A Lei de Licitações
Públicas não terá como garantir o grau de transparência que a sociedade espera de eventos como o das Olimpíadas. Nessas modalidades, o Brasil já começou perdendo
Durante os Jogos olímpicos, a cidade-sede recebe tanta atenção que se torna uma espécie de capital do planeta. Os olhares de bilhões de pessoas não se voltam apenas para as competições com os melhores atletas do mundo. Mas se prendem à beleza, à cultura, à estrutura e até mesmo à história da cidade – e do país – que acolhe as olimpíadas e as Para-olimpíadas, quando tudo precisa funcionar perfeitamente para seus moradores e visitantes.
E chega a vez de o Rio de Janeiro tornar-se o centro do mundo por algumas semanas. A exuberância da linda festa de abertura dos Jogos olímpicos de Londres levou autoridades brasileiras a prometer superar os britânicos com a conhecida criatividade e a arte das escolas de samba. Esse concurso de abertura mais bonita, porém, está longe de ser o mais importante.
A imprensa internacional já começa a olhar com lupa a preparação dos Jogos no Brasil. Para o jornal americano The New York Times, “as olimpíadas no Rio parecem dispostas a aumentar a desigualdade em uma cidade já conhecida por essa característica”. A reportagem mostrou despejos ilegais de moradores do Morro da Providência, a primeira favela da cidade, uma ocupação iniciada em 1897 por veteranos da sangrenta Guerra de Canudos e por escravos libertos.
Já a revista inglesa The Economist disse que a cidade fotogênica, caótica e com trânsito sufocante do Rio de Janeiro tem apenas quatro anos para se preparar e se igualar a uma Londres feliz e bem organizada nos Jogos olímpicos.
Esse olhar – necessariamente crítico – vai muito além do que nossas autoridades públicas estão acostumadas a receber. Se não parecem se importar com o olhar que vem de dentro, dos moradores, principais interessados, já demonstram preocupação com o que vem de fora.
O prefeito do Rio, Eduardo Paes, afirmou que os Jogos deixarão como legado, além de obras, uma “mudança na imagem da cidade”. Acontece que, neste caso, não haverá como fazer as coisas “para inglês ver”.
POR UM RIO INCLUSIVO
A cidade não pode queixar-se de falta de dinheiro ou de tempo para se preparar. Venceu a disputa pela sede em 2009. E terá outro enorme aporte, com a realização da Copa do Mundo (2014), tendo o Maracanã como palco principal. Os investimentos bilionários que o Rio receberá precisam resultar em uma cidade mais acolhedora, inclusiva, que preserve seus ativos ambientais e sua história, e na qual as construções e os serviços funcionem adequadamente, para além das demandas dos eventos.
As olimpíadas não podem servir apenas como oportunidade de grandes negócios, em uma visão meramente empresarial do espaço público. Pelo contrário, é preciso ouvir os moradores afetados, incluí-los, criando com eles – e não em nome deles –, espaços de pertencimento no processo de revitalização da cidade.
O Rio não pode perder a oportunidade de integrar grandes porções da cidade que têm sido historicamente ignoradas. Mas, de acordo com a urbanista Raquel Rolnik, o prefeito não mostrou nenhum entusiasmo com o Plano Popular da Vila Autódromo, entregue pelos moradores para evitar a remoção de mais de 500 famílias da comunidade para a construção do Parque Olímpico do Rio.
Considerando aspectos ambientais, técnicos e financeiros, sem qualquer prejuízo para os Jogos, o plano, feito em parceria com duas universidades públicas, é mais barato que o do governo: apenas R$ 13 milhões, contra R$ 38 milhões.
O triste exemplo do Pan de 2007, que, em lugar de deixar um monumento vivo das esperanças alcançadas, deixou escombros com as expectativas frustradas. Como legado aos cariocas, elefantes brancos, equipamentos públicos subutilizados, processos de improbidade pelo mau uso do dinheiro público: o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou desvio de recursos em obras superfaturadas. Prevista para R$ 400 milhões, a conta dos Jogos Pan-Americanos chegou a R$ 4 bilhões.
O Parque Aquático Maria Lenk (60 milhões) e o Velódromo municipal (14,1 milhões) estão abandonados. O primeiro será parcialmente aproveitado nas Olimpíadas, e o segundo, demolido. Segundo o TCU, o atraso no início das obras é um dos principais motivos da explosão do orçamento.
Londres estimou gastos de R$ 13,3 bilhões, e a festa custou R$ 29,5 bilhões. Por aqui, a conta já começou em R$ 23 bilhões. As obras para a Copa do Mundo também começaram depois do previsto e ninguém revela quanto vai custar. A consultoria legislativa do Senado prevê em R$ 63 bilhões os gastos do governo federal. Em maio, o TCU previu que três das 12 cidades-sede podem ter obras de mobilidade urbana canceladas por falta de tempo para conclusão. Isso apesar das condições excepcionalíssimas criadas para viabilizá-las, como o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC).
Fragilizada por mudanças recentes para agilizar as obras, a Lei de Licitações Públicas não terá como garantir o grau de transparência e lisura que a sociedade espera. Nessas modalidades, o Brasil já começou perdendo. Consola saber que no aspecto tipicamente olímpico, teremos aqui, em suas configurações atléticas, a reunião do melhor de nós e das outras partes do mundo.
*Marina Silva é presidente do Instituto Marina Silva e conselheira do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente.
