As opiniões sobre as manifestações vão brotando pela rede. Tem gente explicando para quem foi ativista na ditadura que a história aqui é outra, mas ouvi mais de uma vez na caminhada “o povo unido jamais será vencido”; tem gente dizendo que os partidos não cabem, mas as bandeiras podem ser vistas aqui e ali; tem gente dizendo que a multidão não grita muito, fica até em silêncio e tira muita foto de si mesma e perde o “real motivo” da inquietação social; tem gente dizendo que os reaças têm de sair fora da “marcha” com seus papos antivandalismo e anticorrupção …
Parecem tentativas de dar um veredito para as manifestações, de definir qual é seu escopo, seu objetivo, sua essência.
Se as manifestações do dia 17 foram a expressão corporificada da rede, seus significados não têm autor, nem definição certa. Têm mensagens sem fronteiras que pressionam pela revogação dos 0,20, pelo passe livre, pelo não à PEC 37, pelo fim da corrupção, pelo não à violência, pelo quebra-tudo, por esse ou aquele jogador na seleção … tudo ao mesmo tempo agora. Impulsos como os gritos da caminhada que irrompem e contaminam e seguem ou se perdem em questões de instantes.
O que não cessa é a rede, que se mostra corporificada e caminhando e se mostra virtual e se mostra à distância. Vai dando expressão às percepções dos grupos que também não são fixos e se articulam e rearticulam de modos imprevisíveis, unindo e distanciando perfis que não se imaginavam afins e avessos, mas mantendo o fluxo contínuo de informação e de sentidos.
Os governantes, atônitos, revelam parte das vozes atônitas da rede. As TVs, aviltadas em seus modos de fazer e emitir tentam dizer “estou junto com vocês”, “agora vou falar tudo o que vocês querem dizer”. Tanto faz … são mais um post, mais uma imagem, mais um áudio em meio à rede que respira e que não se fixa em nada especificamente ou por muito tempo, mas que assim vai modificando as conexões e sentidos da sociedade.
Quem insistir que é preciso controlar, orientar ou revogar o “déficit de atenção” estará perdendo seu tempo. A rede vai seguir diluindo política em atos que não têm discurso específico, misturando pornografia a buscas de receitas culinárias e palavras de filósofos e melhores lances da partida e imagens da repressão policial.
Quanto importa que todos que estiveram nas avenidas apinhadas de gente em São Paulo saibam que a estimativa oficial de 65 mil nem passa perto do número de manifestantes? Que as TVs não sobrevoaram a Faria Lima lotada por quilômetros de extensão, que a imprensa não mostrou os manifestantes na Rede Globo ou na Assembleia Legislativa? A rede sabe de si, mostra-se para si mesma, não precisa da anuência dos números, da oficialidade dos governos, da lógica de centralidade da mídia do século passado. Ela segue perceptiva, orgânica e tecnológica, involuntária e conectiva em todas as dimensões imagináveis – como o próprio corpo – sem núcleo, sem autorias, sem objetivos únicos.
Ela não precisa nem mesmo de pessoas conectadas ao digital. Mesmo os desconectados estão na rede e bebem dela e a alimentam sem saber. E os dispositivos tecnológicos continuam fazendo parte dela, e as cidades, e a natureza, e as pessoas, e as ideias mutantes e mutáveis … uma trama que parece só não admitir bloqueio ao fluxo e à conectividade.
Ricardo Barretto