Cada vez mais incluídas na sociedade de consumo, as comunidades da periferia concentram urgentes problemas socioambientais. Ainda assim, permanecem desfocadas da agenda hegemônica
Ao meio-dia, um sol escaldante arde sobre a Favela Asa Branca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, atingindo em cheio as lajes das casas de alvenaria e as ruas cimentadas. Não há árvores ali, e a pavimentação, feita há menos de um ano, foi a primeira intervenção relevante do poder público na área desde 1986, quando nasceu a comunidade hoje de 3,5 mil pessoas no bairro de Curicica, ao lado de Jacarepaguá.
A tranquilidade das vielas áridas, onde só algumas crianças tomam banho de mangueira, contrasta com a agitação que se vê na entrada principal da favela, na Avenida Salvador Allende. Ali, diante da padaria e da loja de acessórios para motos, há algumas vans estacionadas repletas de passageiros, que aguardam a partida, cobertos de suor. É o principal meio de transporte local – citado pelos moradores como um dos aspectos positivos da comunidade, apesar das escassas linhas de ônibus que cruzam a avenida esburacada.
“O lugar aqui é muito bom. Tem muitas vans e não tem traficante, nem violência”, diz João Araújo, o Ceará, proprietário de um dos vários bares da favela, onde mora há cinco anos. Muitos dos estabelecimentos possuem ligações elétricas irregulares. Mas aceitam-se cartões de crédito. Água não é problema na favela, mas a rede de esgoto, construída pelos moradores em sistema de mutirão, é precária e insuficiente.
A Favela Asa Branca está incluída no Programa Morar Carioca, da prefeitura do Rio de Janeiro, que promete urbanizar as favelas da cidade até 2020. Mas as obras ainda não começaram no local. Leia mais aqui.
Embora não esperem nada do poder público, estão satisfeitos com um maior acesso ao consumo nos últimos anos, e consideram que melhoraram de vida. “Graças a Deus, consegui abrir meu bar. Nunca mais quero ter patrão”, observa Ceará, que trabalhava como copeiro.
Assim como o governo, o Terceiro Setor também parece estar ausente. Nem o dono do bar nem seus fregueses conhecem qualquer projeto voltado para gestão do lixo, abastecimento de água, saneamento, moradia sustentável, plantio de árvores, controle da poluição ou recuperação ambiental… “Sustentabilidade? Sei não. Nunca ouvi falar”, diz Ceará. Os outros três moradores também sacodem a cabeça, negativamente.
LIXO E LUXO
O bar do Ceará fica no extremo mais degradado da Asa Branca, em frente ao canal da Pavuninha, que desemboca na Lagoa de Jacarepaguá. Contaminado, assoreado e exalando um odor fétido, o canal está cheio de lixo de todo tipo: latas, lâmpadas, sofás, e até mesmo carcaças de veículos. Nesse ponto, o canal tem 5 ou 6 metros de largura, mas não se vê a água, coberta por uma impressionante montanha de garrafas pet e sacos plásticos. Um cavalo pasta no matagal das margens e dois cães rasgam alguns dos inúmeros sacos de lixo ali esquecidos. Ceará garante que o lixo é coletado três vezes por semana. “Mas ninguém separa, não, vai tudo junto”, conta.
Atrás da favela, no lado sul, podem-se ver algumas dezenas de torres residenciais novas em folha. São só uma parte dos mais de 140 condomínios erguidos no local, na onda de especulação imobiliária deflagrada pela construção do Parque Olímpico[1], que ficará a poucos metros dali, junto da lagoa. Do outro lado da comunidade, é tocada a obra do BRT TransOlímpica, corredor expresso para ônibus que cortará várias das favelas de Curicica e forçará a remoção da vizinha Vila Autódromo.
[1]Conheça a localização e mais detalhes sobre o Parque Olímpico.
