A polarização em torno de Belo Monte esconde a verdade retumbante de que a verdade não existe. Entender que o mundo tem mais cinzas que preto e branco é parte de virar adulto
“Amiga, email privado, não vai contar pra ninguém: me diz sua posição sobre Belo Monte? Explica assim, resumidamente, de forma que uma jeca-tatu como eu entenda? Eu vi aquele videozinho e, no impulso, assinei. Mas, no segundo seguinte comecei a pensar, li algumas posições, e percebi que minha ignorância é tanta e tão profunda que nem com informação abundante sou capaz de entender qual lado ‘está certo’, se é que o certo existe. Você é minha última salvação.”
O risco de perder a amiga por reproduzir aqui o email “privado” dela não vem ao caso. Mas a mensagem despertou a mesma aflição que vivi mês passado, ao levar marido e filho para ver um documentário sobre a selva africana.
Um cineasta acompanhou um grupo de leões rivais brigando por território e, em paralelo, a batalha de uma guepardo pela sobrevivência dela e de seus filhotes. Entrei no cinema orgulhosa da minha ideia genial – um filme diferente das animações da Pixar, beleza natural pra valer, programa para toda a família. Mas, quando o filme começou, olhei para o lado e vi caras de horror no marido e no filho.
O marido confessou depois que pensou em sair na metade do filme, coisa que nunca fez na vida. Ele, que é um apaixonado por filmes latino-americanos cheios de tortura, vidas duras e violência, estava arrasado com a crueldade da vida selvagem. Eu nem sequer entendi. A crueldade dos seres humanos não é muito pior? Pois para ele, o ser humano pode escolher não ser assim.
Mesmo que o ser humano esteja escolhendo pouco, muito pouco não ser assim, para o meu marido há conforto em saber que temos a opção, enquanto a vida na natureza é o que é, instintivamente terrível. Eu nunca tinha pensado assim.
Outro aterrorizado era meu filho de 4 anos, mas não pela crueldade. Para uma criança formada em Tom & Jerry, ser cruel é um conceito relativo. O que o transtornava era não conseguir identificar quem era do “bem” e quem era do “mal”.
Se você já teve infância, sabe como a coisa funciona. A gente ora torce para o bem, ora fica fascinado com o mal. Independentemente da nossa escolha, a gente sabe quem é quem. O problema do meu filho, ali naquela sala de cinema, foi se deparar com uma verdade assustadora: nem sempre é possível distinguir o bem do mal. As hienas que comeram dois filhotes da guepardo eram até tarefa fácil. Feias, antipáticas e noturnas, preenchiam vários clichês do vilão. Já os leões eram igualmente austeros, as leoas charmosas e os filhotes fofinhos. O que não os impedia de atacarem uns aos outros, comerem alguns, matarem muitos. Passei metade do filme respondendo à mesma aflita pergunta: “Mãe, e esse, é do bem ou do mal?” Conforme o filme avançava, meu filho ficava mais e mais angustiado. Saímos do cinema os três acabados, eles pela experiência, eu de arrependimento.
Há gente muito mais inteligente do que eu escrevendo há séculos sobre o bem, o mal, a moral e essas pequenas grandes questões filosóficas. Mas essa história familiar me fez lembrar da dificuldade que temos em lidar com a verdade retumbante de que a verdade não existe. Sob a perspectiva de cada um, a coisa tem sua justificativa. E é difícil julgar, como é difícil. Entender que o mundo tem mais cinzas que preto e branco é parte de virar adulto.
Assim como não soube responder a meu filho, não sei responder à minha amiga. Na sustentabilidade, como diz meu chefe, há muitas variáveis que variam. Lidar com elas é um desafio diário. No entanto, se precisar decidir quem está com a razão, eu vou pela emoção. Na dúvida, torço pelo oprimido.
Eu não sei muito sobre o modelo energético brasileiro. Não tenho conhecimento suficiente para avaliar a possibilidade de um apagão apocalíptico. Os bilhões parecem muito dinheiro, mas quando passa de três zeros tudo parece muito dinheiro. Eu não conheci os ribeirinhos, não conheci os índios de lá, assim como nunca troquei uma prosa com o ministro de Minas e Energia.
Todavia, quando minha cabeça funde, lembro de um documentário a que assisti há tempos sobre a construção de outra hidrelétrica, em outro lugar. Um senhor, ao ser perguntado o que achava de aquela obra alagar a casa dele, disse, num tom quase constrangido: “Senhora, quem sou eu para atrapalhar o desenvolvimento do Brasil…”
Minha amiga, eu não tenho resposta para o seu email. Sou totalmente ignorante, como você. Mas, se precisar torcer por algum lado, eu torço por aquele homem. Para o desenvolvimento que ele quiser para si. Quem somos nós para atrapalhar o desenvolvimento dele.
