Entrevista com Luiz Fuganti, criador do projeto da Escola Nômade que leva cinema para comunidades de São Paulo como forma de incentivar a plateia a reflexões e sensações
Cinema que faz ver e pensar, cinema como fábrica de visões. O binômio cinema e educação tem permitido descobertas e experiências potentes em todo o Brasil, livres e longe do senso comum descritivo que considerava a sétima arte um complemento das teorias e conceitos predeterminados nas salas de aula.
Uma iniciativa que vale a pena ser conhecida é o Cinema Nômade, projeto da Escola Nômade, criada pelo filósofo Luiz Fuganti. O projeto tem levado filmes importantes da cinematografia recente a comunidades e equipamentos públicos de São Paulo como forma de incentivar a plateia a reflexões e sensações. “Mais importante do que achar um filme bom ou ruim é perceber as modificações que ele causa em nossos valores”, diz o criador e curador do projeto.
Desde setembro, o Cinema Nômade atingiu um público de mais de 1.500 pessoas, incluindo adolescentes, jovens, adultos e crianças. Entre os filmes exibidos estão o documentário Estamira, que leva aos adultos discussões sobre loucura, exclusão e diferença, bem como Príncipes e Princesas e Kiriku e a Feiticeira, a partir dos quais as crianças são estimuladas a falar sobre o Bem e o Mal, a potência criadora e o cuidado consigo.
Luiz Fuganti (foto) conversou com Página22, confira abaixo:
Quando começou o projeto? Haverá continuidade?
Com este modelo estamos trabalhando há quatro meses e seguimos até março/abril. Há a expectativa de entrada de outros patrocínios. É uma prática que a gente quer manter de modo permanente. A ideia é que o Cinema Nômade ultrapasse o evento e crie condições, em cada comunidade, para que outros eventos aconteçam nas escolas e as pessoas possam modificar-se com o tempo.
Qual o critério para a escolha dos filmes?
É o seu potencial forte, crítico e criativo. Que aponte uma saída, uma possibilidade de criação de resposta. Não dá pra usar os mesmos filmes com as diferentes plateias. Usamos o documentário sobre Raul Seixas, por exemplo, para jovens de 13 a 15 anos, e a resposta é fantástica.
Escolhemos filmes que deslocam e põem em xeque nossos valores. Usamos filmes de Glauber Rocha, que é um cineasta mal digerido até por intelectuais. Porque assistir a um Glauber não é um processo cerebral, mas, sim, um processo afetivo, no campo das sensações. E as sensações estão cheias de razão e sentido. A intenção é criar condições para que as pessoas fiquem mais receptivas à obra, mobilizando os modos de viver. Os filmes são obras raras, porque investem em sentidos de valores não usuais e têm uma espécie de abertura de sensibilidade.
Quais suas impressões e observações nesse período?
Ao assistir a Estamira, a gente já espera vários preconceitos contra ela, é o mais usual que apareça. [A personagem do documentário é uma senhora aparentemente louca que divaga sobre diversos temas em um lixão]. Ficamos surpresos quando alguém pergunta qual é a intenção nossa ao exibir o filme, uma vez que a personagem critica toda a sociedade. Estamira tem a virtude de atingir muito profundamente nosso desejo, sem que seja uma questão consciente.
E, nas exibições para crianças, somos surpreendidos quando elas respondem maravilhosamente a questões sobre o Bem e o Mal.
Por que crianças e adultos de comunidades carentes? A classe média não estaria carente de reflexões e estímulos ainda mais do que as pessoas que vivem de forma mais precária?
Acabamos de sair de um evento numa escola em que o debate foi quase um desastre, porque os professores não deram conta dos alunos reunidos. Eu sinto que os educadores, muitas vezes, são os que mais precisam de reflexões e estímulos dessa natureza, porque estão mais adoecidos, acabam maltratando as crianças, em virtude do mal que sofreram e que reproduzem.
Deve haver um trabalho com essas pessoas que têm a responsabilidade de informar e formar. Obviamente, nas classes médias e altas isso, às vezes, se dá com mais urgência, porque têm mais poder de comando – e de estrago também. É comum na sociedade evitarem-se as intensidades.
Todos devem ser sempre moderados, amenizados, civilizados, de modo que não ameacem ninguém. As intensidades são vistas como más. E as crianças, sejam pobres, sejam ricas, já estão destituídas das suas intensidades, separadas do que elas podem criar, dos elementos inéditos que podem gerar, das outras maneiras de existir.