Por meio da renúncia fiscal, o setor público abre mão de arrecadar impostos para incentivar as empresas a investir no desenvolvimento de projetos das mais diversas áreas. Nada mais justo que a gestão desses recursos seja rigorosamente monitorada. Em meio a bons exemplos, sobram relatos de distorção e má aplicação do dinheiro
Aline Tavella é uma jovem bibliotecária de muitas convicções. Preocupada com as políticas de incentivo à leitura e desenvolvimento de acervos, ela resolveu perseguir um problema novo, mas de alto impacto social: descobrir qual é a efetividade das leis de incentivo fiscal para as áreas de educação e cultura.
Seu objeto de pesquisa foi o Projeto Pró-Biblioteca, que consiste na distribuição de kits de livros a salas de leitura e bibliotecas escolares em todo o Brasil e tem o apoio da Lei Rouanet. Iniciativa da Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, sediada em Porto Alegre, o Pró-Biblioteca existe desde 1998 e permite que empresas doem até 4% do Imposto de Renda devido para beneficiar bibliotecas escolares em qualquer região do Brasil, à sua escolha. Como efeito do mecenato, cada biblioteca apoiada deve receber um kit com 200 exemplares de livros de autores nacionais e internacionais importantes para os currículos dos ensinos Fundamental e Médio.
Mas o que teria tudo para ser um projeto de sucesso e alcance nacional, com apoio de grandes empresas, tem, segundo Aline, produzido distorções. O que a bibliotecária formada pela USP descobriu ao desenvolver sua monografia de conclusão de curso foi um cenário de livros escolhidos sem a participação das comunidades a que se destinam nem qualquer tipo de acompanhamento local pela proponente. Analisando o impacto do Pró-Biblioteca em três escolas das cidades de Apiaí, no Vale do Ribeira (SP), e Campo Grande (MS), Aline chegou à conclusão de que o projeto funciona mais para promover o marketing cultural das empresas apoiadoras do que para transformar de fato as realidades escolares.
As críticas e questões levantadas por essa pesquisa não são novidade. Da centralização de verbas nos grandes centros à substituição dos papéis que deveriam ser desempenhados pelo próprio Estado, mecanismos como o da Lei Rouanet e da Lei de Incentivo ao Esporte (LIE) ainda deixam muitas dúvidas quanto a sua efetividade. E a movimentação nesse campo não para de acontecer: tanto para ampliar as áreas de aplicação de mecanismos de renúncia como para dirimir distorções.
Nos últimos 20 anos, desde a aprovação da Lei Rouanet, em 1991, as mudanças foram muitas nesse cenário. De 1993 a 2013, segundo dados do próprio Ministério da Cultura, o valor total das iniciativas apoiadas por meio de renúncia cresceu a olhos vistos [1]. Em 2007, as cifras de projetos apoiados passaram à casa do bilhão e, até 2012, somaram-se mais de R$ 13 bilhões investidos em projetos culturais. Embora os números apontem claros avanços no investimento de recursos, não chegam a revelar as muitas contradições que subjazem a esse modelo. E as iniciativas, seguindo parâmetros parecidos, estendem-se a outras áreas de incentivo.
[1] Os dados comparativos por ano podem ser acessados no Sistema SalicNet, do MinC.
LÓGICA REPLICADA
No Esporte, assim como na Cultura, os valores são altos e se concentram nos grandes centros econômicos, avalia José Cruz, jornalista especializado na cobertura política e econômica da área esportiva. Segundo ele, dados do Ministério do Esporte de 2010 indicam que foram captados, por meio da LIE, R$ 255,3 milhões entre 2007 e 2009, dos quais R$ 108,2 milhões só no estado de São Paulo. O pódio dos estados que mais captaram no período é ocupado por São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que concentraram mais de 85% dos recursos, enquanto oito estados nada captaram no período. São eles: Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Pará e Roraima
Editada por medida provisória em 2006 e fruto de uma demanda que data da década de 1990, a LIE nunca passou por uma avaliação de sua aplicação, nota Cruz, que vê o Ministério do Esporte omisso ao fiscalizar os projetos que aprova. O jornalista enumera casos que evidenciam a ausência de princípios em favor do desenvolvimento do esporte na aplicação da LIE.
