seis empresas verdes nacionais.
A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) também tem olhado atentamente para o potencial da sustentabilidade nas MPME. Há anos, a entidade inclui o impacto ambiental e social entre as variáveis que seus técnicos analisam para aprovar financiamentos e, em seu edital de Subvenção Econômica à Inovação de 2009, nada menos de R$ 50 milhões foram para uma legenda chamada “desenvolvimento social”. Para o economista Eduardo Lopes, isso vai bem ao encontro do que a entidade foi criada para fazer – fomentar a inovação. “A economia verde exigirá nada menos que uma revolução tecnológica. E evolução tecnológica é a nossa missão”, diz ele, que hoje ocupa o posto de superintendente substituto da Área de Investimentos da Finep.
O economista garante que não para por aí, e que a Finep tem feito o possível para incentivar a cultura do venture capital no Brasil. “A gente acredita que essa é uma ferramenta muito importante para alavancar empresas inovadoras no Brasil”, completa, lembrando que uma parcela considerável das empresas que os procuram almeja alavancar negócios que, de uma forma ou de outra, produzem impactos socioambientais positivos. “Uma delas está desenvolvendo um processo que aumenta o prazo de conservação de alimentos e outra implantou uma tecnologia que reduz o desperdício de madeira na construção civil”, exemplifica.
[5] modalidade de investimento de alto risco fornecida a empresas de bom potencial, mas que se encontram em estágios bastante preliminares de organização
Apesar de o mercado ainda emitir sinais um tanto contraditórios, parece claro que existe uma janela de oportunidade que pode ser bem aproveitada pelas MPME. Carlos Alberto dos Santos, do Sebrae, não tem dúvidas de que logo a boa vontade dos consumidores para com as empresas responsáveis será substituída pela intolerância para com as irresponsáveis. “Em mais alguns anos, haverá um movimento de ‘punição’ às que não forem ecoeficientes. Quem inovar agora vai embolsar um bom prêmio e também se adiantar a essa mudança”, finaliza. O desafio é conseguir colocar toda a pirâmide na mesma página.
O empreendedorismo social
De uns tempos para cá, uma nova estirpe de empresários tem capturado manchetes e a atenção: os chamados empreendedores sociais. Essa turma, bem servida de pequenos negócios, acredita que as empresas podem fazer muito mais do que gerar lucro.
O conceito foi criado pelo ativista americano Bill Drayton, que, em 1980, fundou a organização Ashoka. Mônica de Roure, diretora da Ashoka no Brasil, explica que criar negócios pode ser uma maneira efetiva de transformar a realidade social, reduzindo a pobreza e empoderando grupos socialmente fragilizados – como mulheres e populações tradicionais. Só que não basta adotar boas práticas sociais para caber na definição. “Em uma empresa tradicional o objetivo é o lucro, enquanto em uma empresa social o resultado é o impacto social positivo”, explica.
É uma diferença sutil, mas que tem consequências de longo alcance sobre o que a empresa produz, como ela trabalha e investe seus resultados. “Não estou dizendo com isso que ter uma empresa tradicional seja maléfico, apenas que as metas são diferentes”, diz Mônica.
Fundada em abril de 2008, a Sementes de Paz entrega gêneros alimentícios orgânicos em casa. Segundo um de seus fundadores, Omar Haddad, o projeto nasceu na forma de uma cooperativa de consumidores para comprar orgânicos a preços mais baixos, direto dos produtores. Mas logo alguns deles perceberam que havia aí uma boa oportunidade de negócio.
“A diferença está no nosso objetivo, que é gerar investimentos para a cadeia de comércio justo e da agricultura responsável. também temos um modelo de governança corporativa diferenciado, porque nossa formação de preços é totalmente transparente”, explica Omar, acrescentando que a maior dificuldade não é trabalhar de forma responsável, mas arcar com todos os custos de se manter formalizado. “Para os pequenos, ser formalizado é muito difícil”, reclama.