“Há um ano, se você chegasse aqui, não ia ver nada disso, só a favela e mato”, diz Maria da Penha, a esposa de Ceará, que veste o uniforme impecável do hotel de luxo inaugurado em outubro de 2012 a 300 metros da favela. Maria acaba de chegar do serviço, que teve início às 3 horas da manhã. “O bom para nós é que tem muito trabalho. O problema é que está ficando caro”, afirma, referindo-se ao processo que transformou o bairro em um imenso canteiro de obras. Na favela, o aluguel de um quitinete passa de R$ 500 reais e a concorrência é alta.
Em geral, os problemas presentes na comunidade Asa Branca se repetem não apenas nas favelas do País – onde vivem mais de 11,5 milhões de pessoas[2] –, mas também nos bairros em que se concentram as classes C, D e E das grandes cidades. Porém, essas áreas, justamente as mais afetadas por problemas socioambientais, parecem ainda ocupar lugar marginal na agenda hegemônica de sustentabilidade[3].
[2]Segundo o IBGE, na publicação Aglomerados subnormais, baseada no Censo 2010
[3]Agenda normalmente centrada em florestas, energia, mudança climática e temáticas que relacionam conservação e comunidades tradicionais, como povos indígenas, quilombolas e extrativistas
SEM APELO
Uma das razões para isso, além da falta de tradição dos atores mais influentes do campo socioambiental em atuar na periferia urbana, é a dificuldade de obter recursos, de acordo com a secretária executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA), Adriana Ramos. Segundo ela, os financiadores preferem investir em temas mais palatáveis ao público, como a recuperação de florestas e conservação da biodiversidade.
Um exemplo dessa dificuldade foi a tentativa frustrada do próprio ISA de manter sua primeira iniciativa em meio urbano: um programa para recuperação de mananciais em comunidades situadas na Represa do Guarapiranga, na Zona Sul da capital paulista. Adriana conta que o programa, iniciado em 2002, foi interrompido em 2009 por falta de dinheiro.
Um motivo para a dificuldade é o perfil dos financiadores tradicionais do ISA, voltado sobretudo para a questão florestal. “Além disso, naquela época, o investimento social privado no Brasil estava associado mais a ações de marketing que de responsabilidade social”, explica Adriana.
O programa, por exemplo, contemplou um diagnóstico socioambiental participativo da Bacia do Rio Guarapiranga – segundo maior manancial da Grande São Paulo –, envolvendo a mobilização popular[4]. “O problema é que o programa atuava em áreas de ocupação, onde há conflitos de terra. Essa agenda é muito sensível e vista de forma negativa. Os financiadores não queriam se associar a ela”, diz.
[4]Informações sobre o diagnóstico disponíveis aqui
A partir disso, o ISA não tentou mais criar novos programas em regiões urbanas. Adriana explica que as dificuldades para viabilizar projetos são imensas quando o tema da sustentabilidade é combinado aos problemas da exclusão social e habitacional. “O próprio tema da sustentabilidade já é marginal na pauta nacional. As empresas se interessam, desde que não afete o lucro. Quando esse tema periférico é combinado com um espaço urbano também marginal, simplesmente ninguém quer saber”, afirma.
De acordo com a dirigente da entidade, a fragmentação temática precisa ser superada. “Temos financiadores para programas florestais em comunidades indígenas, mas não para projetos de gestão de resíduos sólidos nessa comunidade – que é um problema sério. É preciso integrar a agenda”, declara.
A pouca penetração das políticas de sustentabilidade nas periferias, então, poderia ser atribuída à dificuldade do Terceiro Setor de integrar as abordagens socioambientais e obter financiamento e à falta de interesse do empresariado em temas conflitivos ligados à população de baixa renda. “O setor público, que poderia cumprir um papel articulador, tende a pautar suas políticas pelos interesses privados”, completa Adriana.
ADAPTAR É PRECISO
Nesse contexto, quem acaba levando a fama de vilão da sustentabilidade é a população que vive nas periferias urbanas, por ter cada vez mais afluência ao consumo, sem ter acesso à educação ambiental. Nada poderia ser mais injusto, na opinião de profissionais e ativistas de organizações que atuam nessas comunidades, como Elisabeth Grimberg, coordenadora executiva do Instituto Pólis[5].
