Em meio ao caos econômico-financeiro, a economia criativa resiste. Bandeira da geração de riqueza por meio de negócios e atividades que valorizam questões sociais e culturais, ela se fortalece setorialmente, atraindo cada vez mais o interesse de investidores públicos e privados. Para John Howkins [1], especialista mundial em economia criativa e espécie de guru no assunto – convidado a palestrar no Seminário Internacional de Economia Criativa, Cultura e Negócios, em abril, em São Paulo – esse alargamento da visão econômica tradicional traz consigo o gene de um desenvolvimento com mais equilíbrio. “Eu acredito que na economia criativa é possível fazer um movimento por mais expressão, colaboração e consciência do outro.” Garantia de estabilidade ou sustentabilidade? Para Howkins, não se trata necessariamente de solução, mas de um bom caminho para chegar lá.
[1] John Howkins é um dos precursores do conceito da economia criativa no mundo. Professor da City University, em Londres, e da Shanghai School of Creativity, na China, é membro do Comitê das Nações Unidas em economia Criativa e atuou como consultor de governo para diversos países. Publicou livros como Four Global Scenarios on Information and Communication (1997) e The Creative economy (2001).
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Como a economia criativa pode ajudar um mundo em crise, tanto a econômico-financeira, com crescente pressão por reforma das bases predatórias do capitalismo, quanto a crise ambiental, uma vez que já usamos mais de um planeta e meio em termos de recursos naturais?
Essa é uma pergunta complexa, grande. Tudo está conectado, mas vou abordar dois aspectos da questão. A primeira coisa que temos a fazer é entender a natureza da crise e, além disso, estar atento para o papel que a criatividade e a inovação estão desenvolvendo dentro desse cenário. Digo isso porque a economia criativa cresceu dramaticamente nos últimos 20 anos e está oferecendo os produtos e serviços que as pessoas querem comprar. E muitos países, pessoas e empresas se endividaram justamente para financiar essas atividades. Esse endividamento é uma das razões para a crise e para a recessão que vemos atualmente, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Mas esta não é a principal razão da crise. A partir daí, temos de observar como os princípios da inovação e da criatividade podem nos ajudar a mover para um novo estágio de desenvolvimento econômico e social – uma nova forma de capitalismo, digamos assim. Acredito que podemos fazer isso de duas formas.
A primeira, concentrando-se em investimentos e atividades produtivas. É fundamental mover os recursos em nossa sociedade para aquelas atividades que geram investimento em produtividade para o futuro.
A segunda é olhar muito cuidadosamente para as características de trabalho das pessoas criativas. Trata-se, normalmente, de um trabalho em pequena escala, sustentável, com considerável nível de responsabilidade e com alto grau de engajamento, envolvimento e comprometimento. Parece-me que muitos padrões de trabalho em economia que vemos se desenvolver ao redor do mundo criativo são bons modelos para o futuro.
Mas como a indústria criativa está respondendo à crise?
Ainda estaremos em dificuldades por mais alguns anos. Minha sensação é de que a recuperação e o crescimento vão acontecer em velocidades diferentes em diferentes setores. O setor de design foi duramente atingido, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. Acredito que esse setor ainda vai continuar sofrendo queda.
Os setores de anúncios em jornais e revistas, que já apresentavam baixa, continuarão caindo. Mas isso faz parte, porque seus negócios estão migrando dos produtos físicos para serviços on-line. Anúncios em televisão e rádio já estão em processo de recuperação e é esperado um forte crescimento do setor para 2012.
A indústria da publicação, as editoras de livros estão sofrendo com a competição do e-book e encontram margens muito estreitas para atuação. Essas empresas estão enfrentando muitos e diversos problemas. Mas isso não tem nada a ver com a recessão, isso está ligado ao sucesso da mídia on-line, seja ela texto, música, filme, seja televisão. Nesse caso, observa-se um crescimento cada vez mais rápido que se vem tornando – também de forma cada vez mais veloz – rentável. O setor de artesanato, profundamente dependente do turismo, já está apresentando melhorias.