* Pesquisadora do GVces e Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela London School of Economics and Political Science[:en]A polarização em torno de Belo Monte esconde a verdade retumbante de que a verdade não existe. Entender que o mundo tem mais cinzas que preto e branco é parte de virar adulto
“Amiga, email privado, não vai contar pra ninguém: me diz sua posição sobre Belo Monte? Explica assim, resumidamente, de forma que uma jeca-tatu como eu entenda? Eu vi aquele videozinho e, no impulso, assinei. Mas, no segundo seguinte comecei a pensar, li algumas posições, e percebi que minha ignorância é tanta e tão profunda que nem com informação abundante sou capaz de entender qual lado ‘está certo’, se é que o certo existe. Você é minha última salvação.”
O risco de perder a amiga por reproduzir aqui o email “privado” dela não vem ao caso. Mas a mensagem despertou a mesma aflição que vivi mês passado, ao levar marido e filho para ver um documentário sobre a selva africana.
Um cineasta acompanhou um grupo de leões rivais brigando por território e, em paralelo, a batalha de uma guepardo pela sobrevivência dela e de seus filhotes. Entrei no cinema orgulhosa da minha ideia genial – um filme diferente das animações da Pixar, beleza natural pra valer, programa para toda a família. Mas, quando o filme começou, olhei para o lado e vi caras de horror no marido e no filho.
O marido confessou depois que pensou em sair na metade do filme, coisa que nunca fez na vida. Ele, que é um apaixonado por filmes latino-americanos cheios de tortura, vidas duras e violência, estava arrasado com a crueldade da vida selvagem. Eu nem sequer entendi. A crueldade dos seres humanos não é muito pior? Pois para ele, o ser humano pode escolher não ser assim.
Mesmo que o ser humano esteja escolhendo pouco, muito pouco não ser assim, para o meu marido há conforto em saber que temos a opção, enquanto a vida na natureza é o que é, instintivamente terrível. Eu nunca tinha pensado assim.
Outro aterrorizado era meu filho de 4 anos, mas não pela crueldade. Para uma criança formada em Tom & Jerry, ser cruel é um conceito relativo. O que o transtornava era não conseguir identificar quem era do “bem” e quem era do “mal”.
Se você já teve infância, sabe como a coisa funciona. A gente ora torce para o bem, ora fica fascinado com o mal. Independentemente da nossa escolha, a gente sabe quem é quem. O problema do meu filho, ali naquela sala de cinema, foi se deparar com uma verdade assustadora: nem sempre é possível distinguir o bem do mal. As hienas que comeram dois filhotes da guepardo eram até tarefa fácil. Feias, antipáticas e noturnas, preenchiam vários clichês do vilão. Já os leões eram igualmente austeros, as leoas charmosas e os filhotes fofinhos. O que não os impedia de atacarem uns aos outros, comerem alguns, matarem muitos. Passei metade do filme respondendo à mesma aflita pergunta: “Mãe, e esse, é do bem ou do mal?” Conforme o filme avançava, meu filho ficava mais e mais angustiado. Saímos do cinema os três acabados, eles pela experiência, eu de arrependimento.
Há gente muito mais inteligente do que eu escrevendo há séculos sobre o bem, o mal, a moral e essas pequenas grandes questões filosóficas. Mas essa história familiar me fez lembrar da dificuldade que temos em lidar com a verdade retumbante de que a verdade não existe. Sob a perspectiva de cada um, a coisa tem sua justificativa. E é difícil julgar, como é difícil. Entender que o mundo tem mais cinzas que preto e branco é parte de virar adulto.
Assim como não soube responder a meu filho, não sei responder à minha amiga. Na sustentabilidade, como diz meu chefe, há muitas variáveis que variam. Lidar com elas é um desafio diário. No entanto, se precisar decidir quem está com a razão, eu vou pela emoção. Na dúvida, torço pelo oprimido.
Eu não sei muito sobre o modelo energético brasileiro. Não tenho conhecimento suficiente para avaliar a possibilidade de um apagão apocalíptico. Os bilhões parecem muito dinheiro, mas quando passa de três zeros tudo parece muito dinheiro. Eu não conheci os ribeirinhos, não conheci os índios de lá, assim como nunca troquei uma prosa com o ministro de Minas e Energia.
Todavia, quando minha cabeça funde, lembro de um documentário a que assisti há tempos sobre a construção de outra hidrelétrica, em outro lugar. Um senhor, ao ser perguntado o que achava de aquela obra alagar a casa dele, disse, num tom quase constrangido: “Senhora, quem sou eu para atrapalhar o desenvolvimento do Brasil…”
Minha amiga, eu não tenho resposta para o seu email. Sou totalmente ignorante, como você. Mas, se precisar torcer por algum lado, eu torço por aquele homem. Para o desenvolvimento que ele quiser para si. Quem somos nós para atrapalhar o desenvolvimento dele.
* Pesquisadora do GVces e Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela London School of Economics and Political Science