Bons tempos em que podíamos botar a culpa nele
O ex-presidente Lula, falando recentemente no lançamento de um livro sobre o seu governo e o da sua sucessora, Dilma Rousseff, exortou a mídia brasileira a enterrar de vez o chamado “complexo de vira-latas”. Luiz Inácio se referia especificamente à política externa brasileira, cobrando dela mais ousadia.
O jornal Folha de S.Paulo enfiou a carapuça e o debate foi em frente. Lula foi acusado de dar palestras no exterior, remunerado por grandes empresas. Respondeu, bem-humorado e irônico, que se sentia orgulhoso com esses convites feitos a “um ex-presidente fracassado”. O fato é que, ao se desdobrar, o confronto acabou ignorando a origem do tão discutido “complexo de vira-latas”.
Seria útil lembrar, por exemplo, que a expressão foi criada pelo notável dramaturgo, escritor e jornalista Nelson Rodrigues quando, nas suas crônicas futebolísticas, inimitáveis pelo estilo, explicou, como sempre de forma original, que a derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1950 foi provocada pelo “complexo de vira-latas”. E o próprio Nelson considerou o complexo superado a partir da vitória do Brasil no Mundial da Suécia, em 1958. Ele viveria para assistir às comemorações da conquista do bicampeonato de 1962, no Chile, e acompanhar a magistral exibição da seleção nos 4 a 1 da vitória sobre a Itália, em 1970. O Brasil conquistava o Tri!!!
Não ganhamos em 1974. Em 1978 saímos da Argentina sem o título – encomendado pelo regime militar vigente, mas de cabeça erguida, sem complexos. Não perdemos um jogo. Nelson, falecido em 1980, não assistiu a derrota do Sarrià, que, apesar de batida, consagraria a Seleção de Telê Santana como a que jogava, disparado, o melhor futebol do mundo em 1982. Ou será que era o complexo de vira-latas que voltara a atacar? Só Nelson, ressuscitado, poderia responder.
Não deixa de ser significativo lembrar que o complexo de vira-latas, traduzido para o inglês como “the mongrel complex”, nos atormentaria 54 anos depois da derrota para o Uruguai. Em 2004, O jornalista americano Larry Rohter, escrevendo para o The New York Times sobre o nosso programa nuclear, disse que o brasileiro se ressentia de não ser levado mais a sério. Segundo Rohter, correspondente no Rio de Janeiro, doía nos nossos ouvidos ser confundidos com a Bolívia, como Ronald Reagan fez uma vez. Ou saber que Charles De Gaulle afirmara que o Brasil não era um país sério, frase nunca confirmada, diga-se.
Em uma típica recaída do complexo de vira-latas, Rohter foi considerado persona non grata pelo governo, teve suas credenciais cassadas e foi remetido de volta à redação do NYT. Por quem? Pelo próprio presidente Lula, que agora clama por um país livre de complexos. Especialmente do complexo de vira-latas.
Essa suposta “inferioridade” do povo brasileiro vem de longe. Quando o conde francês Arthur de Gobineau desembarcou no Rio de Janeiro, em 1869, comentou num texto que os cariocas eram “verdadeiros macacos”. Claro, deve ter-se chocado com a pequena multidão de escravos que circulava pelas estreitas e então imundas ruelas da cidade.
No entanto, o futebol continua a ser a fonte primária do complexo inventado por Nelson Rodrigues. Com a Copa do Mundo já ao alcance da mão, ele ganha até mesmo nova vida. Os jornais brasileiros ainda vão falar muito do Maracanazo – a inacreditável derrota do Brasil para o Uruguai em 1950.
O futebol sempre foi altamente fotogênico. Não é de admirar que, então com 11 anos de idade, das recordações da Copa do Mundo de 1950 eu trago apenas a memória de certas fotos. E todas, sem exceção, mexendo com as nossas entranhas, com as nossas mais íntimas frustrações.