“Recentemente, houve uma denúncia de que a Confederação de Tênis pagou com notas fiscais frias serviços para um torneio internacional em São Paulo. Há casos de patrocínios por meio da LIE para um piloto americano da Fórmula Nascar. Outro projeto que chamou atenção foi um torneio de golfe que pagou US$ 500 mil de prêmio”, relata. E os absurdos parecem não ter limite, tendo em vista que, em 2009, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou projetos contemplados que nem mesmo tinham como objeto a prática esportiva.
Para Cruz, a origem dessas distorções encontra-se na ausência de uma política nacional para o esporte e na parca (ou nula) participação do Estado na governança desses recursos. “Repete-se na LIE o que ocorre com as demais fontes de recursos públicos para o esporte: a altíssima concentração de dinheiro em projetos de alto rendimento, justamente o que dá retorno de mídia, em detrimento de projetos para a base, para a iniciação, ou para o desporto escolar”, critica Cruz.
REFORMAS À VISTA
Em maio de 2012, aconteceu em São Paulo o I Seminário Procultura, apoiado pelo site Cultura e Mercado, com a finalidade de analisar um projeto de lei que, se aprovado e promulgado pela presidente da República, revogará a Lei Rouanet e muitos de seus problemas. O seminário, realizado pela Rede Cemec – Negócios Criativos e pelo site Cultura e Mercado, sob coordenação de Leonardo Brant, debateu a fundo o projeto de lei que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura), em fase de tramitação na Câmara. (mais neste blog)
Na ocasião, o PL n. 6.722/2010, cuja relatoria é do deputado Pedro Eugênio (PT-PE), logrou ser aprovado por unanimidade pelos participantes – representantes da sociedade civil e também do Ministério da Cultura. O Procultura deve determinar novos critérios para a escolha de projetos e proponente e alterar os percentuais de renúncia permitidos por lei às empresas – que passam dos atuais 4% para 6%.
Outro importante aporte trazido pelo Procultura é a proposta de destinação obrigatória de pelo menos 20% dos recursos da renúncia fiscal ao Fundo Nacional de Cultura (FNC), mecanismo que pode ajudar a melhorar a governança na aplicação desses recursos. Atualmente, eles são aplicados diretamente pelas empresas em propostas aprovadas pelo Ministério da Cultura – o que favorece ações de marketing cultural. O Procultura prevê ainda que no mínimo 10% do orçamento do Fundo Nacional de Cultura (FNC) sejam aplicados regionalmente e que um percentual de 30% seja destinado a fundos estaduais e municipais, como medida de descentralização.
A lógica de incentivar projetos por meio de doações a fundos já é praticada no País e tem a vantagem de assegurar que os valores aplicados sejam geridos e administrados como recursos públicos, obedecendo aos princípios que regem o orçamento público (legalidade, impessoalidade e moralidade). Também é uma maneira de nortear sua aplicação consoante prioridades estabelecidas pelas políticas públicas e por meio de editais acessíveis ao público.
É o que acontece no Fundo da Infância e da Adolescência (FIA) – previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 – e no Fundo Nacional do Idoso (FNI) – criado pelo Estatuto do Idoso, de 2010. Ambos são gerenciados por conselhos diretores em todo o País e replicados nas três esferas federativas (municipal, estadual e nacional). Tanto nas doações ao FIA quanto ao FNI, as empresas devem obedecer ao teto de 1% para abatimento no imposto, podendo – caso doarem a ambos os fundos – chegar a 2% de dedução. Se quiser doar a vários fundos, o empresário pode obter isoladamente até 1% de dedução no imposto por meio do FIA, do FNI e da Lei do Esporte, e até 4% investindo na área cultural – um total de até 7% de abatimento. O teto de 4% para a cultura soma os investimentos via Lei Rouanet, Lei do Audiovisual e Funcine.
