Na Amazônia existe uma árvore, o apuizeiro, que é germinada a partir de uma pequena semente depositada pelas aves. Geralmente brota no tronco das palmeiras, espécies que os pássaros mais gostam de frequentar. O apuizeiro, então, lança suas raízes que vão descendo ao solo. Assim que o encontram, ganham força e começam a engrossar vigorosamente. A ponto de envolver totalmente a palmeira que lhe deu abrigo e sufocá-la, até matar.
Essa verdade botânica, contada por um dos participantes do encontro do Movimento Nova Política, em São Paulo, anteontem, serviu de alegoria para aquilo que seus integrantes dizem rejeitar (ou temer): que o partido nascido no seio do movimento se agigante no momento em que se institucionalizar no solo perigoso da política-como-é-feita-hoje e sufoque o berço que lhe serviu de origem. Assim como já aconteceu em outros casos na História.
A samaúma, sim, deve ser a metáfora guia a ser seguida. Majestosa árvore, também amazônica, deixa crescer em seus galhos todo tipo de planta, atraindo enorme variedade de passarinhos, fungos e insetos. Por isso, é considerada uma floresta em si, tamanha a riqueza biodiversa que atrai e alimenta. Uma árvore que é floresta, ou seja, a parte pelo todo, em plena metonímia.
A utopia do Movimento Nova Política é que, embora compelido a lançar um partido – para ganhar força institucional e poder decisório no cenário político –, seja capaz de abrigar todas as espécies que possam prosperar. Ainda que essas espécies sejam bem diferentes entre si, mas que tenham, num tronco em comum, a mesma causa central.
Por isso, os integrantes do Movimento dizem que o partido a ser criado deve estar aberto à participação das mais diferentes legendas e demais movimentos – desde que partilhem dos mesmos ideais, que são os da sustentabilidade e do enfrentamento das crises globais. Como tais crises são amplas, irrestritas e monumentais, será necessária a contribuição de muita gente, das mais variadas origens, ideias e propostas.
Mais de 300 pessoas disputavam lugar na Sala Crisantempo, espaço na Vila Madalena subdimensionado para receber o encontro daquela envergadura, e muitos que chegavam iam embora por não conseguir ao menos entrar na antesala. Dois anos atrás, o mesmo local também foi pequeno para ouvir Marina Silva e outros nomes desligarem-se do PV e apresentarem a proposta do Movimento Nova Política. Desta vez, nem mesmo um telão do lado de fora foi providenciado, mas o encontro podia ser acompanhado on-line. Mais um capítulo se desenrolará em 16 de fevereiro, em novo encontro, em Brasília.
No esquema de “aquário”, pessoas da plateia vindas de outras cidades revezavam-se em cadeiras para falar, cada uma por 3 minutos sobre riscos, desafios e desejos relacionados à criação do partido. “O partido não deve levar ‘partido’ no nome, pois o que queremos é representar o todo”. Alguém sugeriu o nome Brasil Vivo, pois congrega uma nação em torno da ideia da sustentação da vida. Outro pediu que haja menção à democracia direta, em referência à ampla partipação dos “sonháticos” nas redes sociais e ao uso digital como ferramenta de participação direta do cidadão – uma vez que a Constituição de 1988 reservou aos partidos o monopólio de representação política, antes que a internet aflorasse comercialmente em 1993.
“Os partidos são a instituição mais autoritária que existe. Quem pensa algo diferente é acusado de infidelidade partidária”, reclamou um integrante do PV. “A política não pode mais ser o lugar onde os ruins querem entrar e os bons querem sair”, protestou-se. “Nem mesmo a Revolução Francesa soube lidar com a ideia de fraternidade, solidariedade. e compaixão. É chegada a hora de fazer isso.”
A vontade de inventar algo novo e buscar vias alternativas mostrou-se patente. “Eu comprei um sapato novo hoje. Sabem por quê?”, perguntou uma senhora, resistindo bravamente até o final do encontro com os calcanhares machucados. “Porque o sapato novo incomoda, assim como as ideias novas, mas é assim, insistindo no desconforto que se consegue um sapato confortável no futuro!”, arrancando aplausos.
Até que ao final Marina falou. Foi a última de todos ali a se pronunciar. “Queremos um partido político para incomodar”.
Ricardo Young – eleito vereador pelo PPS, posicionado ao lado de Marina juntamente com nomes como Maria Alice Setúbal, Guilherme Leal, João Paulo Capobianco, Pedro Ivo de Souza Batista, Walter Feldman (PSDB-SP) e Eduardo Giannetti da Fonseca – afirmou que o novo partido não concorrerá em 2014, “mas que as eleições de 2014 não serão as mesmas depois da criação desse partido”.
“É um partido a serviço do movimento e não o contrário”, reforçaram Marina e Capobianco, em mais uma referência à samaúma. Marina logo tratou de desfazer ilusões: “A sociedade diversa não cabe dentro de um partido, portanto este não será um partido perfeito. Queremos ajudar a forjar uma nova cultura política, que deve nos corrigir se falharmos em nossas virtudes. Eu me orgulho de não ter dito uma única vez nas redes sociais ‘vamos criar um partido’, foram vocês que decidiram (aos milhares)’”.
Young sugeriu que se gravasse um documentário intitulado “Em Ato Contínuo” (em referência o documentário “Entreatos”, sobre os bastidores da eleição do Lula), registrando a proposta que nasceu no movimentos dos indignados, dos ambientalistas e hoje se galvaniza entre empresários e tantos outros atores da sociedade. E ambiciona provocar uma revolução democrática, como também foi dito ali.
Marina disse se orgulhar de ter participado do PT, mas que o partido deixou de buscar sua resignificação frente aos desafios do século XXI. Hoje, para ela, a luta na ordem do dia é transformar a relação das pessoas com a natureza e com elas mesmas. Nenhum partido atual tem isso entre seus maiores objetivos.
E assim recorreu-se a mais uma imagem metafórica naquela noite. “É hora de fazermos uma dispersão agregadora e uma agregação dispersiva. Podem dizer que lá vem a Marina com suas maluquices. Mas é só lembrar que as brasas, para dispersarem seu calor pelo ambiente, precisam estar juntas”, explicou ela.
Agora, depois de colher o número de assinaturas necessário, é ver como tudo isso entra em prática, sem deixar se contaminar pelo solo movediço e perigoso da política-as-usual e pela natureza nem sempre límpida da alma humana. Que geralmente se inclina mais para o apuizeiro que para a samaúma.
(Publicado orginalmente no Terra Magazine)