Em janeiro de 2012, a agência de notícias BBC registrou a curiosa história de um homem chinês que contratou matadores para assassinar seu filho no jogo virtual em que ele estava supostamente viciado. Não foi o jovem, mas o seu avatar que foi perseguido e morto em um ambiente virtual por dois outros usuários.
Casos como este compõem o complexo quadro dos efeitos gerados pelo uso excessivo de tecnologias e jogos eletrônicos. E as respostas que, pouco a pouco, são dadas a fenômenos eles, já envolvem psiquiatras, neurologistas e pesquisadores de todo o mundo.
As experiências de intervenção clínica ainda não são tão comuns, mas já existem centros de tratamento para esse tipo de dependência em países como China, Estados Unidos e Finlândia. No Brasil, o Ambulatório de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo foi um dos primeiros a dar atenção a esses casos, já em 2006. Em 2010, a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro passou a integrar o time dos pioneiros criando um ambulatório para acompanhar dependentes de jogos eletrônicos.
A entrada tecnologias e videogames no hall dos vícios, ao lado de drogas e jogos de azar, é o objeto de estudo do antropólogo Guilherme Pinho Meneses, da Universidade de São Paulo. Dedicado a escrever uma dissertação de mestrado sobre o tema, ele está mapeando as formas, ainda controversas, de lidar com os vícios associados ao uso de tecnologia.
Meneses já catalogou cerca de uma centena de notícias em língua portuguesa sobre o tema da dependência em videogames e está organizando um website para apresentar os resultados de sua pesquisa. Ele observa especialmente os espaços destinados aos comentários do público: “Ali os jogadores muitas vezes reprovam a opinião dos especialistas sobre o tema, entram em debate com pessoas que se preocupam com a situação de outro jogador, tais como pais, cônjuges ou colegas de pessoas ditas ‘viciadas’, conformando uma verdadeira arena de disputa de argumentos, conceitos e valores”.
“O que videogames e o crack teriam em comum?”, é a pergunta que Meneses se faz, ao observar como têm sido diagnosticadas e tratadas diferentes tipos de adicção. Membro da rede latinoamericana da organização Games For Change, o pesquisador analisa que um mesmo esquema geral, baseado na dependência de drogas químicas, tem sido utilizado para explicar quase todo tipo de vício – incluindo os casos ligados à internet e videogames, com leves adaptações.
“Uma resolução da Associação Americana de Psiquiatria afirma que duas horas de atividades frente à tela – incluindo, televisão, computador, videogame, celular, tablets etc –, seria o máximo tolerável, depois disso já seria considerado uso excessivo”, conta Meneses, que vê problemas em classificar toda a população que trabalha diante de telas como viciada. “Hoje há uma forte discussão forte em torno da inclusão das dependências digitais no novo documento da associação, o DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o que deve aumentar a medicalização na forma de intervenção sobre os usuários. Disso eu não sou a favor, pois a questão é muito mais do que simplesmente médica. A proposta inclusive foi rejeitada na primeira tentativa”, critica.
Preocupado em entender como esse tipo de dependência tem sido tratado, seja nas relações entre pais e filhos, seja naquelas mediadas pelas ciências médicas, Meneses está tentando identificar os pressupostos que dão sustentação ao vício em eletrônicos e internet. As ideias de que a comunicação face a face seria mais “humana” que a comunicação digital ou de que o mundo dos jogos seria um mundo falso, em oposição ao mundo verdadeiro das relações sociais, fazem parte dessas justificativas.
Para ele, o que precisa ser investigado são as atividades desenvolvidas especificamente pelas pessoas enquanto usam computadores, smartphones e videogames, já que são as possibilidades de uso são muito amplas. “O computador é, antes de tudo, um mediador. Os excessos com certeza são resultado das relações e não da tecnologia em si”. O ponto de partida do antropólogo é a relação entre homens e máquinas: “Creio que precisamos trabalhar com uma visão alargada do que entendemos por tecnologia. Não só computadores e videogames, mas o nosso corpo e nossos olhos são tecnologias de apreensão e intervenção no mundo”.
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