Há de se atentar para o fato de que promover os fundos não necessariamente garante que o mecanismo de renúncia seja incorruptível. Um estudo do promotor de Justiça Murillo José Digiácomo, dá atenção à prática de “doações casadas”, em que os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA), que gerem os FIAs, atuam definindo previamente quais entidades devem receber os recursos abatidos por meio de doações aos fundos. Segundo o estudo, a prática se popularizou com a proibição, na atual legislação fiscal, de doações diretas a entidades ditas filantrópicas.
Um exemplo de sucesso no uso de fundos alimentados por renúncia fiscal para a área cultural é o Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre (Fumproarte), que financia, há mais de 18 anos, até 80% do custo total de projetos artísticos na cidade. O fundo já foi duas vezes finalista do Prêmio Cultura Viva do MinC, justamente na categoria Gestão Pública.
Para o advogado Fábio de Sá Cesnik, autor do Guia do Incentivo Cultural – que já está em sua 3a edição –, não se pode cair na tentação de apenas criticar os modelos de incentivo fiscal existentes no País e suas formas de gestão. É preciso dar atenção ao que essas políticas têm legado ao setor cultural. Cesnik lembra que as experiências positivas e de gestão exemplar de recursos são inúmeras, entre elas a do Instituto Baccarelli, que forma jovens músicos na comunidade de Heliópolis, na Zona Sul de São Paulo, e o Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga, no interior do Ceará (mais na reportagem “Além da Imaginação”, publicada na edição 41).
“Há vários exemplos que têm estimulado o desenvolvimento regional no Brasil. As mudanças que estamos tendo na Rouanet – que precisam ocorrer também na lei do esporte –, sem dúvida nenhuma serão saudáveis para chegarmos a um cenário mais próximo do que vemos como vitorioso.” Em 25 de maio, novamente em São Paulo, será realizada a segunda edição do Seminário Procultura. A expectativa é a de que a sociedade civil como um todo consiga aprofundar o debate sobre a nova proposta de incentivo a projetos culturais, que, por ora, aguarda apenas o aval do Ministério da Fazenda para ser votado no Congresso.
IR Ecológico: regulamentação em aberto
Desde 2005 está em discussão no Congresso o Imposto de Renda Ecológico. Proposto pelo Senado Federal, o projeto é apoiado pela Ação pelo IR Ecológico, que congrega diversas organizações ambientalistas – como o WWF, a Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Socioambiental. “Fizemos uma grande mobilização aqui em Brasília”, conta Mario Mantovani, da SOS Mata Atlântica. O ambientalista destaca que a proposta do IR Ecológico (IR-e), pronta para ser votada no plenário da Câmara, busca justamente se desvencilhar dos vícios das áreas cultural e esportiva.
O Projeto de Lei n. 5.974/2005, apresentado em acordo com as entidades que compõem o Grupo de Trabalho pelo IR-e e o Ministério do Meio Ambiente, já foi aprovado em todas as comissões da Câmara dos Deputados – mesmo com a resistência, conta Mantovani, do setor cultural, receoso da concorrência com uma nova área pelos recursos da renúncia fiscal.
Entre as iniciativas que poderão ser financiadas pelo IR-e estão preservação de rios, restauração florestal, recuperação de áreas degradadas e até o apoio a Unidades de Conservação. Para Mantovani, talvez este último seja o principal papel do IR-e. Ele lembra que a própria SOS Mata Atlântica tem desenvolvido projetos com o objetivo de aportar recursos para UCs, com forte adesão do empresariado. O que se quer garantir com a aprovação do PL é que esse tipo de iniciativa seja amparado por políticas públicas – voltadas para Unidades de Conservação menos conhecidas e visitadas.
A proposta prevê a aprovação dos projetos pelo Ministério do Meio Ambiente, à luz das prioridades e normas do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). O IR-e deve permitir às empresas deduzir até 4% do imposto e, do total arrecadado, 80% deve ser doado necessariamente ao FNMA ou a outros fundos ambientais públicos.
Está no cerne da proposta a ideia de ampliar e consolidar a rede de apoio ao meio ambiente na sociedade civil, já que, na opinião de Mantovani, os incentivos fiscais podem ajudar a aproximar empresas e cidadãos de áreas protegidas. Um manifesto em favor da aprovação do IR-e foi organizado pelo grupo de entidades que o apoiam, e pode ser assinado on-line.
