Há razões para o otimismo, desde que saibamos responder: o quanto basta? e como fazer para que todos sejam aquinhoados de acordo com os princípios de justiça social?
A segunda Cúpula do Rio de Janeiro terminou sem que tenhamos clareza sobre como continuarão a ser enfrentados os dois maiores desafios do momento:
- a insuficiência de medidas para frear o aquecimento global capazes de nos pôr ao abrigo de suas consequências deletérias, para não dizer fatais, sobre as condições de vida humana no planeta Terra;
- a persistência de desigualdades sociais abissais entre povos e dentro deles em oposição flagrante ao princípio de igualdade entre todos os humanos tantas vezes afirmado nos documentos fundadores da ONU.
É por isso que devemos nos mobilizar desde já para continuar o nosso combate contra esses dois desafios, colocando-os no centro de debate político planetário, lembrando que eles devem ser resolvidos simultaneamente ao querermos evitar uma catástrofe ambiental com graves consequências sociais e/ou conflitos cada vez mais virulentos entre as maiorias condenadas a uma luta acirrada pela mera sobrevivência e as minorias privilegiadas pelo atual modelo social.
O prestígio, para não dizer o futuro, da Organização das Nações Unidas vai depender da sua capacidade de se reorganizar para conduzir vitoriosamente este duplo combate.
O acaso às vezes ajuda. Estamos celebrando este ano o tricentenário do nascimento de Jean-Jacques Rousseau (mais em Análise da edição 61, de março). É uma ocasião para pensarmos, sob a égide das Nações Unidas, na organização de um processo político de formulação de um megacontrato social para o século XXI em nível planetário, alicerçado sobre contratos sociais negociados democraticamente em cada país-membro das Nações Unidas entre os principais partícipes do processo de planejamento – o Estado desenvolvimentista, os empreendedores, os trabalhadores e a sociedade civil organizada.
À ONU caberia nesse processo uma tríplice função:
a) assistir os países menos desenvolvidos, tanto em nível financeiro quanto em nível substantivo, por meio da assistência técnica, ajudando-os a mobilizar a mão de obra subutilizada e os recursos naturais latentes para projetos de desenvolvimento capazes de gerar em grande número oportunidades de trabalho decente, e contribuir dessa maneira ao bem-estar das populações;
b) coordenar no âmbito regional, valendo-se para tanto das comissões regionais da ONU, os planos nacionais de desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável, de maneira a eliminar os embates potenciais entre eles e a lograr sempre que possível sinergias positivas.
A bem dizer, em países grandes como o Brasil, devemos prever uma primeira coordenação sub-regional – a Amazônia, o Nordeste, o Sudeste – antes de construir um plano nacional de desenvolvimento includente e sustentável;
c) por último, confiar ao Pnud a organização do processo de articulação e consolidação do conjunto dos planos regionais em um plano mundial, objetivo que, à primeira vista, pode parecer excessivamente ambicioso, mas que não destoa dos ideais sobre os quais o sistema das Nações Unidas foi fundado. Não esqueçamos que os planejadores de hoje dispõem para tanto de instrumentos técnicos incomparavelmente mais eficientes em relação àqueles que, menos de um século atrás, estavam à mão dos pioneiros do planejamento.
Como já tive ocasião de escrever em Página22 (ver Análise na edição 64, de junho), o planejamento saiu da moda com a implosão da União Soviética. Devemos, no entanto, recolocá-lo com urgência no centro das políticas nacionais de desenvolvimento, se não por outras razões, para evitar o curto-prazismo tão ao gosto dos mercados que pretensamente sabem se autorregular, e para reduzir também os altos custos sociais da economia de livre concorrência acirrada, que joga impiedosamente à beira da estrada os produtores menos eficientes, como se a falta de eficiência fosse uma razão suficiente para se acabar na sarjeta.
O desafeto pelo planejamento, em parte provocado por ligações espúrias com regimes autoritários, contrasta com os progressos recentes da informática que abriu novos horizontes aos planejadores.
Em meados do século, seremos 9 bilhões. Sejamos otimistas, há razões para pensar que os recursos naturais existentes na nave espacial Terra, combinados com os conhecimentos produzidos pela sua tripulação, serão suficientes para assegurar a todos uma existência materialmente confortável, conquanto saibam encontrar respostas (nem sempre evidentes) às duas questões seguintes: o quanto basta? e como fazer para que todos sejam aquinhoados de acordo com os princípios de justiça social?
Com o progresso técnico, o tempo de trabalho necessário para a produção dos bens materiais suficientes para o bem- estar generalizado vai diminuir, abrindo a perspectiva de aproveitar uma parcela cada vez maior do tempo hábil das sociedades para as atividades imateriais – a cultura e as artes. A este respeito, o céu é o limite.
*Ecossocioeconomista da École des Hautes Études En Sciences Sociales
Leia mais:
Edição especial para a Rio+20 “O mundo de olho no Rio. O Rio de olho no mundo”
Edição pós-Rio+20 “Quando a multidão liderar, os líderes seguirão”
[:en]Há razões para o otimismo, desde que saibamos responder: o quanto basta? e como fazer para que todos sejam aquinhoados de acordo com os princípios de justiça social?