No mais, é difícil dizer. As consequências da recessão, o tempo e a natureza da recuperação acontecerão de forma diferente de setor para setor.
A época nos mostra que as bases financeiras do sistema capitalista estão frágeis. A quebradeira geral levou milhares de pessoas às ruas, em diversas partes do globo, indignadas. A pressão social é forte e há uma demanda clara por novas regras para o sistema financeiro e seus atores. De certa forma, estamos todos falando e debatendo sobre valores éticos e morais, o que é bom. Então, pensando nessa questão dos valores, qual é a proposta da economia criativa? Quais valores ela apresenta?
A economia criativa, tanto em termos de produção, que é o “fazer”, como em termos de consumo, que é o “usar”, depende de que as pessoas usem a imaginação, expressem-se e normalmente trabalhem em grupo. A economia criativa move-se, por si mesma, ao encontro de uma sociedade mais justa.
Os princípios da economia criativa são de que todo ser humano nasceu criativo e que ele tem o direito desenvolver livremente esse potencial. Então, você observa imediatamente que esse é um tipo diferente de sociedade, seja ela baseada em agricultura, seja em manufaturados. É diferente de uma estrutura que aprisiona o ser humano, onde ele não é autorizado a desenvolver sua personalidade, sua individualidade.
Eu acredito que, na economia criativa, é possível fazer um movimento por mais expressão, colaboração e mais consciência do outro. Isso, contudo, não é garantia de estabilidade ou sustentabilidade, mas é um caminho.
Se a ideia da economia criativa está ligada ao capital cognitivo, então estamos falando de conhecimento.
Sim.
E isso me faz pensar na questão da propriedade intelectual, que é o oposto do compartilhamento e colaboração. É como “prender” uma ideia ou se apropriar de um conhecimento, que, por essência, é livre. Há um sério debate acontecendo sobre essa questão. Qual a sua opinião sobre isso?
O copyright está em crise. E essa crise se dá largamente devido ao tempo que ele dura e à complexidade das regras, as quais a internet e a mídia on-line começaram a destruir. Mas nós precisamos de algum método por meio do qual as pessoas que necessitam de um grande volume orçamentário para seu empreendimento, seja um filme, televisão, seja música, possam ter expectativas razoáveis de que eles terão um retorno justo por seu investimento. Nós precisamos de algum sistema e no momento o que temos é o copyright. E os princípios do copyright são bons. Mas ao longo dos anos a ideia foi capturada por empresas que não entendem a necessidade do equilíbrio entre propriedade intelectual e acesso público ao conhecimento.
Precisamos fundamentalmente repensar, não muito os princípios, mas a forma pela qual isso está sendo implementado. Por exemplo, o Creative Commons. Ele é uma licença simples do copyright que me permite publicar minhas coisas on-line e que, ao mesmo tempo, as pessoas interessadas copiem e compartilhem o conteúdo. Essas pessoas não precisam negociar comigo, não precisam me pedir. E essa é uma forma maravilhosa e inventiva de resolver um dos problemas que temos com o copyright. Precisamos de mais soluções e de soluções mais inventivas como essa, porque, como eu disse, o copyright é muito duro, pesado, dura muito tempo. Embora ele sirva para um monte de coisa que fazemos, também serve para um monte de coisas que não queremos mais fazer. É preciso reformular isso, e urgentemente, a fim de preservar o acesso das pessoas à cultura.
Quais os erros mais comuns que podem ser observados no desenvolvimento da economia criativa?
Não sei se diria erro, mas tenho um exemplo para te dar. A fórmula do governo britânico para a economia criativa, que ainda está forte pelo mundo, em minha visão, é muito restritiva. Ela dá muita atenção para uma pequena seleção de grandes indústrias criativas, que não inclui um monte de gente. Muita gente mesmo, e gente que tem sido muito criativa em suas próprias vidas, empresas e organizações.
