Como a alimentação orgânica e vegetariana, acompanhada do movimento ecológico, expressou sua posição política contra o sistema vigente
A comida é uma metáfora daquilo que nós gostamos ou não na sociedade, na visão de Warren James Belasco, professor de Estudos Americanos da Universidade de Maryland. Na história da civilização ocidental, os conflitos envolvendo comida e hábitos alimentares sempre têm uma fundamentação política. A redescoberta dos alimentos orgânicos e do vegetarianismo, acompanhada do movimento ecológico nas décadas de 1960 e 1970, é fruto da reação à violação dos direitos humanos e agressivas transformações no meio ambiente.
Os meios universitários dos Estados Unidos foram palco de disseminação da contracultura, semeada pioneiramente com os Diggers. Inspirados no movimento agrário de trabalhadores rurais ingleses (escavadores) do século XVII, os Diggers surgiram em meados de 1960, em San Francisco, combinando duas frentes que floresciam na cidade: a cena artística teatral, do meio boêmio e underground, com o movimento New Left [1] (Nova Esquerda) de paz e direitos civis. Por meio do teatro de rua e de boicotes a restaurantes e a produtos industrializados, distribuindo e produzindo sua própria comida, os Diggers posicionaram o alimento no centro do ativismo dos anos 1960, baseados na emergência da consciência ecológica.
[1] Termo usado em especial no Reino Unido e EUA para designar um ativismo de esquerda mais amplo, diferenciando-se do ativismo pautado somente pelo marxismo e a causa trabalhista
Em abril de 1969, seguindo os mesmos princípios de evolução harmoniosa defendidos pelos Diggers, estudantes universitários e moradores de Berkeley criaram o People’s Park (Parque do Povo), a partir da ocupação de um terreno baldio pertencente à Universidade da Califórnia. A área passou a ser utilizada publicamente por moradores, que nela fizeram uma horta e um jardim. O People’s Park, apesar de ter sucumbido à repressão da política opressiva do então governador da Califórnia Ronald Reagan, também deixou importantes contribuições para o movimento da contracultura: o resgate da ecologia.
Essa palavra deixou de apenas denominar um ramo de estudo da Biologia, passando a representar também a conscientização sobre a conservação da natureza e o resgate das práticas de cultivo orgânicas. Tudo isso motivado pelo contexto de crise ambiental em que se condenava o uso do pesticida DDT e os derramamentos de petróleo.
A ecologia saiu das prateleiras e estantes nas bibliotecas das universidades para ser amplamente difundida no discurso dos alternativos, ativistas e radicais, sobre vida, morte e sobrevivência. Assim, o ambientalismo emergiu da New Left como principal veículo de esperança e afronta. Os ecologistas defendiam um retorno às práticas alimentares e de cultivo tradicionais, e começaram a praticar um ativismo por meio da transformação voluntária e individual. Ao incorporar um estilo de vida mais simples e natural, essas pessoas acreditavam no poder de subverter a economia vigente e a cultura de consumismo desenfreado.
A preocupação com alimentos de origem animal também se inseria na transformação dos hábitos alimentares. A refeição americana tem como peça central a carne animal e o seu consumo aumentou muito após a Segunda Guerra Mundial, com a mecanização da agricultura. O excedente de grãos quimicamente cultivados passou a alimentar o gado, que então crescia em regime de confinamento, economicamente mais favorável ao pecuarista. Foi esse novo modus operandi que propiciou o surgimento de cadeias de restaurantes fast-food ancoradas no hambúrguer. A disponibilidade de carne barata era, e continua sendo, um componente central na ideologia americana de abundância.
Assim, o questionamento e a reprovação do consumo de alimentos de origem animal foram sustentados não só pela questão ética dos direitos dos animais e a ecológica dos impactos ambientais da produção, mas também pela posição política contrária ao culto à abundância e ao consumismo em massa. Tanto é que dietas orientais taoistas e macrobióticas, por exemplo, tornaram-se amplamente populares entre os adeptos da “contracozinha”, tanto pelo seu aspecto espiritual, ético e funcional como pela simpatia e solidariedade aos vietnamitas, dentro do contexto da Guerra do Vietnã, no qual a contracultura estava inserida.
Algumas pessoas hoje em dia podem até ter dificuldade em achar algo de revolucionário no hábito de comer arroz integral e cenouras cruas colhidas da própria horta, mas a mudança da dieta alimentar é uma transformação substancial.
Alterar os padrões alimentares exige um grande comprometimento pessoal, uma vez que constituem hábitos que nos são passados e construídos desde o nascimento. E, mesmo em uma cultura em que moda e comportamentos são efêmeros, os hábitos alimentares ainda mudam de forma lenta, inclusive no atual momento de revisão das nossas práticas em prol de atitudes mais alinhadas com a sustentabilidade.
