Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa, já disse alguém
O preço do tomate foi outro dia assunto de capa de duas revistas semanais. Que os preços estão subindo é percebido por qualquer frequentador de um supermercado. E isso vem desde o ano passado. O fato é que, de tanto ler e ouvir sobre o tomate, corri à estante e retirei de lá alguns livros do tempo em que na Faculdade de Direito havia uma cadeira, a de Economia Política. Nem sei se hoje nas escolas jurídicas do País sobrevive a tal cadeira.
Era útil e eu provo isso agora, quase 40 anos depois, quando me sinto habilitado a declarar que a alta do tomate não significa inflação. Está lá, nos livros de um mestre como Ignácio Rangel, ou nas sempre bem humoradas análises econômicas de John Kenneth Galbraith. Este último, além disso, lembra muito seriamente que a inflação não é o entrave principal ao avanço econômico.
Ela não é a causa, mas, sim, consequência de fatores sociais e políticos de raízes profundas, quando a baixa produtividade de um país se deve à proliferação “grupos não funcionais”. Ou seja, instituições que não estão envolvidas na produção de bens. Por exemplo, a classe política em geral e boa parte dos agentes fiscalizadores do governo. Igualmente, poderíamos colocar nesse balaio os militares – a não ser quando estão em guerra – e, junto com eles, uma leva de negociantes monopolistas e similares e os especuladores em geral. O pessoal do chamado “mercado”.
Nos relatos dos tempos medievais não existem referências ao fenômeno inflacionário. Este começa com a criação do sistema bancário, precursor do mercado. Toma ares dramáticos no início do século XX, durante a Guerra de 1914, na França. Para evitar abrir mão do ouro, o governo corria aos bancos pedindo adiantamentos. Os governantes não percebiam que a guerra era financiada pela emissão ilimitada de notas.
Na Alemanha, como na França, a inflação desenfreada também começa com a guerra. Os alemães, por volta de 1920, passaram a atribuir às emissões do Reichsbank o dinamismo da sua economia. Deu no que deu. Nos Estados Unidos, registrou-se uma tendência para as facilidades de crédito já no governo Roosevelt, e que persiste até hoje. Também deu no que deu: a enorme e recente crise das hipotecas imobiliárias.
Os governantes tratam de arrumar remédios não para a raiz do problema, mas para os seus efeitos. Essa medicação implica cortes orçamentários, elevação tributária, desemprego e restrições que acabam afetando o investimento. São os medicamentos ortodoxos, como se diz em economês. Se o aperto passa da conta, é considerado excessivo, e os especialistas recomendam um afrouxamento nas medidas. O resultado tem sido o aumento da velocidade da inflação.
Se nos recusamos a aceitar o preço do tomate para, simbolicamente, definir o que é a inflação, fica a pergunta. O que é a inflação? Seja grande, seja pequena, seja moderada, seja galopante (adjetivo muito usado), ela consiste no lançamento em circulação de meios de pagamento para além das necessidades de momento.
Em alguns países da América Latina, tem o nome de “empapelamiento”. É disso que se trata. Fazer uma moeda fictícia, quase sempre de papel. É o que tem acontecido ao longo da história, seja com o marco alemão, seja com os rublos, os francos, os pesos, os cruzeiros etc.
As moedas da Zona do Euro, por enquanto, estão submetidas a um controle rígido, uma política hiperortodoxa, que nada mais é que o velho e tradicional corte de gastos. A inflação está contida nos países do grupo em torno de 2%. O resultado tem sido terrível para a economia desses países.
Em Portugal, por exemplo, o desemprego passa de 950 mil de pessoas. Na Espanha, 26% da infância encontra-se enredada na teia da pobreza, que avança sobre a quarta maior economia do euro. O El País informa que os bancos de alimentos não dão conta de atender a demanda: estima-se que 1,3 milhão de espanhóis dependem de ajuda para comer. A cada 15 minutos uma família é despejada em Madri, Barcelona ou em algum outro ponto do país. Em Portugal, em muitas repartições públicas, papel higiênico deve ser trazido de casa.
Por aqui, a verdade é que o governo, pressionado pelo calendário eleitoral, recusa-se a trazer a crise para dentro do País. A redução de investimentos, no entanto, não pode ser contestada. O “pibinho” de 2012 mostra isso. Mas os defensores do “Estado mínimo” põem a culpa na insegurança jurídica, no excesso (ou na ausência) de normas reguladoras, na burocracia. Seriam mais honestos se admitissem que o capital, medroso por sua natureza animal, deixa-se levar pelo seu faro.
No sentido contrário, já existe um grupo articulado de economistas midiáticos que contra-ataca a própria mídia. De um artigo de um deles tirei as seguintes frases:
1. De cada três palavras difundidas pelo noticiário, uma é juro.
2. Colunistas se ressentem de demissões frescas. Implora-se por números azedos para servir no café da manhã. E é preciso abrir espaços à incerteza no jantar.
E prossegue sua arenga: “(…) abengalados ora no quilo do tomate, ora na novena pervertida em prol da seca nos reservatórios, seu futuro pressupõe que o emprego, a casa, a comida, o salário e o crédito sejam tragados em uma gigantesca restauração rentista, que solde a economia ao comboio do abismo”.
Um texto ideológico, claro ou claríssimo, até certo ponto refinado (vide a expressão “abengalados”). Mas que não ajuda em nada na nossa questão central: o que é afinal de contas essa tal de inflação?
