Com mais uma eleição este ano, surge um fio de esperança de mudança e renovação do jogo político brasileiro. Mas, para Fernando Henrique Cardoso, a política brasileira, em sentido metafórico, morreu. Ao mesmo tempo, o que temos é a arquitetura da democracia, mas não sua alma. Segundo o ex-presidente, em entrevista concedida a Página22 em novembro passado, os partidos não representam seus eleitores e a população não é consultada efetivamente sobre as decisões tomadas em Brasília. E o que é mais grave: “A corrupção virou condição para a governabilidade”, diz.
É nesse contexto que os movimentos de cidadãos insatisfeitos, conectados em redes sociais e tomando as praças, aparecem como uma modalidade importante de participação e de evolução democrática. Mas, entre sonháticos e pragmáticos, Fernando Henrique defende a “utopia viável” e pondera, valendo-se de Maquiavel: “Quando você vai fazer uma reforma, a dificuldade de aplicá-la é que os beneficiados pela reforma nem percebem; já os que vão perder com ela sabem logo. Por isso, unem-se e bloqueiam a mudança”. Para Fernando Henrique, um engano muito comum é pensar que as pessoas preferem o novo. “Isso não é verdade. Elas têm medo e escolhem aquilo com que estão acostumadas.” (Assista ao vídeo com trechos da entrevista )
O Brasil vive uma democracia real?
Certamente há uma confusão ao pensar que basta ter uma formalidade democrática para ter democracia. Nós temos eleição e liberdade. Os partidos se organizam como querem. E, apesar disso, as pessoas não se sentem comprometidas com a política. Uma vez colocado o voto na urna e escolhido o representante, o político eleito vai para um lado e o eleitor vai para o outro. Então, o que precisa é conectar mais. Isso não quer dizer que o voto, a representação e os partidos serão retirados da democracia. Mas só isso não esgota o exercício dela. É mais que isso. Por exemplo, no Brasil nós ainda não temos um sentimento, que é fundamental à democracia, de que somos todos iguais perante a lei. Não somos iguais nem perante a lei. Tem gente que vai para cadeia e tem gente que não. Está errado. Se a lei é a mesma, tinha de ser aplicada a todos. Então ainda temos de caminhar muito para efetivamente ter democracia. O que temos é arquitetura da democracia, falta a sua alma.
Diante disso, quais seriam as maneiras de o cidadão se envolver politicamente?
Penso que plebiscito é algo importante, mas não para tudo. Se o presidente é carismático e coloca as decisões em plebiscito a toda hora, ele sempre ganha e não dá tempo para que as pessoas pensem e tomem uma posição sobre o tema. Nossa Constituição diz que, para que haja um plebiscito, é preciso que o Congresso aprove. O presidente não pode chamar um plebiscito porque ele pode ser usa- do como uma arma antidemocrática. Certas matérias, se colocadas em plebiscito, sem dar condições para a sociedade ficar informada, podem ter resultado que não seja bom para a democracia. Vou dar um exemplo: pena de morte. Se você colocar em plebiscito vai ganhar o “sim”. Ou que a penalização das pessoas começa aos 14 anos, vai ganhar o “sim”. E será que isso é bom?
Você também pode participar por meio das redes sociais. Ou a cada vez que o presidente ou o Congresso faz uma escuta para aprovar uma lei. É comum que, antes de votar, se coloque a lei na internet. É para que as pessoas opinem sobre o projeto. Quando a lei está no Congresso, chama-se uma audiência pública para a mesma função. Não era assim no passado.
Agora, já começa a existir mais interconexão entre o governo e a sociedade, entre as instituições e as pessoas. São formas de ampliar sua participação no jogo democrático. E não é só para pensar as grandes decisões do Congresso, às vezes é para pensar coisas muito mais simples. Eu quero ou não quero que passe ônibus numa avenida? Isso precisa ser debatido com as pessoas que estão lá. A sociedade moderna é uma sociedade que discute e que pergunta. Você não resolve só do seu gabinete. O político pode até buscar uma resposta técnica para justificar uma transformação, mas deve tentar convencer os envolvidos na decisão de que ela é boa.
E, para que a sociedade delibere, o governo a tem informado sobre as decisões que toma?
