O contingente de obesos e vítimas do sobrepeso supera e cresce muito mais que o de famintos. As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta
A alimentação talvez seja o exemplo mais emblemático da distância que pode existir entre riqueza e prosperidade. Parte importante daquilo que o sistema econômico oferece à vida social agrava problemas cujas soluções vão ficando cada vez mais difíceis e caras.
Não há dúvida de que para eliminar a vergonhosa existência de 1 bilhão de pessoas em situação de fome é necessário dispor de alimentos. Mas a verdade é que há, no mundo contemporâneo, 500 milhões de obesos. Somados às vítimas do sobrepeso, é um contingente que supera e cresce muito mais que o de famintos.
As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta. Os riscos sociais que decorrem daí são crescentes e repercutem sobre a própria viabilidade de financiamento dos sistemas de saúde em diferentes países.
Esta é a razão pela qual o tema desperta o interesse não só dos especialistas em saúde pública, mas também de organizações financeiras globais.
O Credit Suisse acaba de publicar um importante relatório, cujo objeto é aquele que, isoladamente, pode ser considerado o principal vetor da epidemia global de obesidade: o açúcar. Não o contido naturalmente nas frutas ou no leite, mas o que se adiciona aos alimentos, o que inclui o xarope de milho, muito usado nos Estados Unidos e, em menor proporção, no México, na Argentina e no Canadá. No início dos anos 1980 o consumo de açúcar (incluindo o xarope de milho) chegava a 48 gramas per capita. Hoje, já está em 70 gramas. Isso corresponde a 280 calorias.
Só que o consumo de açúcar não se distribui de forma homogênea. A média per capita chinesa é de 115 calorias diárias de açúcar. A dos Estados Unidos sobe a nada menos que 658. O Brasil é o segundo consumidor, superando as 600 calorias diárias, seguido por Austrália, Argentina e México, todos na faixa de 600 calorias diárias ou mais. Em 2009, a Associação Americana de Cardiologia (Heart American Association) recomendava não mais que 150 calorias diárias de açúcar adicionado para homens e 98 para as mulheres.
Nos Estados Unidos (e não só lá, é claro) é nos refrigerantes que está a maior proporção do açúcar contido em produtos alimentares: nada menos que 33% do total.
Mas o metabolismo do açúcar diluído em refrigerantes – e também nos sucos, é importante assinalar– é diferente daquele consumido sob a forma de doces, balas, sorvetes, iogurtes ou molhos: a informação que o corpo recebe do consumo de açúcar em forma líquida não o induz a reduzir proporcionalmente o consumo de outras formas de calorias. Ou seja, refrigerante não mata a fome e tudo indica que, ao contrário, estimula o apetite.
A RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS
As maiores marcas globais insistem na existência de um componente genético da obesidade. Apesar disso, o estudo do Credit Suisse mostra imensa convergência da literatura científica que associa as doenças da obesidade ao consumo de açúcar: 98% dos médicos entrevistados no âmbito da pesquisa acreditam que o açúcar está na origem da obesidade, e 96% deles associam-no à diabetes tipo 2.
Essa é uma doença que atinge hoje 370 milhões de pessoas no mundo. No México, já é a principal causa de mortalidade. O país está entre os campeões de obesidade (inclusive infantil) e é o segundo consumidor mundial de refrigerantes.
Os custos do tratamento da diabetes 2 para o sistema global de saúde já chegam a US$ 470 bilhões. Só nos Estados Unidos, são US$ 140 bilhões, mais que os US$ 90 bilhões que se gastam com doenças decorrentes do consumo de tabaco. Globalmente, o horizonte é que, em 2020, o sistema de saúde gaste US$ 700 bilhões para tratar o que poderá ser 500 milhões de habitantes atingidos por essa doença.
As grandes marcas globais que se voltam à produção de refrigerantes e sucos levam adiante ações relevantes para a conservação e a recuperação da água, para estimular a reciclagem de suas embalagens e até para fortalecer o empreendedorismo.
Por mais importantes que sejam, tais iniciativas empalidecem diante da tentativa permanente de negar o vínculo, corroborado por robustas evidências, entre o produto que elas oferecem e algumas das mais graves patologias epidêmicas de nossa época.
*PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA FEA E DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP. AUTOR DE MUITO ALÉM DA ECONOMIA VERDE E LIXO ZERO: GESTÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS PARA UMA SOCIEDADE MAIS PRÓSPERA (PLANETA SUSTENTÁVEL/ ABRIL). TWITTER: @ABRAMOVAY BLOG: RICARDOABRAMOVAY.COM
Leia mais:
“Antes a Terra era um vasto espaço selvagem a conquistar; hoje enxergamos seus limites e reconhecemos a sua finitude”, por Aron Belinky em “Nascemos cowboys, viramos astronautas“““Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata seu neto Juliano”, por Eduardo Shor em “Dona Isadora“
[:en]O contingente de obesos e vítimas do sobrepeso supera e cresce muito mais que o de famintos. As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta
A alimentação talvez seja o exemplo mais emblemático da distância que pode existir entre riqueza e prosperidade. Parte importante daquilo que o sistema econômico oferece à vida social agrava problemas cujas soluções vão ficando cada vez mais difíceis e caras.