A do craque vascaíno Danilo Alvim deixando o gramado do Maracanã, sem camisa, visivelmente esgotado, exibindo um físico esquálido. A do goleiro Barbosa surpreendido pelo chute, no cantinho esquerdo, do uruguaio Ghiggia.
Mas emblemática e definitiva seria a foto que a Gazeta Esportiva publicaria em página dupla. Os capitães Obdulio Varela, do Uruguai, e José Carlos Bauer, o elegante Bauer, meu ídolo no time de botões, trocando flâmulas antes da partida. O título, meu Deus, era a consagração definitiva do complexo de vira-latas: “Nunca mais… Nunca mais”.
Uma previsão catastrófica em todos os sentidos. Depois desse “nunca mais”, ganhamos cinco copas do mundo.
Mas será que essa sucessão de vitórias… mais o fato de o País ter-se desenvolvido, a ponto de chegar a figurar entre as seis economias mais importantes do planeta, a globalização inevitável, a adoção entusiasmada até pelas camadas menos favorecidas de equipamentos sofisticados como a internet, os êxitos brasileiros na música e nesta ou naquela área científica (está próximo o dia em que um brasileiro ganhará o Nobel)… será que essa torrente de progresso e evolução, tudo isso não acabou de vez com o nosso complexo de vira-latas?
Pelo jeito ainda não! E o “fantasma” do complexo não entra em cena só. Virão com ele outras, digamos, instituições tipicamente brasileiras, que pareciam mortas e enterradas para sempre: a ameaça da inflação, a economia sendo encolhida a cada PIB e apelando para o protecionismo, os governantes que trabalham para compor interesses. Bons velhos tempos em que o nosso problema maior – e quase único – era o complexo de vira-latas.
*TÃO GOMES PINTO É JORNALISTA, FOI UM DOS FUNDADORES DO JORNAL DA TARDE E TRABALHOU NAS REVISTAS VEJA, ISTOÉ E MANCHETE[:en]Bons tempos em que podíamos botar a culpa nele
O ex-presidente Lula, falando recentemente no lançamento de um livro sobre o seu governo e o da sua sucessora, Dilma Rousseff, exortou a mídia brasileira a enterrar de vez o chamado “complexo de vira-latas”. Luiz Inácio se referia especificamente à política externa brasileira, cobrando dela mais ousadia.
O jornal Folha de S.Paulo enfiou a carapuça e o debate foi em frente. Lula foi acusado de dar palestras no exterior, remunerado por grandes empresas. Respondeu, bem-humorado e irônico, que se sentia orgulhoso com esses convites feitos a “um ex-presidente fracassado”. O fato é que, ao se desdobrar, o confronto acabou ignorando a origem do tão discutido “complexo de vira-latas”.
Seria útil lembrar, por exemplo, que a expressão foi criada pelo notável dramaturgo, escritor e jornalista Nelson Rodrigues quando, nas suas crônicas futebolísticas, inimitáveis pelo estilo, explicou, como sempre de forma original, que a derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1950 foi provocada pelo “complexo de vira-latas”. E o próprio Nelson considerou o complexo superado a partir da vitória do Brasil no Mundial da Suécia, em 1958. Ele viveria para assistir às comemorações da conquista do bicampeonato de 1962, no Chile, e acompanhar a magistral exibição da seleção nos 4 a 1 da vitória sobre a Itália, em 1970. O Brasil conquistava o Tri!!!
Não ganhamos em 1974. Em 1978 saímos da Argentina sem o título – encomendado pelo regime militar vigente, mas de cabeça erguida, sem complexos. Não perdemos um jogo. Nelson, falecido em 1980, não assistiu a derrota do Sarrià, que, apesar de batida, consagraria a Seleção de Telê Santana como a que jogava, disparado, o melhor futebol do mundo em 1982. Ou será que era o complexo de vira-latas que voltara a atacar? Só Nelson, ressuscitado, poderia responder.