*Pesquisadora do GVces no programa Inovação na Criação de Valor
[:en]Como a alimentação orgânica e vegetariana, acompanhada do movimento ecológico, expressou sua posição política contra o sistema vigente
A comida é uma metáfora daquilo que nós gostamos ou não na sociedade, na visão de Warren James Belasco, professor de Estudos Americanos da Universidade de Maryland. Na história da civilização ocidental, os conflitos envolvendo comida e hábitos alimentares sempre têm uma fundamentação política. A redescoberta dos alimentos orgânicos e do vegetarianismo, acompanhada do movimento ecológico nas décadas de 1960 e 1970, é fruto da reação à violação dos direitos humanos e agressivas transformações no meio ambiente.
Os meios universitários dos Estados Unidos foram palco de disseminação da contracultura, semeada pioneiramente com os Diggers. Inspirados no movimento agrário de trabalhadores rurais ingleses (escavadores) do século XVII, os Diggers surgiram em meados de 1960, em San Francisco, combinando duas frentes que floresciam na cidade: a cena artística teatral, do meio boêmio e underground, com o movimento New Left [1] (Nova Esquerda) de paz e direitos civis. Por meio do teatro de rua e de boicotes a restaurantes e a produtos industrializados, distribuindo e produzindo sua própria comida, os Diggers posicionaram o alimento no centro do ativismo dos anos 1960, baseados na emergência da consciência ecológica.
[1] Termo usado em especial no Reino Unido e EUA para designar um ativismo de esquerda mais amplo, diferenciando-se do ativismo pautado somente pelo marxismo e a causa trabalhista
Em abril de 1969, seguindo os mesmos princípios de evolução harmoniosa defendidos pelos Diggers, estudantes universitários e moradores de Berkeley criaram o People’s Park (Parque do Povo), a partir da ocupação de um terreno baldio pertencente à Universidade da Califórnia. A área passou a ser utilizada publicamente por moradores, que nela fizeram uma horta e um jardim. O People’s Park, apesar de ter sucumbido à repressão da política opressiva do então governador da Califórnia Ronald Reagan, também deixou importantes contribuições para o movimento da contracultura: o resgate da ecologia.
Essa palavra deixou de apenas denominar um ramo de estudo da Biologia, passando a representar também a conscientização sobre a conservação da natureza e o resgate das práticas de cultivo orgânicas. Tudo isso motivado pelo contexto de crise ambiental em que se condenava o uso do pesticida DDT e os derramamentos de petróleo.
A ecologia saiu das prateleiras e estantes nas bibliotecas das universidades para ser amplamente difundida no discurso dos alternativos, ativistas e radicais, sobre vida, morte e sobrevivência. Assim, o ambientalismo emergiu da New Left como principal veículo de esperança e afronta. Os ecologistas defendiam um retorno às práticas alimentares e de cultivo tradicionais, e começaram a praticar um ativismo por meio da transformação voluntária e individual. Ao incorporar um estilo de vida mais simples e natural, essas pessoas acreditavam no poder de subverter a economia vigente e a cultura de consumismo desenfreado.
A preocupação com alimentos de origem animal também se inseria na transformação dos hábitos alimentares. A refeição americana tem como peça central a carne animal e o seu consumo aumentou muito após a Segunda Guerra Mundial, com a mecanização da agricultura. O excedente de grãos quimicamente cultivados passou a alimentar o gado, que então crescia em regime de confinamento, economicamente mais favorável ao pecuarista. Foi esse novo modus operandi que propiciou o surgimento de cadeias de restaurantes fast-food ancoradas no hambúrguer. A disponibilidade de carne barata era, e continua sendo, um componente central na ideologia americana de abundância.
Assim, o questionamento e a reprovação do consumo de alimentos de origem animal foram sustentados não só pela questão ética dos direitos dos animais e a ecológica dos impactos ambientais da produção, mas também pela posição política contrária ao culto à abundância e ao consumismo em massa. Tanto é que dietas orientais taoistas e macrobióticas, por exemplo, tornaram-se amplamente populares entre os adeptos da “contracozinha”, tanto pelo seu aspecto espiritual, ético e funcional como pela simpatia e solidariedade aos vietnamitas, dentro do contexto da Guerra do Vietnã, no qual a contracultura estava inserida.
Algumas pessoas hoje em dia podem até ter dificuldade em achar algo de revolucionário no hábito de comer arroz integral e cenouras cruas colhidas da própria horta, mas a mudança da dieta alimentar é uma transformação substancial.
Alterar os padrões alimentares exige um grande comprometimento pessoal, uma vez que constituem hábitos que nos são passados e construídos desde o nascimento. E, mesmo em uma cultura em que moda e comportamentos são efêmeros, os hábitos alimentares ainda mudam de forma lenta, inclusive no atual momento de revisão das nossas práticas em prol de atitudes mais alinhadas com a sustentabilidade.
*Pesquisadora do GVces no programa Inovação na Criação de Valor