Não há dúvida de que para eliminar a vergonhosa existência de 1 bilhão de pessoas em situação de fome é necessário dispor de alimentos. Mas a verdade é que há, no mundo contemporâneo, 500 milhões de obesos. Somados às vítimas do sobrepeso, é um contingente que supera e cresce muito mais que o de famintos.
As doenças do excesso ameaçam mais gente que as enfermidades da falta. Os riscos sociais que decorrem daí são crescentes e repercutem sobre a própria viabilidade de financiamento dos sistemas de saúde em diferentes países.
Esta é a razão pela qual o tema desperta o interesse não só dos especialistas em saúde pública, mas também de organizações financeiras globais.
O Credit Suisse acaba de publicar um importante relatório, cujo objeto é aquele que, isoladamente, pode ser considerado o principal vetor da epidemia global de obesidade: o açúcar. Não o contido naturalmente nas frutas ou no leite, mas o que se adiciona aos alimentos, o que inclui o xarope de milho, muito usado nos Estados Unidos e, em menor proporção, no México, na Argentina e no Canadá. No início dos anos 1980 o consumo de açúcar (incluindo o xarope de milho) chegava a 48 gramas per capita. Hoje, já está em 70 gramas. Isso corresponde a 280 calorias.
Só que o consumo de açúcar não se distribui de forma homogênea. A média per capita chinesa é de 115 calorias diárias de açúcar. A dos Estados Unidos sobe a nada menos que 658. O Brasil é o segundo consumidor, superando as 600 calorias diárias, seguido por Austrália, Argentina e México, todos na faixa de 600 calorias diárias ou mais. Em 2009, a Associação Americana de Cardiologia (Heart American Association) recomendava não mais que 150 calorias diárias de açúcar adicionado para homens e 98 para as mulheres.
Nos Estados Unidos (e não só lá, é claro) é nos refrigerantes que está a maior proporção do açúcar contido em produtos alimentares: nada menos que 33% do total.
Mas o metabolismo do açúcar diluído em refrigerantes – e também nos sucos, é importante assinalar– é diferente daquele consumido sob a forma de doces, balas, sorvetes, iogurtes ou molhos: a informação que o corpo recebe do consumo de açúcar em forma líquida não o induz a reduzir proporcionalmente o consumo de outras formas de calorias. Ou seja, refrigerante não mata a fome e tudo indica que, ao contrário, estimula o apetite.
A RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS
As maiores marcas globais insistem na existência de um componente genético da obesidade. Apesar disso, o estudo do Credit Suisse mostra imensa convergência da literatura científica que associa as doenças da obesidade ao consumo de açúcar: 98% dos médicos entrevistados no âmbito da pesquisa acreditam que o açúcar está na origem da obesidade, e 96% deles associam-no à diabetes tipo 2.
Essa é uma doença que atinge hoje 370 milhões de pessoas no mundo. No México, já é a principal causa de mortalidade. O país está entre os campeões de obesidade (inclusive infantil) e é o segundo consumidor mundial de refrigerantes.
Os custos do tratamento da diabetes 2 para o sistema global de saúde já chegam a US$ 470 bilhões. Só nos Estados Unidos, são US$ 140 bilhões, mais que os US$ 90 bilhões que se gastam com doenças decorrentes do consumo de tabaco. Globalmente, o horizonte é que, em 2020, o sistema de saúde gaste US$ 700 bilhões para tratar o que poderá ser 500 milhões de habitantes atingidos por essa doença.
As grandes marcas globais que se voltam à produção de refrigerantes e sucos levam adiante ações relevantes para a conservação e a recuperação da água, para estimular a reciclagem de suas embalagens e até para fortalecer o empreendedorismo.
Por mais importantes que sejam, tais iniciativas empalidecem diante da tentativa permanente de negar o vínculo, corroborado por robustas evidências, entre o produto que elas oferecem e algumas das mais graves patologias epidêmicas de nossa época.
*PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA FEA E DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP. AUTOR DE MUITO ALÉM DA ECONOMIA VERDE E LIXO ZERO: GESTÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS PARA UMA SOCIEDADE MAIS PRÓSPERA (PLANETA SUSTENTÁVEL/ ABRIL). TWITTER: @ABRAMOVAY BLOG: RICARDOABRAMOVAY.COM
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“Antes a Terra era um vasto espaço selvagem a conquistar; hoje enxergamos seus limites e reconhecemos a sua finitude”, por Aron Belinky em “Nascemos cowboys, viramos astronautas“““Vó, a senhora fala tanto ‘Deus me livre’ que agora são os holandeses que estão se livrando de Deus” – mordeu meio biscoito de nata seu neto Juliano”, por Eduardo Shor em “Dona Isadora“