[5]Tradicional ONG da cidade de São Paulo, com trabalhos nas áreas de democracia e participação, cidadania cultural, inclusão e sustentabilidade e reforma urbana. Acesse o site polis.org.br
Especialista na gestão de resíduos sólidos, Elisabeth afirma que a população de baixa renda é muito aberta à questão ambiental. “Não vejo diferença significativa entre as atitudes das pessoas em comunidades de baixa renda ou em partes ricas da cidade. Quando têm um mínimo de informação, as pessoas se sensibilizam facilmente. A diferença é a infraestrutura e as políticas de gestão de resíduos”, avalia a coordenadora.
Cenários como o da Favela Asa Branca, com resíduos se acumulando aos montes, provavelmente se devem mais à falta de equipamento adequado que à suposta “falta de cultura” ou educação ambiental da população. “Para tudo há solução. Mas é preciso instalar equipamento adequado, dialogando com a população. Isso não é tão complexo. Se a solução for participativa, as pessoas vão aderir”, afirma Elisabeth. Para ela, o elemento participativo é essencial para que os projetos funcionem de fato. O design das lixeiras, por exemplo, precisa ser adaptado à realidade de cada comunidade.
“Se o problema persiste mesmo com equipamento e coleta regular, aí, sim, o que falta é orientação. Mas isso vale para as áreas ricas também. Não se pode acusar a população de ser mal-educada se o local não tem a estrutura necessária. Essa imagem é puro preconceito”, diz.
MUDANÇA DE CULTURA
Historicamente, a agenda da maior parte das grandes ONGs da área socioambiental concentra-se nas questões florestal, indígena e quilombola, em detrimento dos problemas do meio ambiente urbano. Mas esse cenário de divisão temática radical já começa a mudar, em que pesem as adversidades financeiras.
A SOS Mata Atlântica ilustra essa tendência: embora originalmente voltada para a questão florestal, a ONG passou a também atuar em projetos urbanos relevantes, em especial nos últimos cinco anos.
“O objetivo é estimular, nas cidades com Mata Atlântica em seus limites, a percepção de que os problemas da floresta impactam a cidade e vice-versa”, diz Romilda Roncatti, coordenadora da área de Projetos Urbanos da SOS Mata Atlântica. Ela observa que o ingresso mais intenso da SOS na agenda marrom (que lida com assuntos das cidades) nos últimos anos ocorre sob um contexto de maior percepção das grandes ONGs ambientalistas de que a problemática da periferia urbana é indissociável da agenda da sustentabilidade.
A estratégia para isso é trazer os temas da sustentabilidade para o cotidiano dos moradores, mostrando na prática de onde vem a água que bebem, como a floresta regula o clima, como o desmatamento gera desastres urbanos e como o lixo jogado nos córregos vai ocasionar doenças e inundações, por exemplo.
Um dos projetos consiste em um caminhão itinerante que mostra aos moradores maquetes e modelos que apresentam de forma lúdica e intuitiva o funcionamento dos ecossistemas. “O Projeto Urbano já foi levado a 130 cidades do Brasil, com participação de mais de 700 mil pessoas. Desde agosto do ano passado, começou a ser realizado também na periferia de São Paulo, onde foi apresentado em 10 localidades, chegando a 7,4 mil pessoas”, conta Romilda. A partir do segundo semestre de 2014, o projeto adotará um modelo participativo. “Além das atividades de educação ambiental, queremos conversar com a população. Sabemos que cada comunidade pode ter necessidades diferentes e vamos nos adaptar”, diz.
ADESÃO EXEMPLAR
Outro projeto da SOS Mata Atlântica no meio urbano é o “Observando o Tietê”, que formou grupos populares de monitoramento da qualidade da água nas periferias dos 39 municípios da Grande São Paulo. Segundo Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da SOS, apesar de toda a carência financeira, os moradores desprovidos de acesso a saneamento básico ou programas habitacionais são justamente os mais abertos às mudanças culturais e comportamentais. “Quando tentamos atuar em condomínios de classes A e B nessas áreas, as pessoas nem querem nos atender”, diz. O mesmo ocorre nas campanhas de economia de água. “Quem sofre com a escassez é muito mais sensível e, em consequência, muito mais participativo”, afirma.
