Banco Palmas transforma favela cearense em modelo de desenvolvimento local e exporta a ideia para dezenas de outras cidades. É um exemplo de como as finanças podem servir para azeitar os processos de governança local
Inconformado com a situação de pobreza extrema das centenas de famílias do Conjunto Palmeira, na periferia sul de Fortaleza, entre as quais a sua própria, uma conclusão inspirou Joaquim de Melo Neto Segundo há 14 anos: “A solução não virá de fora”. Na época, ele formou parcerias, conseguiu captar R$ 2 mil em doações e criou um banco comunitário – o Banco Palmas –, instrumento financeiro solidário, de natureza associativa, que em poucos anos mudaria radicalmente a qualidade de vida no local.
O que era uma favela em 1998 hoje é um bairro urbanizado com 32 mil habitantes, cinco escolas, um posto de saúde, transporte coletivo e um banco – o Banco Palmas –, do qual os moradores são donos e cuja carteira já soma R$ 13 milhões. Em 14 anos foram gerados 1,8 mil postos de trabalho no bairro; anualmente são concedidos créditos no total de R$ 400 mil para os empreendimentos locais; e os moradores podem pagar suas compras no comércio local usando a moeda complementar “Palma”, ou simplesmente mandando um SMS de seu próprio celular para o comerciante.
“O Banco Palmas é um ponto fora da curva”, avalia Felipe Bannitz, da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), da FGV, que presta assessoria a comunidades que montam bancos comunitários – o País já possui 80 deles em operação e cerca de 20 projetos em fase de implementação, praticamente todos com metodologia transferida pelo Banco Palmas. O trabalho da incubadora é tentar neutralizar os pontos fracos da área de gestão dos novos bancos, que ainda não têm saúde financeira. O principal deles é a viabilidade econômica: “Bancos comunitários não devem depender de subsídios públicos, do contrário ficam vulneráveis”, afirma.
FERRAMENTAS
As diversas ferramentas financeiras usadas normalmente em projetos de desenvolvimento local estão presentes dentro de um banco comunitário. Portanto, quando se entende o mecanismo de funcionamento dos bancos, compreendem-se também as características de cada uma dessas ferramentas, com destaque para o microcrédito, a moeda complementar (também chamada de moeda social) e o correspondente bancário.
Os bancos comunitários são fruto de uma matriz endógena de desenvolvimento, aquela que se volta para o crescimento do mercado local (interno). Isso não significa permanecer fechado para o mercado externo (bairros ou municípios vizinhos), mas apenas aproveitar, antes de tudo, a potencialidade interna. Acompanhando os passos de Joaquim Segundo, é preciso inicialmente preparar um diagnóstico da economia do bairro, ou do município, que abrigará um banco comunitário.
Grosso modo, existe sempre uma movimentação econômica em qualquer bairro ou favela, seja por meio dos salários, do Bolsa Família, do comércio local, seja até mesmo do tráfico de drogas. O problema, portanto, não está na entrada do dinheiro, mas, sim, na sua saída. O dinheiro entra, mas não circula internamente. Segundo Bannitz, “esse dinheiro se dilui no que eu chamo de ‘mar da concentração’, formado pelas grandes empresas e pelos grandes centros de consumo”. A missão de um banco comunitário é, portanto, estancar parcialmente essa vazão, a fim de provocar o aquecimento econômico local.
O diagnóstico, então, deve identificar duas características: a produção local, efetiva ou potencial, e o perfil de consumo da comunidade, apontando, sobretudo, a demanda reprimida, em outras palavras, quais produtos os moradores estão buscando fora por não encontrarem no local. Afinal, não adianta fomentar uma produção se não tem para quem escoá-la, assim como não adianta saber o que as pessoas consomem se não há produção local. “A partir desses dois mapeamentos, o banco está pronto para pôr a sua gangorra financeira para funcionar”, explica Bannitz.
A gangorra integra as duas estratégias, uma em cada ponta. De um lado, a que fomenta o consumo local, de outro, a que alavanca os negócios locais. Com isso, ao mesmo tempo que a entrada de dinheiro na comunidade aumenta, a saída diminui, criando o que nas empresas é chamado de fluxo de caixa.