Em outras palavras, o governo britânico presta muita atenção nas indústrias criativas e pouca atenção nos indivíduos. E meu trabalho é analisar e pesquisar a capacidade do indivíduo em sua vida pessoal, social e profissional de expressar suas próprias ideias e criatividade. Mas reforço que não se trata de um erro, é uma questão de ênfase, de foco. O meu olhar está no indivíduo, não importa onde ele ou ela estejam.
O brasil e os brasileiros são frequentemente associados à criatividade. em sua opinião, quais são os recursos naturais da criatividade? Seria a diversidade? E como fazer bom uso desse potencial?
A diversidade é muito importante, sem dúvida. Mas toda vez que vou ao Brasil sou capturado pelo estilo visual das cidades, a arquitetura, os lugares públicos, o senso de cor e música que vocês têm. Não vou falar de futebol, mas, acredite, os brasileiros também têm uma habilidade extraordinária para fazer um design sustentável. Existem milhares de brasileiros que trabalham com material simples e local e produzem coisas belíssimas e inventivas. E vou reforçar a questão da música. Vocês têm uma tradição musical muito forte e músicas lindas da época da Tropicália. A todo tempo vocês estão criando estilos e provocações musicais. Vocês vivem da música, isso é fantástico.
Agora, como fazer bom uso disso? Bem, vocês terão grandes oportunidades para explorar e mostrar todo esse potencial criativo em dois eventos nos próximos dez anos, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
Este ano, você sabe, teremos em Londres os Jogos Olímpicos. Muitas pessoas, incluindo eu mesmo, comentam sobre a questão dos altos gastos em uma competição atlética de curta duração. Mas o que a cidade está fazendo é colocar a ênfase do evento na cultura, em nossa cultura olímpica.
Sei que teremos uma ótima festa e que a festa continuará por um longo tempo, e será muito mais longa que a duração dos Jogos. E é possível que, daqui a 10 ou 20 anos, os Jogos sejam mais conhecidos pelos eventos culturais que acontecem durante as Olimpíadas.
Cada vez mais as pessoas se mostram interessadas na cultura do lugar, não apenas nos Jogos. Assim, minha mensagem para vocês no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia e em todas as outras cidades é que apliquem algum dinheiro para ter um festival cultural extraordinário. O mundo inteiro volta os olhos para esse momento, então, trata-se de uma oportunidade de mostrar que tipo de país vocês querem ser.
Para além dos holofotes da Copa e das olimpíadas, nós ocupamos posição de destaque no cenário internacional da economia criativa?
Vocês estão indo bem e, conforme a economia cresce, a fatia da economia criativa também tende a crescer. Reforço que vocês têm indivíduos extremamente criativos nas mais diversas áreas. Claro que há dificuldades, especialmente pela competição internacional, e, em alguns setores específicos, pela concorrência da mídia on-line. Mas existe, em minha opinião, um subaproveitamento dessa capacidade criativa e inventiva e são muito os fatores para isso, mas, no geral, vocês são muito conhecidos e respeitados pela habilidade criativa.
E quando foi, na sua vida, que você começou a olhar a economia com olhos criativos?
Eu acredito que sempre tive a percepção da criatividade, mas foi na juventude que fiquei realmente interessado na mecânica, no funcionamento da atividade. No começo, eu estava muito envolvido com o conceito da internet e com processos computacionais, mas sempre achava que faltava algo. Faltava ali algum ativo criativo individual, algo que todos nós temos. Comecei, então, a pesquisar essa demanda criativa, essa resposta inventiva do conhecimento. Minha intenção era saber como as pessoas respondem ao conhecimento, não sobre o conhecimento em si mesmo. Eu também queria saber mais sobre essa dinâmica de resposta ao conhecimento – entender como as pessoas se expressam diante desse know-how. A partir daí, essa multiplicidade faz parte da minha vida.