No Brasil estamos no momento em que as grandes decisões não passam pela discussão. Belo Monte é um exemplo (mais em “Seis passos para entender Belo Monte“). Ou qualquer decisão que vai mudar a vida de muita gente, como a construção de um trem-bala. No fundo, isso não foi propriamente discutido na sociedade. Quando o governo mostra esses grandes projetos na imprensa ou na televisão, é propaganda, não é deliberação. Não são mostrados na TV para checar se a população quer dizer sim ou não para aquilo. São para convencer a todos dizerem sim àquela proposta.
Eu sinto que foi isso que aconteceu com Belo Monte. A opinião não foi formada. As pessoas nem sabem o que se passa lá. É preciso sempre perguntar se há alternativas para os impactos daquela obra. Não dá para tomar uma decisão sem ver os diversos ângulos e perguntar: “Vocês sabem que serão afetados? Quais são os efeitos?” (Lembrando que a Usina de Belo Monte foi projetada no governo militar e incluída no programa Avança Brasil, na gestão de FHC.)
Ainda estamos longe de uma verdadeira sociedade que delibera e decide. Aqui se toma uma decisão, faz-se uma audiência pública para fingir que perguntou para a população e a maioria não sabe nada sobre o assunto. Ela nem chegou ao ponto de se interessar pelas questões.
Voltando ao exemplo de Belo Monte: quanto vai custar a linha de transmissão? Quanto se perde de energia de lá até aqui? Será que compensa? Talvez os mais técnicos saibam, mas eu não sei e acho que você também não. Então, não houve uma discussão propriamente dita e, depois, já é irreversível. Está feito. Esses vídeos de protestos que surgem na internet servem para constranger quem tomou a decisão. E terão efeito eleitoral, além de ampliar a consciência da sociedade. É preciso debater mais sobre essas questões na época das eleições e forçar as pessoas a se comprometerem com as causas.
O Brasil escolhe seus governantes por meio de representação de candidatos eleitos que são filiados aos partidos. o senhor acredita que eles de fato representam as necessidades da população?
Não acho. O Brasil tem muitos partidos que não são partidos. Deveriam ter uma proposta, uma visão, uma filosofia, uma posição diante da sociedade. E ter uma organização para integrar essas ideias. Mas, aqui, os partidos não têm compromisso com os valores. Alguns tinham, alguns ainda têm. Mas existem 20 partidos ou mais. Eu nem sei o nome deles. Normalmente, nas democracias organizadas e maduras, os partidos representam valores e interesses de segmentos da população. Uns querem educação pública, outros querem educação privada. É legítimo. Desde que o partido indique uma posição e eleja políticos para defender isso.
No Brasil, não acontece isso. Na campanha não são colocadas essas questões, todos falam a mesma coisa. Faz-se uma pesquisa e a população diz que a saúde é o que se tem de pior. Então, fala-se na campanha que vão melhorar a saúde. Enfim, dizem só coisas comuns. O discurso é quase o mesmo. A diferença é no modo de fazer, com mais simpatia ou menos simpatia. Quando chegam ao Congresso, aí os interesses da sociedade organizada tentam “pescar” quem vai se ligar a eles. É claro que isso é insatisfatório.
A política está “doente”, então?
Na Europa, já morreu. Os primeiros-ministros da Grécia e da Itália são técnicos escolhidos pelo mercado abertamente. Na Itália, era uma pessoa que nem era do Congresso, então foi nomeado um economista respeitado como senador vitalício para ele chegar ao cargo.
Bom, então, para que política? Ali, realmente, está morta. Os políticos fizeram tanta loucura que perderam a conexão com a sociedade e a capacidade de dar resultados a ela. E é nessa hora que a população ou os grupos de interesses se mobilizam e vão para as praças dizer: vocês não estão fazendo nada, queremos outra coisa. É como dizer metaforicamente que a política morreu. Que isso nem é política.
Política, no fundo, são as condições pelas quais alguém pode mandar nos outros e tomar as decisões por eles. Na democracia, você tem de ter algum grau de aceitação. E a política é sempre uma interação: o que se pode fazer, até que ponto se comanda e quem comanda. E ela existe em todo lugar, na família, no trabalho, no meio artístico, nas religiões e na sociedade. Só pode morrer no dia que não tiver mais quem mande. Enquanto existir hierarquia, sempre haverá o questionamento: “Por que eles estão lá em cima e eu não? Como eu chego lá?” Isso é que é a política. E a Constituição é para dizer dentro de quais limites a pessoa manda.
O governo tem de oferecer resultados, melhorar educação, dar mais emprego. E, quando deixa de fazer essa política, já não serve para mais nada. O que está acontecendo, hoje, é isso. Nesse sentido é que, metaforicamente, estão dizendo que a política morreu, mas não vai morrer nunca.