[:en]Por meio da renúncia fiscal, o setor público abre mão de arrecadar impostos para incentivar as empresas a investir no desenvolvimento de projetos das mais diversas áreas. Nada mais justo que a gestão desses recursos seja rigorosamente monitorada. Em meio a bons exemplos, sobram relatos de distorção e má aplicação do dinheiro
Aline Tavella é uma jovem bibliotecária de muitas convicções. Preocupada com as políticas de incentivo à leitura e desenvolvimento de acervos, ela resolveu perseguir um problema novo, mas de alto impacto social: descobrir qual é a efetividade das leis de incentivo fiscal para as áreas de educação e cultura.
Seu objeto de pesquisa foi o Projeto Pró-Biblioteca, que consiste na distribuição de kits de livros a salas de leitura e bibliotecas escolares em todo o Brasil e tem o apoio da Lei Rouanet. Iniciativa da Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, sediada em Porto Alegre, o Pró-Biblioteca existe desde 1998 e permite que empresas doem até 4% do Imposto de Renda devido para beneficiar bibliotecas escolares em qualquer região do Brasil, à sua escolha. Como efeito do mecenato, cada biblioteca apoiada deve receber um kit com 200 exemplares de livros de autores nacionais e internacionais importantes para os currículos dos ensinos Fundamental e Médio.
Mas o que teria tudo para ser um projeto de sucesso e alcance nacional, com apoio de grandes empresas, tem, segundo Aline, produzido distorções. O que a bibliotecária formada pela USP descobriu ao desenvolver sua monografia de conclusão de curso foi um cenário de livros escolhidos sem a participação das comunidades a que se destinam nem qualquer tipo de acompanhamento local pela proponente. Analisando o impacto do Pró-Biblioteca em três escolas das cidades de Apiaí, no Vale do Ribeira (SP), e Campo Grande (MS), Aline chegou à conclusão de que o projeto funciona mais para promover o marketing cultural das empresas apoiadoras do que para transformar de fato as realidades escolares.
As críticas e questões levantadas por essa pesquisa não são novidade. Da centralização de verbas nos grandes centros à substituição dos papéis que deveriam ser desempenhados pelo próprio Estado, mecanismos como o da Lei Rouanet e da Lei de Incentivo ao Esporte (LIE) ainda deixam muitas dúvidas quanto a sua efetividade. E a movimentação nesse campo não para de acontecer: tanto para ampliar as áreas de aplicação de mecanismos de renúncia como para dirimir distorções.
Nos últimos 20 anos, desde a aprovação da Lei Rouanet, em 1991, as mudanças foram muitas nesse cenário. De 1993 a 2013, segundo dados do próprio Ministério da Cultura, o valor total das iniciativas apoiadas por meio de renúncia cresceu a olhos vistos [1]. Em 2007, as cifras de projetos apoiados passaram à casa do bilhão e, até 2012, somaram-se mais de R$ 13 bilhões investidos em projetos culturais. Embora os números apontem claros avanços no investimento de recursos, não chegam a revelar as muitas contradições que subjazem a esse modelo. E as iniciativas, seguindo parâmetros parecidos, estendem-se a outras áreas de incentivo.
[1] Os dados comparativos por ano podem ser acessados no Sistema SalicNet, do MinC.
LÓGICA REPLICADA
No Esporte, assim como na Cultura, os valores são altos e se concentram nos grandes centros econômicos, avalia José Cruz, jornalista especializado na cobertura política e econômica da área esportiva. Segundo ele, dados do Ministério do Esporte de 2010 indicam que foram captados, por meio da LIE, R$ 255,3 milhões entre 2007 e 2009, dos quais R$ 108,2 milhões só no estado de São Paulo. O pódio dos estados que mais captaram no período é ocupado por São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que concentraram mais de 85% dos recursos, enquanto oito estados nada captaram no período. São eles: Acre, Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Pará e Roraima
Editada por medida provisória em 2006 e fruto de uma demanda que data da década de 1990, a LIE nunca passou por uma avaliação de sua aplicação, nota Cruz, que vê o Ministério do Esporte omisso ao fiscalizar os projetos que aprova. O jornalista enumera casos que evidenciam a ausência de princípios em favor do desenvolvimento do esporte na aplicação da LIE.