Leia mais
Entrevista de Raquel Rolnik a Página22 sobre megaeventos esportivos e o legado urbanístico e socioeconômico para as cidades
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A Lei de Licitações Públicas não terá como garantir o grau de transparência que a sociedade espera de eventos como o das Olimpíadas. Nessas modalidades, o Brasil já começou perdendo
Durante os Jogos olímpicos, a cidade-sede recebe tanta atenção que se torna uma espécie de capital do planeta. Os olhares de bilhões de pessoas não se voltam apenas para as competições com os melhores atletas do mundo. Mas se prendem à beleza, à cultura, à estrutura e até mesmo à história da cidade – e do país – que acolhe as olimpíadas e as Para-olimpíadas, quando tudo precisa funcionar perfeitamente para seus moradores e visitantes.
E chega a vez de o Rio de Janeiro tornar-se o centro do mundo por algumas semanas. A exuberância da linda festa de abertura dos Jogos olímpicos de Londres levou autoridades brasileiras a prometer superar os britânicos com a conhecida criatividade e a arte das escolas de samba. Esse concurso de abertura mais bonita, porém, está longe de ser o mais importante.
A imprensa internacional já começa a olhar com lupa a preparação dos Jogos no Brasil. Para o jornal americano The New York Times, “as olimpíadas no Rio parecem dispostas a aumentar a desigualdade em uma cidade já conhecida por essa característica”. A reportagem mostrou despejos ilegais de moradores do Morro da Providência, a primeira favela da cidade, uma ocupação iniciada em 1897 por veteranos da sangrenta Guerra de Canudos e por escravos libertos.
Já a revista inglesa The Economist disse que a cidade fotogênica, caótica e com trânsito sufocante do Rio de Janeiro tem apenas quatro anos para se preparar e se igualar a uma Londres feliz e bem organizada nos Jogos olímpicos.
Esse olhar – necessariamente crítico – vai muito além do que nossas autoridades públicas estão acostumadas a receber. Se não parecem se importar com o olhar que vem de dentro, dos moradores, principais interessados, já demonstram preocupação com o que vem de fora.
O prefeito do Rio, Eduardo Paes, afirmou que os Jogos deixarão como legado, além de obras, uma “mudança na imagem da cidade”. Acontece que, neste caso, não haverá como fazer as coisas “para inglês ver”.
POR UM RIO INCLUSIVO
A cidade não pode queixar-se de falta de dinheiro ou de tempo para se preparar. Venceu a disputa pela sede em 2009. E terá outro enorme aporte, com a realização da Copa do Mundo (2014), tendo o Maracanã como palco principal. Os investimentos bilionários que o Rio receberá precisam resultar em uma cidade mais acolhedora, inclusiva, que preserve seus ativos ambientais e sua história, e na qual as construções e os serviços funcionem adequadamente, para além das demandas dos eventos.
As olimpíadas não podem servir apenas como oportunidade de grandes negócios, em uma visão meramente empresarial do espaço público. Pelo contrário, é preciso ouvir os moradores afetados, incluí-los, criando com eles – e não em nome deles –, espaços de pertencimento no processo de revitalização da cidade.
O Rio não pode perder a oportunidade de integrar grandes porções da cidade que têm sido historicamente ignoradas. Mas, de acordo com a urbanista Raquel Rolnik, o prefeito não mostrou nenhum entusiasmo com o Plano Popular da Vila Autódromo, entregue pelos moradores para evitar a remoção de mais de 500 famílias da comunidade para a construção do Parque Olímpico do Rio.
Considerando aspectos ambientais, técnicos e financeiros, sem qualquer prejuízo para os Jogos, o plano, feito em parceria com duas universidades públicas, é mais barato que o do governo: apenas R$ 13 milhões, contra R$ 38 milhões.
O triste exemplo do Pan de 2007, que, em lugar de deixar um monumento vivo das esperanças alcançadas, deixou escombros com as expectativas frustradas. Como legado aos cariocas, elefantes brancos, equipamentos públicos subutilizados, processos de improbidade pelo mau uso do dinheiro público: o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou desvio de recursos em obras superfaturadas. Prevista para R$ 400 milhões, a conta dos Jogos Pan-Americanos chegou a R$ 4 bilhões.
O Parque Aquático Maria Lenk (60 milhões) e o Velódromo municipal (14,1 milhões) estão abandonados. O primeiro será parcialmente aproveitado nas Olimpíadas, e o segundo, demolido. Segundo o TCU, o atraso no início das obras é um dos principais motivos da explosão do orçamento.
Londres estimou gastos de R$ 13,3 bilhões, e a festa custou R$ 29,5 bilhões. Por aqui, a conta já começou em R$ 23 bilhões. As obras para a Copa do Mundo também começaram depois do previsto e ninguém revela quanto vai custar. A consultoria legislativa do Senado prevê em R$ 63 bilhões os gastos do governo federal. Em maio, o TCU previu que três das 12 cidades-sede podem ter obras de mobilidade urbana canceladas por falta de tempo para conclusão. Isso apesar das condições excepcionalíssimas criadas para viabilizá-las, como o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC).
Fragilizada por mudanças recentes para agilizar as obras, a Lei de Licitações Públicas não terá como garantir o grau de transparência e lisura que a sociedade espera. Nessas modalidades, o Brasil já começou perdendo. Consola saber que no aspecto tipicamente olímpico, teremos aqui, em suas configurações atléticas, a reunião do melhor de nós e das outras partes do mundo.
*Marina Silva é presidente do Instituto Marina Silva e conselheira do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente.
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