Um exemplo de sucesso dessa participação é o programa “Se Liga na Rede”, que o governo paulista criou graças a uma mobilização social apoiada pela SOS Mata Atlântica. A iniciativa permite financiar obras internas nas casas de famílias com renda até três salários mínimos, a fim de conectar o esgoto doméstico à rede coletora. “Essas pessoas não queriam continuar jogando o esgoto no córrego, mas não tinham recursos. Com a participação ativa delas, conseguimos sensibilizar o governo”, explica Malu.
Projeto Imargem: participação e arte
A necessidade de processos participativos nos diagnósticos e nas políticas socioambientais na periferia é praticamente uma unanimidade entre os especialistas e entre as ONGs da área de sustentabilidade. No entanto, conseguir essa participação nem sempre é algo trivial. A população, como se viu, acolhe orientações práticas sobre como lidar com determinados problemas ambientais, mas dificilmente adere aos programas que demandam participação mais intensa.Algumas iniciativas, como o Projeto Imargem, tentam desenvolver metodologias de ação capazes de contornar esse obstáculo. Iniciado em 2006, contempla uma intervenção multidisciplinar que alia arte e educação ambiental em comunidades da região do Grajaú, na Zona Sul da capital paulista.
Em conjunto com as pessoas das comunidades, as atividades buscam desenvolver maneiras de usar os resíduos sólidos como fonte de geração de renda. As próprias lixeiras, por exemplo, podem ser obras de arte produzidas com material reciclado. “Um dos principais recursos para atrair a participação das pessoas é a utilização de uma estética com a qual a cultura local tem identificação. Além de conseguir a adesão das pessoas, ajudamos a superar o estigma da estética marginal”, explica o coordenador do Imargem, Mauro Neri.
“Não é tão simples fazer o pessoal participar. Falar de arte e sustentabilidade para pessoas com necessidades tão básicas é sempre um desafio. Além disso, temos de competir com uma cultura de consumo de massas muito enraizada. Mas nós insistimos e temos conseguido resultados gratificantes”, afirma Neri.
[:en]Cada vez mais incluídas na sociedade de consumo, as comunidades da periferia concentram urgentes problemas socioambientais. Ainda assim, permanecem desfocadas da agenda hegemônica
Ao meio-dia, um sol escaldante arde sobre a Favela Asa Branca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, atingindo em cheio as lajes das casas de alvenaria e as ruas cimentadas. Não há árvores ali, e a pavimentação, feita há menos de um ano, foi a primeira intervenção relevante do poder público na área desde 1986, quando nasceu a comunidade hoje de 3,5 mil pessoas no bairro de Curicica, ao lado de Jacarepaguá.
A tranquilidade das vielas áridas, onde só algumas crianças tomam banho de mangueira, contrasta com a agitação que se vê na entrada principal da favela, na Avenida Salvador Allende. Ali, diante da padaria e da loja de acessórios para motos, há algumas vans estacionadas repletas de passageiros, que aguardam a partida, cobertos de suor. É o principal meio de transporte local – citado pelos moradores como um dos aspectos positivos da comunidade, apesar das escassas linhas de ônibus que cruzam a avenida esburacada.
“O lugar aqui é muito bom. Tem muitas vans e não tem traficante, nem violência”, diz João Araújo, o Ceará, proprietário de um dos vários bares da favela, onde mora há cinco anos. Muitos dos estabelecimentos possuem ligações elétricas irregulares. Mas aceitam-se cartões de crédito. Água não é problema na favela, mas a rede de esgoto, construída pelos moradores em sistema de mutirão, é precária e insuficiente.
A Favela Asa Branca está incluída no Programa Morar Carioca, da prefeitura do Rio de Janeiro, que promete urbanizar as favelas da cidade até 2020. Mas as obras ainda não começaram no local. Leia mais aqui.
Embora não esperem nada do poder público, estão satisfeitos com um maior acesso ao consumo nos últimos anos, e consideram que melhoraram de vida. “Graças a Deus, consegui abrir meu bar. Nunca mais quero ter patrão”, observa Ceará, que trabalhava como copeiro.