Existem outros meios satisfatórios para alinhar as ações do congresso às necessidades da sociedade no sistema de representação em que vivemos?
Muita gente está insatisfeita com o sistema eleitoral que nós temos. E é difícil mudá-lo, porque os que estão lá não querem mudança. Eu sou favorável ao voto distrital. Mas ele não será aprovado agora, porque os que foram eleitos não querem que mude o sistema que os colocou lá. Eles têm medo. Um engano muito comum é pensar que as pessoas preferem a coisa nova. Isso não é verdade. As pessoas têm medo do novo e preferem aquilo com que estão acostumadas. Quando você vai fazer uma reforma – quem dizia isso era Maquiavel –, a dificuldade de aplicá-la é que os beneficiados pela reforma nem percebem, já os que vão perder com ela logo sabem. Por isso, unem-se e bloqueiam a mudança.
Do jeito que vai, vai mal, todo mundo sabe. E já faz muito tempo que sabe e vai lá e ainda vota da mesma maneira. E depois esquece em quem votou. Como o caso Tiririca. Ao votar nele, elegeram-se outros quatro e mal se fica sabendo disso. O problema não é votar no Tiririca, mas levar ao Congresso outros que nem foram escolhidos. A Lei da Ficha Limpa foi um bom procedimento. Acho que é correto, mas somos muito burocratizados, então é possível que o candidato tenha dificuldade para cumprir todas as suas obrigações.
Os partidos podem apresentar suas contas livremente e deveriam, porque tem uma lei no Brasil que permite aos partidos receberem recursos de pessoas e de empresas. Então, por que há tanto mercado negro se é legal receber esse dinheiro? É porque, quando a empresa dá dinheiro para o político, dá o do caixa 2, e ele não pode declarar que recebeu. Tem muito dinheiro que é de corrupção. O custo da campanha é muito alto por causa do sistema eleitoral. Por isso, o voto distrital é melhor, pois atinge um eleitorado menor e cada partido terá um só candidato naquela circunscrição. Isso barateia a eleição. (mais na reportagem “Antes… e depois?”, edição 59)
Como a campanha é voltada para eleitorados muito grandes, ela depende da televisão, que o governo paga, mas a produção do programa é caríssima. Então, nós criamos uma camada de gente que vive de campanha, que enriquece durante a campanha. A campanha na internet seria bem mais barata. E isso de que estamos falando aqui não dá para falar na campanha. Precisa preparar o clima antes. Por isso, essas redes são úteis para ampliar as informações sobre qualquer transformação.
Mas os políticos sabem usar a internet?
Os políticos até hoje não entenderam como lidar com a internet. Eles se lembram dela apenas na hora da campanha, aí não adianta. Ou você cria fidelidade e confiança por meio desses canais com os eleitores, ou não passa a mensagem. Não adianta usar a internet para fazer propaganda, como se faz na televisão. Porque, para funcionar, é necessário ser interativo. Se você fala uma coisa, o outro responde e você tem de se explicar. E os políticos não perceberam isso.
Nas redes sociais estão surgindo fóruns de discussão e encontros de pessoas insatisfeitas com a política que é feita no País. São grupos difusos que ainda não definiram pautas e meios de atuação. Estão em um estágio de planejamento e sonho. na sua avaliação, esses grupos podem realizar transformações efetivas a partir de um sonho?
Se você não tiver nenhum sonho, vai fazer uma política pela manutenção do que aí está. Se quiser falar de uma maneira mais pedante, fale em utopia. E não há política verdadeira sem utopia. Utopia, por definição do grego, é: não está em lugar nenhum. Eu costumo usar o termo utopia viável, que é uma contradição dos termos, porque a utopia, em si, não é viável. Mas precisa ser, não se pode inventar um sonho que não permita nenhum caminho. São necessários mecanismos que liguem essa sonhática com a pragmática, quer dizer, com o que acontece de verdade na sociedade, no Congresso e nos partidos.
Essa sonhática é um momento inicial de negação do que está acontecendo. Quando percebo que não quero isso que está aqui, quero algo melhor, mas ainda não há o caminho. E isso é importante. Se você não tiver essa capacidade de enxergar uma coisa diferente do que está aí, não se muda nada. Na política, você sempre tem de prestar atenção aos sonhadores. A Marina Silva representou um pouco isso: um sonho de outro modo de relacionamento com o meio ambiente. Mas a Marina não tinha caminho nem estrutura para chegar lá. E um dos meios de acesso é institucionalizar, e essa é que é a dificuldade.