A segunda Cúpula do Rio de Janeiro terminou sem que tenhamos clareza sobre como continuarão a ser enfrentados os dois maiores desafios do momento:
- a insuficiência de medidas para frear o aquecimento global capazes de nos pôr ao abrigo de suas consequências deletérias, para não dizer fatais, sobre as condições de vida humana no planeta Terra;
- a persistência de desigualdades sociais abissais entre povos e dentro deles em oposição flagrante ao princípio de igualdade entre todos os humanos tantas vezes afirmado nos documentos fundadores da ONU.
É por isso que devemos nos mobilizar desde já para continuar o nosso combate contra esses dois desafios, colocando-os no centro de debate político planetário, lembrando que eles devem ser resolvidos simultaneamente ao querermos evitar uma catástrofe ambiental com graves consequências sociais e/ou conflitos cada vez mais virulentos entre as maiorias condenadas a uma luta acirrada pela mera sobrevivência e as minorias privilegiadas pelo atual modelo social.
O prestígio, para não dizer o futuro, da Organização das Nações Unidas vai depender da sua capacidade de se reorganizar para conduzir vitoriosamente este duplo combate.
O acaso às vezes ajuda. Estamos celebrando este ano o tricentenário do nascimento de Jean-Jacques Rousseau (mais em Análise da edição 61, de março). É uma ocasião para pensarmos, sob a égide das Nações Unidas, na organização de um processo político de formulação de um megacontrato social para o século XXI em nível planetário, alicerçado sobre contratos sociais negociados democraticamente em cada país-membro das Nações Unidas entre os principais partícipes do processo de planejamento – o Estado desenvolvimentista, os empreendedores, os trabalhadores e a sociedade civil organizada.
À ONU caberia nesse processo uma tríplice função:
a) assistir os países menos desenvolvidos, tanto em nível financeiro quanto em nível substantivo, por meio da assistência técnica, ajudando-os a mobilizar a mão de obra subutilizada e os recursos naturais latentes para projetos de desenvolvimento capazes de gerar em grande número oportunidades de trabalho decente, e contribuir dessa maneira ao bem-estar das populações;
b) coordenar no âmbito regional, valendo-se para tanto das comissões regionais da ONU, os planos nacionais de desenvolvimento socialmente includente e ambientalmente sustentável, de maneira a eliminar os embates potenciais entre eles e a lograr sempre que possível sinergias positivas.
A bem dizer, em países grandes como o Brasil, devemos prever uma primeira coordenação sub-regional – a Amazônia, o Nordeste, o Sudeste – antes de construir um plano nacional de desenvolvimento includente e sustentável;
c) por último, confiar ao Pnud a organização do processo de articulação e consolidação do conjunto dos planos regionais em um plano mundial, objetivo que, à primeira vista, pode parecer excessivamente ambicioso, mas que não destoa dos ideais sobre os quais o sistema das Nações Unidas foi fundado. Não esqueçamos que os planejadores de hoje dispõem para tanto de instrumentos técnicos incomparavelmente mais eficientes em relação àqueles que, menos de um século atrás, estavam à mão dos pioneiros do planejamento.
Como já tive ocasião de escrever em Página22 (ver Análise na edição 64, de junho), o planejamento saiu da moda com a implosão da União Soviética. Devemos, no entanto, recolocá-lo com urgência no centro das políticas nacionais de desenvolvimento, se não por outras razões, para evitar o curto-prazismo tão ao gosto dos mercados que pretensamente sabem se autorregular, e para reduzir também os altos custos sociais da economia de livre concorrência acirrada, que joga impiedosamente à beira da estrada os produtores menos eficientes, como se a falta de eficiência fosse uma razão suficiente para se acabar na sarjeta.
O desafeto pelo planejamento, em parte provocado por ligações espúrias com regimes autoritários, contrasta com os progressos recentes da informática que abriu novos horizontes aos planejadores.
Em meados do século, seremos 9 bilhões. Sejamos otimistas, há razões para pensar que os recursos naturais existentes na nave espacial Terra, combinados com os conhecimentos produzidos pela sua tripulação, serão suficientes para assegurar a todos uma existência materialmente confortável, conquanto saibam encontrar respostas (nem sempre evidentes) às duas questões seguintes: o quanto basta? e como fazer para que todos sejam aquinhoados de acordo com os princípios de justiça social?
Com o progresso técnico, o tempo de trabalho necessário para a produção dos bens materiais suficientes para o bem- estar generalizado vai diminuir, abrindo a perspectiva de aproveitar uma parcela cada vez maior do tempo hábil das sociedades para as atividades imateriais – a cultura e as artes. A este respeito, o céu é o limite.
*Ecossocioeconomista da École des Hautes Études En Sciences Sociales
Leia mais:
Edição especial para a Rio+20 “O mundo de olho no Rio. O Rio de olho no mundo”
Edição pós-Rio+20 “Quando a multidão liderar, os líderes seguirão”