Não deixa de ser significativo lembrar que o complexo de vira-latas, traduzido para o inglês como “the mongrel complex”, nos atormentaria 54 anos depois da derrota para o Uruguai. Em 2004, O jornalista americano Larry Rohter, escrevendo para o The New York Times sobre o nosso programa nuclear, disse que o brasileiro se ressentia de não ser levado mais a sério. Segundo Rohter, correspondente no Rio de Janeiro, doía nos nossos ouvidos ser confundidos com a Bolívia, como Ronald Reagan fez uma vez. Ou saber que Charles De Gaulle afirmara que o Brasil não era um país sério, frase nunca confirmada, diga-se.
Em uma típica recaída do complexo de vira-latas, Rohter foi considerado persona non grata pelo governo, teve suas credenciais cassadas e foi remetido de volta à redação do NYT. Por quem? Pelo próprio presidente Lula, que agora clama por um país livre de complexos. Especialmente do complexo de vira-latas.
Essa suposta “inferioridade” do povo brasileiro vem de longe. Quando o conde francês Arthur de Gobineau desembarcou no Rio de Janeiro, em 1869, comentou num texto que os cariocas eram “verdadeiros macacos”. Claro, deve ter-se chocado com a pequena multidão de escravos que circulava pelas estreitas e então imundas ruelas da cidade.
No entanto, o futebol continua a ser a fonte primária do complexo inventado por Nelson Rodrigues. Com a Copa do Mundo já ao alcance da mão, ele ganha até mesmo nova vida. Os jornais brasileiros ainda vão falar muito do Maracanazo – a inacreditável derrota do Brasil para o Uruguai em 1950.
O futebol sempre foi altamente fotogênico. Não é de admirar que, então com 11 anos de idade, das recordações da Copa do Mundo de 1950 eu trago apenas a memória de certas fotos. E todas, sem exceção, mexendo com as nossas entranhas, com as nossas mais íntimas frustrações.
A do craque vascaíno Danilo Alvim deixando o gramado do Maracanã, sem camisa, visivelmente esgotado, exibindo um físico esquálido. A do goleiro Barbosa surpreendido pelo chute, no cantinho esquerdo, do uruguaio Ghiggia.
Mas emblemática e definitiva seria a foto que a Gazeta Esportiva publicaria em página dupla. Os capitães Obdulio Varela, do Uruguai, e José Carlos Bauer, o elegante Bauer, meu ídolo no time de botões, trocando flâmulas antes da partida. O título, meu Deus, era a consagração definitiva do complexo de vira-latas: “Nunca mais… Nunca mais”.
Uma previsão catastrófica em todos os sentidos. Depois desse “nunca mais”, ganhamos cinco copas do mundo.
Mas será que essa sucessão de vitórias… mais o fato de o País ter-se desenvolvido, a ponto de chegar a figurar entre as seis economias mais importantes do planeta, a globalização inevitável, a adoção entusiasmada até pelas camadas menos favorecidas de equipamentos sofisticados como a internet, os êxitos brasileiros na música e nesta ou naquela área científica (está próximo o dia em que um brasileiro ganhará o Nobel)… será que essa torrente de progresso e evolução, tudo isso não acabou de vez com o nosso complexo de vira-latas?
Pelo jeito ainda não! E o “fantasma” do complexo não entra em cena só. Virão com ele outras, digamos, instituições tipicamente brasileiras, que pareciam mortas e enterradas para sempre: a ameaça da inflação, a economia sendo encolhida a cada PIB e apelando para o protecionismo, os governantes que trabalham para compor interesses. Bons velhos tempos em que o nosso problema maior – e quase único – era o complexo de vira-latas.
*TÃO GOMES PINTO É JORNALISTA, FOI UM DOS FUNDADORES DO JORNAL DA TARDE E TRABALHOU NAS REVISTAS VEJA, ISTOÉ E MANCHETE