Um mar na varanda, um rio no quintal
De férias no Carnaval, a titular desta página cultural teve seu primeiro encontro com a cultura caiçara. A escolha dessa fuga apropriada para um corpo e mente cansados foi Pouso da Cajaíba, parte da Reserva da Joatinga, ao sul de Paraty. A comunidade tradicional caiçara, com seus cerca de 270 moradores, ainda preserva um estilo de vida simples, mas está passando por transformações e dúvidas sobre seu futuro – o que não é mera coincidência com a situação das metrópoles. As poucas horas de energia elétrica vêm das placas para captação solar, mas o desembarque dos turistas no pequeno Pouso já não é exclusivo dos barqueiros locais.
Localizada dentro de uma unidade de conservação ambiental, Cajaíba sobreviveu desde os primórdios da pesca e da agricultura. Esta última, entretanto, está dando seu lugar ao turismo, que nos meses de férias e nos feriados descobriu o refúgio com fôlego e, muitas vezes, sem o cuidado necessário. E se estabelece o impasse: alugar a casa para dezenas de turistas e movimentar o comércio e serviços locais tem contribuído para a permanência das famílias caiçaras. Até aí se pode achar um equilíbrio. Mas como e até quando resistir ao capital que chega oferecendo fortunas para comprar a casa, a terra, a paisagem e transformar tudo em resorts, shoppings e outras cópias da vida urbana para um público que não se permite sair de si mesmo?
TICOTE
Francisco Xavier Sobrinho, o Ticote, nasceu na Cajaíba, tataravô português e uma tataravó índia que viveu até os 125 anos, segundo ele. Mas, como qualquer adolescente e/ou ser humano que se preze, Ticote deu suas perambuladas pelo “lado de cá” antes de começar a admirar profundamente o trabalho do pai com a construção de pau a pique e sapê, a agricultura e a pesca. Deslumbrado com os relógios e o dinheiro com que os irmãos viajados apareciam em casa, pôs o pé na estrada aos 16 anos.
Em uma transposição geográfica, é como dizer a um cubano do interior da Ilha que come o que planta, estuda os filhos de graça e mora a poucos metros de uma praia paradisíaca e reservada que ele não se preocupe. O “lado de cá” do sistema não anda melhor. É preciso sair e ver pra crer. Ticote rodou Guarujá, Paraty, Rio de Janeiro, Cabo Frio, Santos, morou nas favelas e achou estranhíssimo não conhecer a história do vizinho que lhe dá bom-dia ao sair para o trabalho e nem estabelecer vínculos depois de alguns meses.
Na volta a Cajaíba, ele se perguntou: “O que eu tava fazendo lá? Não era o dinheiro que comprava o que meu pai produzia, mas o valor estava nas suas mãos”.
Há sete anos, quando já era presidente da Associação de Moradores do Pouso da Cajaíba, Ticote conheceu o grupo de estudantes da UFRJ do projeto “Raízes e Frutos” com experiências em permacultura que coincidiam com as práticas primitivas da sua família e dos moradores mais antigos da comunidade. Transformou sua casa na sede do Ipeca – Instituto de Permacultura Caiçara, uma casa-escola com oficinas e vivências de bioconstrução, telhado verde, banheiro seco, compostagem, cozinha feita de pau a pique, horta e uma biblioteca multitemas em construção.
Contabiliza com orgulho duas grandes vitórias: articulação do movimento e manifesto durante a Flip de 2009 contra a instalação de um condomínio na região. O documento final foi lido por Chico Buarque ao término de sua apresentação na festa literária de Paraty. Outro ponto pra Cajaíba foi a ação na Justiça e abaixo-assinado on-line contra a retirada das duas famílias que hoje habitam a Praia Grande para a construção de estrada por grupos econômicos.
Faltam coisas: as obras do posto de saúde estão tomadas de vegetação depois das mudanças de governo e a escola só vai até a 4a série. Além das parcerias com os universitários, quem sustenta as iniciativas de Ticote, por enquanto, é o Vencedor, o barco que leva e traz turistas de Paraty ao Pouso e até as praias da reserva. Para saber mais e encher os olhos, acesse permaculturacaicara.org e busque no YouTube “teaser Pouso da Cajaíba”.