O país que promove inclusão social deveria cultivar novos significados de riqueza, a começar pelo reconhecimento do valor do seu patrimônio hídrico e do tratamento correto de esgoto e resíduos
O Brasil, que felizmente tomou decisões históricas no caminho da inclusão social, poderia surpreender novamente ao promover a reinterpretação do significado de riqueza e, também, ao olhar e reconhecer o valor inestimável de seu patrimônio hídrico.
No entanto, 81 cidades consideradas de grande porte despejam diariamente até 5,9 bilhões de litros de esgoto, sem tratamento algum, em seus corpos d’água, contaminando permanentemente solos, rios, mananciais e praias e causando impactos negativos diretos sobre a saúde da população.
Tal comportamento nos coloca em nono lugar em um ranking mundial que o Instituto Trata Brasil intitula “da vergonha”: em pleno século XXI somos 13 milhões de brasileiros sem vaso sanitário. Sabemos, contudo, que cada R$ 1 investido em saneamento gera uma economia pública de R$ 4 na área da saúde. (dados do estudo Progress on Sanitation and Drinking Water – OMS/Unicef, 2010. Acesse em tratabrasil.org.br)
A falta de transparência por parte das instâncias responsáveis evidencia que a situação nacional não cheira nada bem. Programas de despoluição com orçamentos bilionários ocorreram sem possibilidade de controle social e tiveram resultados vergonhosos, como os da Bahia e do Rio de Janeiro. Em São Paulo, o Projeto Tietê prossegue em sua Fase 3, com promessas da Sabesp de que não sentiremos mais o mau cheiro do nosso “esgotão” a céu aberto a partir de 2015. É pouco tempo para essa promessa se concretizar, se pensarmos no desafio de lidar com milhões de pessoas vivendo em situação precária, passíveis ou não de conexão à rede de tratamento.
Qualidade de vida se refere a limites e responsabilidades. Mas limites são imensos tabus no discurso político: por que haveria interesse em falar de limites quando se pode acenar com potenciais, ainda que falaciosos?
No amadurecimento individual é conhecidamente saudável perceber nossos limites. Idem na dimensão planetária, cujos limites da biosfera [1] já foram extrapolados por atividades antrópicas. Ainda assim, nosso desinteresse é tal – como na famosa experiência do sapo que não salta para fora de uma panela que se aquece lentamente – que essa resistência virou tema de pesquisa em universidades.
[1] Os limites ultrapassados são três: o do ciclo do nitrogênio, o da perda da biodiversidade e o das mudanças climáticas
Por meio de projetos de pesquisa em Psicologia do Clima e de Comunicação sobre Mudança Climática, muitos acadêmicos agora tentam desvendar as barreiras mentais, que não existem apenas pela oposição ideológica de interesses políticos e econômicos, mas também em nossa dificuldade ao lidar com problemas abstratos e não imediatos. Seria aversão a limites?
Passei a maior parte da minha vida na cidade de São Paulo e apenas há alguns dias descobri, ao ler as excelentes publicações do ISA De olho nos mananciais (disponíveis em socioambiental.org) que a Região Metropolitana se encontra em situação de grave estresse hídrico. Usamos quatro vezes o volume de água disponível localmente e temos de buscar o recurso em regiões cada vez mais distantes. Qual será o limite até começarmos a falar sobre este assunto?
O mundo segue despreocupado, voltado para o crescimento do PIB, observando a democracia refém do financiamento privado, e relacionando o bem-estar à abundância de bens industriais. Mas estamos especialmente equivocados, em minha opinião, em razão da noção de conforto baseado no desperdício. A ainda possível criatividade contábil omite externalidades ambientais, criando a ilusão sedutora de que não há grandes problemas em passarmos a vida anestesiados e indiferentes, ou coniventes e viciados a essa cultura instituída e arraigada no desperdício.
Por isso, ressignificar qualidade de vida se refere também à responsabilidade perante a nossa desmesurada geração de resíduos. Na capital de São Paulo geramos diariamente 18 mil toneladas de resíduos, 60% dos quais compostáveis. Para dar “sumiço” a tudo isso, despendemos R$ 2 milhões por dia.
Tenho o privilégio de participar de um grupo formado por ONGs, militantes da sociedade civil e membros de diversas esferas do governo municipal e estadual que se uniu para sugerir e demandar soluções inteligentes para o tratamento dos resíduos na cidade de São Paulo.
A experiência de realizar, em agosto passado, o seminário “Compostagem na Cidade de São Paulo: Gestão Adequada dos Resíduos Orgânicos” [2] lembrava precisamente das palavras de Ricardo Abramovay em seu livro Muito Além da Economia Verde, apontando para a participação cada vez maior do cidadão como agente da vida econômica da cidade. (mais informações sobre o seminário em moradadafloresta.org.br)
Os desafios são imensos, mas não temos outra escolha, se não encará-los com flexibilidade. Como flores de lótus, nossa consciência da biosfera brota, no lodo do esgoto, lutando pela universalização do saneamento e pela preservação da vida por meio da compostagem.
*Gisela Moreau é historiadora, coordenadora da Sala Crisantempo e conselheira do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)