Quando a tecnologia digital nos deixa burros, muito burros demais
Regina Scharf*
Para se tornar taxista em Londres, o candidato passa por uma prova duríssima. Ele precisa demonstrar que conhece todas as ruas e becos em um raio de 10 quilômetros do centro da capital britânica. Estamos falando de 25 mil vias públicas e 20 mil pontos de interesse. É um estudo que pode levar até quatro anos e, segundo pesquisa de neurologistas da University College London, faz com que esses motoristas tenham uma parte do seu cérebro, o hipocampo, hipertrofiada em relação ao comum dos mortais.
Mas o que acontece quando esse mesmo taxista adquire um veículo guiado por GPS? Ele simplesmente desliga seu arquivo mental e torna-se refém de uma máquina nem sempre confiável.
A revista The Economist ilustra esse risco com a seguinte história: uma das sobrinhas da princesa Diana decidiu ir a Londres para assistir a um clássico do futebol. Chamou um táxi para fazer a viagem de 300 quilômetros e pediu que ele fosse a Stamford Bridge, o famoso estádio onde Chelsea e Arsenal se enfrentariam. O motorista jogou o nome no GPS e, horas depois, descobriu-se do outro lado do país, numa cidade com o mesmo nome. A garota, claro, perdeu o jogo, e o motorista, a reputação.
Em um outro episódio mencionado pela revista, um motorista de caminhão saiu da Síria com destino a Gibraltar, no sul da Espanha, mas se desviou 2.500 quilômetros e acabou na costa inglesa devido à sua confiança cega no sistema de posicionamento remoto. Aparentemente nem a travessia do Canal da Mancha chamou sua atenção para o erro.
Claro que a possibilidade de estocar e acessar grandes volumes de informação, seja no GPS, na internet, seja em um banco de dados privado e confidencial, amplia nossa capacidade de tomada de decisão, reduz o tempo gasto com o processamento do conhecimento e, em muitos casos, aumenta a transparência e a democracia. Mas, como esses dois casos indicam, quando fazemos um uso acéfalo da tecnologia, corremos um risco sério de perder o chão caso esses sistemas falhem.
E os riscos de falhas são grandes, por dois motivos: primeiro, em decorrência da ação de hackers e cyberativistas; segundo, pelo fato de que os bancos de dados sofrem um processo constante de depreciação e perda de informação. isso exige a produção periódica de cópias de reserva – e nem todos têm a disciplina e a disposição para fazer isso.
A excessiva dependência de bancos de dados digitalizados pode pôr em risco, até mesmo, a sobrevivência de empresas e outras operações complexas. No começo de dezembro, o grupo de hackers Anonymous anunciou que tinha conseguido quebrar um escritório de relações públicas de Washington com longos anos de serviços prestados à gigante da biotecnologia Monsanto, alvo de uma de suas campanhas.
The Bivings Group encerrou suas atividades logo após um ataque virtual que comprometeu o seu website e espalhou informações sigilosas de seu banco de dados. Seus dirigentes abriram uma nova empresa com perfil similar, e apressaram-se a anunciar que a decisão não tinha nada a ver com a invasão de Anonymous. Mas sua versão não colou. Num outro episódio, em abril, a Barracuda Networks, uma empresa que desenvolve softwares de segurança, foi atacada quando desativou seu sistema de proteção a ataques para manutenção. A empresa continua firme, mas é certo que sua reputação levou um baque.
Os governos também estão cada vez mais dependentes de bancos de dados informatizados. meses atrás, diversos órgãos americanos anunciaram que pretendem reduzir dramaticamente o volume de papel processado. O Departamento do tesouro, por exemplo, deverá economizar US$ 524 milhões ao longo dos próximos cinco anos com a substituição dos cheques [1] para beneficiários por depósitos em suas contas bancárias, entre outras transações. o Instituto Nacional de Saúde vai reduzir o número de entrevistas para estabelecimento de benefícios devidos e ampliar as pesquisas pela web, o que deverá levar a uma redução de gastos de US$ 62 milhões até 2015.
[1] Hoje, a emissão de um cheque custa US$ 1 ao governo, dez vezes mais que o depósito eletrônico
Delegar conhecimento, processos e a tomada de decisão a máquinas com uma capacidade infinitamente maior do que a nossa é uma tentação confortável. Mas temos de ficar atentos à mitigação dos riscos associados. ou acabaremos do outro lado do mundo, com cara de cachorro caído de um caminhão de mudanças.
*Jornalista especializada em meio ambiente