*TÃO GOMES PINTO É JORNALISTA, FOI UM DOS FUNDADORES DO JORNAL DA TARDE E TRABALHOU NAS REVISTAS VEJA, ISTOÉ
E MANCHETE[:en]Uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa, já disse alguém
O preço do tomate foi outro dia assunto de capa de duas revistas semanais. Que os preços estão subindo é percebido por qualquer frequentador de um supermercado. E isso vem desde o ano passado. O fato é que, de tanto ler e ouvir sobre o tomate, corri à estante e retirei de lá alguns livros do tempo em que na Faculdade de Direito havia uma cadeira, a de Economia Política. Nem sei se hoje nas escolas jurídicas do País sobrevive a tal cadeira.
Era útil e eu provo isso agora, quase 40 anos depois, quando me sinto habilitado a declarar que a alta do tomate não significa inflação. Está lá, nos livros de um mestre como Ignácio Rangel, ou nas sempre bem humoradas análises econômicas de John Kenneth Galbraith. Este último, além disso, lembra muito seriamente que a inflação não é o entrave principal ao avanço econômico.
Ela não é a causa, mas, sim, consequência de fatores sociais e políticos de raízes profundas, quando a baixa produtividade de um país se deve à proliferação “grupos não funcionais”. Ou seja, instituições que não estão envolvidas na produção de bens. Por exemplo, a classe política em geral e boa parte dos agentes fiscalizadores do governo. Igualmente, poderíamos colocar nesse balaio os militares – a não ser quando estão em guerra – e, junto com eles, uma leva de negociantes monopolistas e similares e os especuladores em geral. O pessoal do chamado “mercado”.
Nos relatos dos tempos medievais não existem referências ao fenômeno inflacionário. Este começa com a criação do sistema bancário, precursor do mercado. Toma ares dramáticos no início do século XX, durante a Guerra de 1914, na França. Para evitar abrir mão do ouro, o governo corria aos bancos pedindo adiantamentos. Os governantes não percebiam que a guerra era financiada pela emissão ilimitada de notas.
Na Alemanha, como na França, a inflação desenfreada também começa com a guerra. Os alemães, por volta de 1920, passaram a atribuir às emissões do Reichsbank o dinamismo da sua economia. Deu no que deu. Nos Estados Unidos, registrou-se uma tendência para as facilidades de crédito já no governo Roosevelt, e que persiste até hoje. Também deu no que deu: a enorme e recente crise das hipotecas imobiliárias.
Os governantes tratam de arrumar remédios não para a raiz do problema, mas para os seus efeitos. Essa medicação implica cortes orçamentários, elevação tributária, desemprego e restrições que acabam afetando o investimento. São os medicamentos ortodoxos, como se diz em economês. Se o aperto passa da conta, é considerado excessivo, e os especialistas recomendam um afrouxamento nas medidas. O resultado tem sido o aumento da velocidade da inflação.
Se nos recusamos a aceitar o preço do tomate para, simbolicamente, definir o que é a inflação, fica a pergunta. O que é a inflação? Seja grande, seja pequena, seja moderada, seja galopante (adjetivo muito usado), ela consiste no lançamento em circulação de meios de pagamento para além das necessidades de momento.
Em alguns países da América Latina, tem o nome de “empapelamiento”. É disso que se trata. Fazer uma moeda fictícia, quase sempre de papel. É o que tem acontecido ao longo da história, seja com o marco alemão, seja com os rublos, os francos, os pesos, os cruzeiros etc.
As moedas da Zona do Euro, por enquanto, estão submetidas a um controle rígido, uma política hiperortodoxa, que nada mais é que o velho e tradicional corte de gastos. A inflação está contida nos países do grupo em torno de 2%. O resultado tem sido terrível para a economia desses países.
Em Portugal, por exemplo, o desemprego passa de 950 mil de pessoas. Na Espanha, 26% da infância encontra-se enredada na teia da pobreza, que avança sobre a quarta maior economia do euro. O El País informa que os bancos de alimentos não dão conta de atender a demanda: estima-se que 1,3 milhão de espanhóis dependem de ajuda para comer. A cada 15 minutos uma família é despejada em Madri, Barcelona ou em algum outro ponto do país. Em Portugal, em muitas repartições públicas, papel higiênico deve ser trazido de casa.
Por aqui, a verdade é que o governo, pressionado pelo calendário eleitoral, recusa-se a trazer a crise para dentro do País. A redução de investimentos, no entanto, não pode ser contestada. O “pibinho” de 2012 mostra isso. Mas os defensores do “Estado mínimo” põem a culpa na insegurança jurídica, no excesso (ou na ausência) de normas reguladoras, na burocracia. Seriam mais honestos se admitissem que o capital, medroso por sua natureza animal, deixa-se levar pelo seu faro.
No sentido contrário, já existe um grupo articulado de economistas midiáticos que contra-ataca a própria mídia. De um artigo de um deles tirei as seguintes frases:
1. De cada três palavras difundidas pelo noticiário, uma é juro.
2. Colunistas se ressentem de demissões frescas. Implora-se por números azedos para servir no café da manhã. E é preciso abrir espaços à incerteza no jantar.
E prossegue sua arenga: “(…) abengalados ora no quilo do tomate, ora na novena pervertida em prol da seca nos reservatórios, seu futuro pressupõe que o emprego, a casa, a comida, o salário e o crédito sejam tragados em uma gigantesca restauração rentista, que solde a economia ao comboio do abismo”.
Um texto ideológico, claro ou claríssimo, até certo ponto refinado (vide a expressão “abengalados”). Mas que não ajuda em nada na nossa questão central: o que é afinal de contas essa tal de inflação?
*TÃO GOMES PINTO É JORNALISTA, FOI UM DOS FUNDADORES DO JORNAL DA TARDE E TRABALHOU NAS REVISTAS VEJA, ISTOÉ
E MANCHETE