“Recentemente, houve uma denúncia de que a Confederação de Tênis pagou com notas fiscais frias serviços para um torneio internacional em São Paulo. Há casos de patrocínios por meio da LIE para um piloto americano da Fórmula Nascar. Outro projeto que chamou atenção foi um torneio de golfe que pagou US$ 500 mil de prêmio”, relata. E os absurdos parecem não ter limite, tendo em vista que, em 2009, o Tribunal de Contas da União (TCU) identificou projetos contemplados que nem mesmo tinham como objeto a prática esportiva.
Para Cruz, a origem dessas distorções encontra-se na ausência de uma política nacional para o esporte e na parca (ou nula) participação do Estado na governança desses recursos. “Repete-se na LIE o que ocorre com as demais fontes de recursos públicos para o esporte: a altíssima concentração de dinheiro em projetos de alto rendimento, justamente o que dá retorno de mídia, em detrimento de projetos para a base, para a iniciação, ou para o desporto escolar”, critica Cruz.
REFORMAS À VISTA
Em maio de 2012, aconteceu em São Paulo o I Seminário Procultura, apoiado pelo site Cultura e Mercado, com a finalidade de analisar um projeto de lei que, se aprovado e promulgado pela presidente da República, revogará a Lei Rouanet e muitos de seus problemas. O seminário, realizado pela Rede Cemec – Negócios Criativos e pelo site Cultura e Mercado, sob coordenação de Leonardo Brant, debateu a fundo o projeto de lei que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura), em fase de tramitação na Câmara. (mais neste blog)
Na ocasião, o PL n. 6.722/2010, cuja relatoria é do deputado Pedro Eugênio (PT-PE), logrou ser aprovado por unanimidade pelos participantes – representantes da sociedade civil e também do Ministério da Cultura. O Procultura deve determinar novos critérios para a escolha de projetos e proponente e alterar os percentuais de renúncia permitidos por lei às empresas – que passam dos atuais 4% para 6%.
Outro importante aporte trazido pelo Procultura é a proposta de destinação obrigatória de pelo menos 20% dos recursos da renúncia fiscal ao Fundo Nacional de Cultura (FNC), mecanismo que pode ajudar a melhorar a governança na aplicação desses recursos. Atualmente, eles são aplicados diretamente pelas empresas em propostas aprovadas pelo Ministério da Cultura – o que favorece ações de marketing cultural. O Procultura prevê ainda que no mínimo 10% do orçamento do Fundo Nacional de Cultura (FNC) sejam aplicados regionalmente e que um percentual de 30% seja destinado a fundos estaduais e municipais, como medida de descentralização.
A lógica de incentivar projetos por meio de doações a fundos já é praticada no País e tem a vantagem de assegurar que os valores aplicados sejam geridos e administrados como recursos públicos, obedecendo aos princípios que regem o orçamento público (legalidade, impessoalidade e moralidade). Também é uma maneira de nortear sua aplicação consoante prioridades estabelecidas pelas políticas públicas e por meio de editais acessíveis ao público.
É o que acontece no Fundo da Infância e da Adolescência (FIA) – previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 – e no Fundo Nacional do Idoso (FNI) – criado pelo Estatuto do Idoso, de 2010. Ambos são gerenciados por conselhos diretores em todo o País e replicados nas três esferas federativas (municipal, estadual e nacional). Tanto nas doações ao FIA quanto ao FNI, as empresas devem obedecer ao teto de 1% para abatimento no imposto, podendo – caso doarem a ambos os fundos – chegar a 2% de dedução. Se quiser doar a vários fundos, o empresário pode obter isoladamente até 1% de dedução no imposto por meio do FIA, do FNI e da Lei do Esporte, e até 4% investindo na área cultural – um total de até 7% de abatimento. O teto de 4% para a cultura soma os investimentos via Lei Rouanet, Lei do Audiovisual e Funcine.