Assim como o governo, o Terceiro Setor também parece estar ausente. Nem o dono do bar nem seus fregueses conhecem qualquer projeto voltado para gestão do lixo, abastecimento de água, saneamento, moradia sustentável, plantio de árvores, controle da poluição ou recuperação ambiental… “Sustentabilidade? Sei não. Nunca ouvi falar”, diz Ceará. Os outros três moradores também sacodem a cabeça, negativamente.
LIXO E LUXO
O bar do Ceará fica no extremo mais degradado da Asa Branca, em frente ao canal da Pavuninha, que desemboca na Lagoa de Jacarepaguá. Contaminado, assoreado e exalando um odor fétido, o canal está cheio de lixo de todo tipo: latas, lâmpadas, sofás, e até mesmo carcaças de veículos. Nesse ponto, o canal tem 5 ou 6 metros de largura, mas não se vê a água, coberta por uma impressionante montanha de garrafas pet e sacos plásticos. Um cavalo pasta no matagal das margens e dois cães rasgam alguns dos inúmeros sacos de lixo ali esquecidos. Ceará garante que o lixo é coletado três vezes por semana. “Mas ninguém separa, não, vai tudo junto”, conta.
Atrás da favela, no lado sul, podem-se ver algumas dezenas de torres residenciais novas em folha. São só uma parte dos mais de 140 condomínios erguidos no local, na onda de especulação imobiliária deflagrada pela construção do Parque Olímpico[1], que ficará a poucos metros dali, junto da lagoa. Do outro lado da comunidade, é tocada a obra do BRT TransOlímpica, corredor expresso para ônibus que cortará várias das favelas de Curicica e forçará a remoção da vizinha Vila Autódromo.
[1]Conheça a localização e mais detalhes sobre o Parque Olímpico.
“Há um ano, se você chegasse aqui, não ia ver nada disso, só a favela e mato”, diz Maria da Penha, a esposa de Ceará, que veste o uniforme impecável do hotel de luxo inaugurado em outubro de 2012 a 300 metros da favela. Maria acaba de chegar do serviço, que teve início às 3 horas da manhã. “O bom para nós é que tem muito trabalho. O problema é que está ficando caro”, afirma, referindo-se ao processo que transformou o bairro em um imenso canteiro de obras. Na favela, o aluguel de um quitinete passa de R$ 500 reais e a concorrência é alta.
Em geral, os problemas presentes na comunidade Asa Branca se repetem não apenas nas favelas do País – onde vivem mais de 11,5 milhões de pessoas[2] –, mas também nos bairros em que se concentram as classes C, D e E das grandes cidades. Porém, essas áreas, justamente as mais afetadas por problemas socioambientais, parecem ainda ocupar lugar marginal na agenda hegemônica de sustentabilidade[3].
[2]Segundo o IBGE, na publicação Aglomerados subnormais, baseada no Censo 2010
[3]Agenda normalmente centrada em florestas, energia, mudança climática e temáticas que relacionam conservação e comunidades tradicionais, como povos indígenas, quilombolas e extrativistas
SEM APELO
Uma das razões para isso, além da falta de tradição dos atores mais influentes do campo socioambiental em atuar na periferia urbana, é a dificuldade de obter recursos, de acordo com a secretária executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA), Adriana Ramos. Segundo ela, os financiadores preferem investir em temas mais palatáveis ao público, como a recuperação de florestas e conservação da biodiversidade.
Um exemplo dessa dificuldade foi a tentativa frustrada do próprio ISA de manter sua primeira iniciativa em meio urbano: um programa para recuperação de mananciais em comunidades situadas na Represa do Guarapiranga, na Zona Sul da capital paulista. Adriana conta que o programa, iniciado em 2002, foi interrompido em 2009 por falta de dinheiro.
Um motivo para a dificuldade é o perfil dos financiadores tradicionais do ISA, voltado sobretudo para a questão florestal. “Além disso, naquela época, o investimento social privado no Brasil estava associado mais a ações de marketing que de responsabilidade social”, explica Adriana.