Como se transforma um desejo numa prática? E uma prática que não seja só sua, mas compartilhada? O político não pode ter compromisso só com o ideal dele, ele tem o compromisso de pelo menos aproximar o ideal dele às práticas coletivas. E de criar condições de sua ampliação. Isso é complicado, porque geralmente quem sonha não gosta da prática e quem gosta da prática não gosta dos sonhos. Mas a vida é isso. Impulso de transformação. Se não, não está vivo.
O senhor considera possível encontrar o caminho dessas transformações só por meio dessas redes, de forma apartidária?
Não. Só a internet não funciona. Precisa também do institucional. Mas a sociedade não se mobiliza a toda hora. Os partidos e os políticos ficam o dia inteiro tomando posição, mas a sociedade não faz isso. Mesmo na internet é assim, você liga e desliga da rede quando quer, diferentemente do político, que está o tempo todo ligado. Em certos momentos, a sociedade se contagia, como ocorreu com a Primavera Árabe, porque alguns fatos provocaram aquilo. Existem hoje os agitadores de internet, na Sérvia existe uma ONG especializada em treinar as pessoas para atuar em protesto de internet. Então não é totalmente espontâneo. Há um pouco de organização. E uma mudança como aquela ocorre quando a sociedade não aguenta mais. É uma somatória de autoritarismo com desemprego e as pessoas com mais acesso à informação.
O senhor afirma que o institucional também é necessário, mas nem todo movimento quer se institucionalizar.
Sempre há o risco de que os movimentos sociais sejam aparelhados pelas forças institucionalizadas dos partidos e dos governos, e muitos são. Como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que é dominado por um partido. Mas na internet fica mais difícil ser aparelhado, porque tem mais gente que opina livremente. Falta pensamento sobre esta matéria. Surge aí uma relação de responsabilidade, que é nova. Vou usar uma expressão que não existe, é a volta ao pessoalismo. Eu, como pessoa, estou de acordo ou não. Sou um eu conectado e consciente do conjunto. Não sou mais um eu no meu egoísmo que foi desenvolvido pelo individualismo capitalista. Há uma dimensão de solidariedade também aí. Na internet, as pessoas querem saber se vão ou não, se aceitam ou não. Elas participam diretamente. Você entra na rede ou sai dela. Não é permanente nem estável. E nem individualista no sentido antigo de defender apenas o próprio interesse. Eu agora quero opinar e não ser manipulado pelo partido, movimento ou organização.
Mas uma política mais arejada e horizontal pode ser atraente também aos corruptos.
Não há um meio de bani-los automaticamente. A corrupção sempre existiu na sociedade. Você não vai acabar com isso, então é preciso colocar gente corrupta no seu devido lugar. O que estamos vivendo no Brasil é um processo mais complicado em que a corrupção vira condição para governabilidade. Todo mundo sabe que o governo tem voto no Congresso se entregar um ministério para o partido tal e que este partido vai usar o ministério para obter recursos para se manter como partido e para as pessoas dele. Mudou a função da corrupção, passou a ser parte do jogo político. Esse tipo de corrupção não entra na rede, porque ela não tem como, ela não serve para isso. A política tradicional é muito mais apta que as redes a absorver os interesses de quem quer praticar essa corrupção sistêmica.
Uma pauta ainda pouco defendida entre os políticos é a da sustentabilidade. Em 2007, o senhor afirmou a Página22 que política e sustentabilidade não combinavam muito, pois a política pensa no aqui e agora, já sustentabilidade depende de trabalhos a longo prazo. O senhor mantém essa afirmação?
A afirmação anterior diz respeito à política tal como é feita no Brasil, que é imediatista. Mas quem tem visão de Estado não pode ser imediato, tem pensar no que vai acontecer no futuro. Eu acho que há quem possa conciliar política e sustentabilidade, não é o caminho comum entre os políticos, mas é uma necessidade.
O senhor acredita que a Rio+20 pode trazer novos caminhos?
É importante que haja esse espaço de discussão, pois atinge os tomadores de decisão. A posição do Brasil na Convenção de Estocolmo (1972) era “bendita poluição, nós queremos indústria”. E o Brasil mudou muito desde a Rio-92. Antes não existia consciência alguma. A Rio+20 vai ajudar se tudo for bem colocado e explicado. O povo é que não toma muito conhecimento disso.