Há de se atentar para o fato de que promover os fundos não necessariamente garante que o mecanismo de renúncia seja incorruptível. Um estudo do promotor de Justiça Murillo José Digiácomo, dá atenção à prática de “doações casadas”, em que os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA), que gerem os FIAs, atuam definindo previamente quais entidades devem receber os recursos abatidos por meio de doações aos fundos. Segundo o estudo, a prática se popularizou com a proibição, na atual legislação fiscal, de doações diretas a entidades ditas filantrópicas.
Um exemplo de sucesso no uso de fundos alimentados por renúncia fiscal para a área cultural é o Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre (Fumproarte), que financia, há mais de 18 anos, até 80% do custo total de projetos artísticos na cidade. O fundo já foi duas vezes finalista do Prêmio Cultura Viva do MinC, justamente na categoria Gestão Pública.
Para o advogado Fábio de Sá Cesnik, autor do Guia do Incentivo Cultural – que já está em sua 3a edição –, não se pode cair na tentação de apenas criticar os modelos de incentivo fiscal existentes no País e suas formas de gestão. É preciso dar atenção ao que essas políticas têm legado ao setor cultural. Cesnik lembra que as experiências positivas e de gestão exemplar de recursos são inúmeras, entre elas a do Instituto Baccarelli, que forma jovens músicos na comunidade de Heliópolis, na Zona Sul de São Paulo, e o Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga, no interior do Ceará (mais na reportagem “Além da Imaginação”, publicada na edição 41).
“Há vários exemplos que têm estimulado o desenvolvimento regional no Brasil. As mudanças que estamos tendo na Rouanet – que precisam ocorrer também na lei do esporte –, sem dúvida nenhuma serão saudáveis para chegarmos a um cenário mais próximo do que vemos como vitorioso.” Em 25 de maio, novamente em São Paulo, será realizada a segunda edição do Seminário Procultura. A expectativa é a de que a sociedade civil como um todo consiga aprofundar o debate sobre a nova proposta de incentivo a projetos culturais, que, por ora, aguarda apenas o aval do Ministério da Fazenda para ser votado no Congresso.
IR Ecológico: regulamentação em aberto
Desde 2005 está em discussão no Congresso o Imposto de Renda Ecológico. Proposto pelo Senado Federal, o projeto é apoiado pela Ação pelo IR Ecológico, que congrega diversas organizações ambientalistas – como o WWF, a Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Socioambiental. “Fizemos uma grande mobilização aqui em Brasília”, conta Mario Mantovani, da SOS Mata Atlântica. O ambientalista destaca que a proposta do IR Ecológico (IR-e), pronta para ser votada no plenário da Câmara, busca justamente se desvencilhar dos vícios das áreas cultural e esportiva.
O Projeto de Lei n. 5.974/2005, apresentado em acordo com as entidades que compõem o Grupo de Trabalho pelo IR-e e o Ministério do Meio Ambiente, já foi aprovado em todas as comissões da Câmara dos Deputados – mesmo com a resistência, conta Mantovani, do setor cultural, receoso da concorrência com uma nova área pelos recursos da renúncia fiscal.
Entre as iniciativas que poderão ser financiadas pelo IR-e estão preservação de rios, restauração florestal, recuperação de áreas degradadas e até o apoio a Unidades de Conservação. Para Mantovani, talvez este último seja o principal papel do IR-e. Ele lembra que a própria SOS Mata Atlântica tem desenvolvido projetos com o objetivo de aportar recursos para UCs, com forte adesão do empresariado. O que se quer garantir com a aprovação do PL é que esse tipo de iniciativa seja amparado por políticas públicas – voltadas para Unidades de Conservação menos conhecidas e visitadas.
A proposta prevê a aprovação dos projetos pelo Ministério do Meio Ambiente, à luz das prioridades e normas do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). O IR-e deve permitir às empresas deduzir até 4% do imposto e, do total arrecadado, 80% deve ser doado necessariamente ao FNMA ou a outros fundos ambientais públicos.
Está no cerne da proposta a ideia de ampliar e consolidar a rede de apoio ao meio ambiente na sociedade civil, já que, na opinião de Mantovani, os incentivos fiscais podem ajudar a aproximar empresas e cidadãos de áreas protegidas. Um manifesto em favor da aprovação do IR-e foi organizado pelo grupo de entidades que o apoiam, e pode ser assinado on-line.