O programa, por exemplo, contemplou um diagnóstico socioambiental participativo da Bacia do Rio Guarapiranga – segundo maior manancial da Grande São Paulo –, envolvendo a mobilização popular[4]. “O problema é que o programa atuava em áreas de ocupação, onde há conflitos de terra. Essa agenda é muito sensível e vista de forma negativa. Os financiadores não queriam se associar a ela”, diz.
[4]Informações sobre o diagnóstico disponíveis aqui
A partir disso, o ISA não tentou mais criar novos programas em regiões urbanas. Adriana explica que as dificuldades para viabilizar projetos são imensas quando o tema da sustentabilidade é combinado aos problemas da exclusão social e habitacional. “O próprio tema da sustentabilidade já é marginal na pauta nacional. As empresas se interessam, desde que não afete o lucro. Quando esse tema periférico é combinado com um espaço urbano também marginal, simplesmente ninguém quer saber”, afirma.
De acordo com a dirigente da entidade, a fragmentação temática precisa ser superada. “Temos financiadores para programas florestais em comunidades indígenas, mas não para projetos de gestão de resíduos sólidos nessa comunidade – que é um problema sério. É preciso integrar a agenda”, declara.
A pouca penetração das políticas de sustentabilidade nas periferias, então, poderia ser atribuída à dificuldade do Terceiro Setor de integrar as abordagens socioambientais e obter financiamento e à falta de interesse do empresariado em temas conflitivos ligados à população de baixa renda. “O setor público, que poderia cumprir um papel articulador, tende a pautar suas políticas pelos interesses privados”, completa Adriana.
ADAPTAR É PRECISO
Nesse contexto, quem acaba levando a fama de vilão da sustentabilidade é a população que vive nas periferias urbanas, por ter cada vez mais afluência ao consumo, sem ter acesso à educação ambiental. Nada poderia ser mais injusto, na opinião de profissionais e ativistas de organizações que atuam nessas comunidades, como Elisabeth Grimberg, coordenadora executiva do Instituto Pólis[5].
[5]Tradicional ONG da cidade de São Paulo, com trabalhos nas áreas de democracia e participação, cidadania cultural, inclusão e sustentabilidade e reforma urbana. Acesse o site polis.org.br
Especialista na gestão de resíduos sólidos, Elisabeth afirma que a população de baixa renda é muito aberta à questão ambiental. “Não vejo diferença significativa entre as atitudes das pessoas em comunidades de baixa renda ou em partes ricas da cidade. Quando têm um mínimo de informação, as pessoas se sensibilizam facilmente. A diferença é a infraestrutura e as políticas de gestão de resíduos”, avalia a coordenadora.
Cenários como o da Favela Asa Branca, com resíduos se acumulando aos montes, provavelmente se devem mais à falta de equipamento adequado que à suposta “falta de cultura” ou educação ambiental da população. “Para tudo há solução. Mas é preciso instalar equipamento adequado, dialogando com a população. Isso não é tão complexo. Se a solução for participativa, as pessoas vão aderir”, afirma Elisabeth. Para ela, o elemento participativo é essencial para que os projetos funcionem de fato. O design das lixeiras, por exemplo, precisa ser adaptado à realidade de cada comunidade.
“Se o problema persiste mesmo com equipamento e coleta regular, aí, sim, o que falta é orientação. Mas isso vale para as áreas ricas também. Não se pode acusar a população de ser mal-educada se o local não tem a estrutura necessária. Essa imagem é puro preconceito”, diz.
MUDANÇA DE CULTURA
Historicamente, a agenda da maior parte das grandes ONGs da área socioambiental concentra-se nas questões florestal, indígena e quilombola, em detrimento dos problemas do meio ambiente urbano. Mas esse cenário de divisão temática radical já começa a mudar, em que pesem as adversidades financeiras.
A SOS Mata Atlântica ilustra essa tendência: embora originalmente voltada para a questão florestal, a ONG passou a também atuar em projetos urbanos relevantes, em especial nos últimos cinco anos.