A MOEDA COMPLEMENTAR
Para estimular o consumo local, os bancos comunitários introduzem as moedas complementares, que só podem circular dentro da comunidade à qual pertence o banco. O mecanismo parte do princípio de que, quanto mais o dinheiro circula dentro da comunidade, mais riqueza local é gerada. Quando o Banco Palmas lançou a sua moeda, a “palma”, houve um estranhamento por parte do Banco Central. Logo em seguida, contudo, entendeu não se tratar de dinheiro paralelo, mas de uma solução criativa de combate à pobreza e de desenvolvimento local.
Entretanto, o BC impôs algumas condições para autorizar as operações: para cada unidade de moeda social, o banco comunitário tem de reter uma unidade em real; a moeda deve ser paritária ao real; deve ter livre aceitação; o banco deve oferecer um serviço de câmbio automático; e a circulação fica restrita ao bairro.
Mas o que levaria um morador a optar pela moeda social se 1 palma é igual a 1 real? O banco comunitário oferece alguns benefícios para tornar a moeda mais atraente que o real. Clientes que buscam crédito para consumo em palma – limitado em 100 palmas – não pagam juros. “Emprestando dinheiro em palma, o banco tem a garantia de que o tomador vai consumir aqueles recursos dentro do Conjunto Palmeira”, explica Joaquim. O comerciante local também dá descontos para quem paga com palma, pois sabe que, assim, ele “fideliza” o consumidor.
Na gangorra, ao lado do microcrédito, aparece outro importante instrumento dentro do contexto dos bancos comunitários, o correspondente bancário [1] , empresa que atua como agente intermediário entre os bancos e seus clientes finais.
[1] Mecanismo financeiro de inclusão para o atendimento dos clientes em estabelecimentos comerciais – farmácia, supermercado, lotérica, bancos comunitários, correios – em locais onde não exista assistência bancária
ESTÍMULO À PRODUÇÃO
Com um lado da gangorra – o do consumo – ocupado pela moeda social, o outro – o da produção – mantém uma cadeira cativa para o microcrédito, que consiste em empréstimos de até R$ 1 mil, destinados a alavancar a produção, o comércio e os serviços. Os microcréditos são uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo que estimulam a oferta de bens e serviços no local, viabilizam o autofinanciamento da gestão dos bancos comunitários, uma vez que nos empréstimos para as atividades produtivas cobram-se taxas de juros a partir de 0,5% ao mês. Os tomadores de microcrédito não precisam apresentar fiador, nível de renda, patrimônio e outras normas comuns em bancos tradicionais.
Como correspondente bancário, o Banco Palmas faz 30 mil operações por mês para o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Isso é bom para os moradores, que não gastam com longos deslocamentos para pagar contas e receber benefícios; é bom para a produção local, porque, ao permanecer no bairro, o consumidor não é estimulado a consumir fora do território; e, finalmente, é bom para o banco, que incorpora à sua carteira um percentual sobre essas operações.
Outro produto financeiro é o crowdfunding [2], para o qual qualquer pessoa simpatizante ao projeto pode contribuir. Essa ferramenta tem sido muito utilizada em todo o mundo para financiar projetos culturais, educativos ou comunitários. No Brasil, o crowdfunding já está começando a interagir com bancos comunitários ainda sem solidez financeira, caso do Banco União Sampaio, do Jardim Maria Sampaio, na Zona Sul de São Paulo (mais em reportagem “Em plena São Paulo S.A.“). Quando a meta estipulada pela operadora do crowdfunding não é atingida, o dinheiro é devolvido aos doadores.
[2] Sistema de arrecadação de capital, por meio de financiamento colaborativo, para iniciativas de interesse coletivo por meio da agregação de múltiplas fontes, em geral pessoas físicas interessadas em tal iniciativa
“A partir dessa integração de ações financeiras proporcionada por bancos comunitários, que projetam arranjos produtivos, redes setoriais e outros elementos que compõem estratégias para melhorar a viabilidade econômica de novos negócios, já se torna possível falar em desenvolvimento econômico local”, afirma Bannitz. O mesmo diz Joaquim Segundo, com outras palavras: “O banco comunitário permite o desenvolvimento local porque forma uma rede de ‘prossumidores’, onde todos são produtores e consumidores uns dos outros, e todos são os atores sociais das mudanças”.