“O objetivo é estimular, nas cidades com Mata Atlântica em seus limites, a percepção de que os problemas da floresta impactam a cidade e vice-versa”, diz Romilda Roncatti, coordenadora da área de Projetos Urbanos da SOS Mata Atlântica. Ela observa que o ingresso mais intenso da SOS na agenda marrom (que lida com assuntos das cidades) nos últimos anos ocorre sob um contexto de maior percepção das grandes ONGs ambientalistas de que a problemática da periferia urbana é indissociável da agenda da sustentabilidade.
A estratégia para isso é trazer os temas da sustentabilidade para o cotidiano dos moradores, mostrando na prática de onde vem a água que bebem, como a floresta regula o clima, como o desmatamento gera desastres urbanos e como o lixo jogado nos córregos vai ocasionar doenças e inundações, por exemplo.
Um dos projetos consiste em um caminhão itinerante que mostra aos moradores maquetes e modelos que apresentam de forma lúdica e intuitiva o funcionamento dos ecossistemas. “O Projeto Urbano já foi levado a 130 cidades do Brasil, com participação de mais de 700 mil pessoas. Desde agosto do ano passado, começou a ser realizado também na periferia de São Paulo, onde foi apresentado em 10 localidades, chegando a 7,4 mil pessoas”, conta Romilda. A partir do segundo semestre de 2014, o projeto adotará um modelo participativo. “Além das atividades de educação ambiental, queremos conversar com a população. Sabemos que cada comunidade pode ter necessidades diferentes e vamos nos adaptar”, diz.
ADESÃO EXEMPLAR
Outro projeto da SOS Mata Atlântica no meio urbano é o “Observando o Tietê”, que formou grupos populares de monitoramento da qualidade da água nas periferias dos 39 municípios da Grande São Paulo. Segundo Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da SOS, apesar de toda a carência financeira, os moradores desprovidos de acesso a saneamento básico ou programas habitacionais são justamente os mais abertos às mudanças culturais e comportamentais. “Quando tentamos atuar em condomínios de classes A e B nessas áreas, as pessoas nem querem nos atender”, diz. O mesmo ocorre nas campanhas de economia de água. “Quem sofre com a escassez é muito mais sensível e, em consequência, muito mais participativo”, afirma.
Um exemplo de sucesso dessa participação é o programa “Se Liga na Rede”, que o governo paulista criou graças a uma mobilização social apoiada pela SOS Mata Atlântica. A iniciativa permite financiar obras internas nas casas de famílias com renda até três salários mínimos, a fim de conectar o esgoto doméstico à rede coletora. “Essas pessoas não queriam continuar jogando o esgoto no córrego, mas não tinham recursos. Com a participação ativa delas, conseguimos sensibilizar o governo”, explica Malu.
Projeto Imargem: participação e arte
A necessidade de processos participativos nos diagnósticos e nas políticas socioambientais na periferia é praticamente uma unanimidade entre os especialistas e entre as ONGs da área de sustentabilidade. No entanto, conseguir essa participação nem sempre é algo trivial. A população, como se viu, acolhe orientações práticas sobre como lidar com determinados problemas ambientais, mas dificilmente adere aos programas que demandam participação mais intensa.Algumas iniciativas, como o Projeto Imargem, tentam desenvolver metodologias de ação capazes de contornar esse obstáculo. Iniciado em 2006, contempla uma intervenção multidisciplinar que alia arte e educação ambiental em comunidades da região do Grajaú, na Zona Sul da capital paulista.
Em conjunto com as pessoas das comunidades, as atividades buscam desenvolver maneiras de usar os resíduos sólidos como fonte de geração de renda. As próprias lixeiras, por exemplo, podem ser obras de arte produzidas com material reciclado. “Um dos principais recursos para atrair a participação das pessoas é a utilização de uma estética com a qual a cultura local tem identificação. Além de conseguir a adesão das pessoas, ajudamos a superar o estigma da estética marginal”, explica o coordenador do Imargem, Mauro Neri.
“Não é tão simples fazer o pessoal participar. Falar de arte e sustentabilidade para pessoas com necessidades tão básicas é sempre um desafio. Além disso, temos de competir com uma cultura de consumo de massas muito enraizada. Mas nós insistimos e temos conseguido resultados gratificantes”, afirma Neri.