A política esteve na origem dos conceitos e práticas da educação. Mas o afastamento das duas noções indica que algo mudou de lugar – seja em uma, seja em outra
Parece até um paradoxo falar em educação política, quando justamente foi de olho na política que se desenvolveram as primeiras ideias sistemáticas de educação. Crer que os jovens devam ser educados surgiu como contraste com outras formas de preparar para a vida adulta: o treinamento, o aprendizado e, sob certos aspectos, o adestramento. Desde Isócrates e Protágoras, a perspectiva de participar da política e de conduzi-la esteve na origem do conceito e das práticas de educação, a tal ponto que uma expressão como “educação política” poderia ter sido um pleonasmo.
Mas, ao fim e ao cabo, essas duas noções estão tão afastadas na nossa mentalidade que o próprio afastamento pode ser tomado como um sintoma de que algo mudou de lugar, seja na política, seja na educação. Hoje, se falamos em educação, no mais das vezes pensamos nas penosas etapas que levam ao diploma e, do diploma, ao trabalho. Educar-se é estar atento à empregabilidade. O que o mercado espera de um bom profissional desta ou daquela área? Pois é isso que vou estudar. Usamos o termo “educação” para designar algo que outrora mereceria o nome de treinamento ou aprendizado.
Hannah Arendt, em A Crise da Educação, um ensaio de 1954, debate o que na época se percebia como queda na qualidade da educação nos EUA. ela estabelece que o problema não é saber “por que Joãozinho ainda não sabe ler”, mas como a educação prepara a próxima geração para entrar em um mundo de adultos. Ao dizer que a política não deveria orientar a educação, mas ser uma arena daqueles que foram educados, a filósofa se atraca com uma série de utopias políticas estreitamente ligadas à pedagogia, que acreditavam poder melhorar o mundo simplesmente melhorando a formação das crianças. essa ilusão, ela diz, é o melhor caminho para a doutrinação.
O ponto de Arendt está em entender que alguém é educado para poder fazer a política, e não para que a política se faça nela. Isso faz toda a diferença. Tomar o tempo de formar um menino na pólis, ensinando-lhe retórica, lógica, geometria, só valeria a pena se tivesse um propósito mais ambicioso do que preparar para o trabalho ou transmitir a tradição.
A função do pedagogo e do sofista era formar aqueles que, na ágora de Atenas e suas congêneres, debateriam e determinariam os rumos da cidade, do coletivo. Daí surge a noção de paideia, que até hoje dá nome a escolas mundo afora e virou título da obra-prima do filólogo alemão Werner Jaeger.
Nessa lógica, educar é formar, ou seja, produzir um cidadão, um membro da comunidade política, capaz de atuar na definição dos rumos da sociedade. A paideia formava não mais que as altas classes, os proprietários, únicos de quem se esperava que fizessem política. Aos demais, treinamento, adestramento, aprendizado. o mesmo vale para o ensino do trivium e do quadrivium, as artes liberais da Idade Média e do Renascimento. Quem passava por essa experiência não era artesão ou camponês.
Assim, não é por acaso que o processo de generalização de ideais democráticos foi simultâneo aos esforços para universalizar a educação, sem falar nas inúmeras utopias pedagógicas criticadas por Arendt. Se a democracia é o regime em que todos têm voz, então todos devem estar preparados para se pronunciar. Para tanto, é preciso estar a par dos assuntos mais determinantes para os destinos da comunidade. Isso exige educação, ou melhor: formação, no sentido que o linguista alemão Wilhelm von Humboldt atribuía ao termo Bildung, que combinava “ciência objetiva e formação subjetiva”.
O MERCADO ENTRA EM CENA
Claro que um terceiro elemento também atuou na universalização da educação: o avanço acelerado dos processos produtivos, que exigiam e continuam exigindo trabalhadores cada vez mais qualificados. A ideia corrente de que a educação é uma etapa preparatória para o mercado de trabalho pode ser explicada em termos humboldtianos como separação entre a “ciência objetiva” e a “formação subjetiva”, mas excluindo essa segunda categoria.
Por outro lado, também se pode lançar um convite à reflexão com uma hipótese bem diferente. O desejo de quem se dedica anos a fio à educação para atuar no mercado de trabalho tem algo em comum com o ideal da formação que dá subsídios à atuação política.
Trata-se de uma modalidade de abertura para a esfera do comum e da interação; um arremedo, que seja, da vida pública. isso leva a crer que o modo de participação no coletivo, hoje, não vai muito além do mercado em si.
Com isso, seríamos levados a crer que a atuação no mercado tomou por completo o lugar da atuação política. Se for assim, não deveria surpreender a dificuldade em educar, ou formar, para a participação pública.
*Jornalista, doutorando no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da FFLCH/USP (Diversitas). Professor convidado na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo[:en]A política esteve na origem dos conceitos e práticas da educação. Mas o afastamento das duas noções indica que algo mudou de lugar – seja em uma, seja em outra
Parece até um paradoxo falar em educação política, quando justamente foi de olho na política que se desenvolveram as primeiras ideias sistemáticas de educação. Crer que os jovens devam ser educados surgiu como contraste com outras formas de preparar para a vida adulta: o treinamento, o aprendizado e, sob certos aspectos, o adestramento. Desde Isócrates e Protágoras, a perspectiva de participar da política e de conduzi-la esteve na origem do conceito e das práticas de educação, a tal ponto que uma expressão como “educação política” poderia ter sido um pleonasmo.
Mas, ao fim e ao cabo, essas duas noções estão tão afastadas na nossa mentalidade que o próprio afastamento pode ser tomado como um sintoma de que algo mudou de lugar, seja na política, seja na educação. Hoje, se falamos em educação, no mais das vezes pensamos nas penosas etapas que levam ao diploma e, do diploma, ao trabalho. Educar-se é estar atento à empregabilidade. O que o mercado espera de um bom profissional desta ou daquela área? Pois é isso que vou estudar. Usamos o termo “educação” para designar algo que outrora mereceria o nome de treinamento ou aprendizado.
Hannah Arendt, em A Crise da Educação, um ensaio de 1954, debate o que na época se percebia como queda na qualidade da educação nos EUA. ela estabelece que o problema não é saber “por que Joãozinho ainda não sabe ler”, mas como a educação prepara a próxima geração para entrar em um mundo de adultos. Ao dizer que a política não deveria orientar a educação, mas ser uma arena daqueles que foram educados, a filósofa se atraca com uma série de utopias políticas estreitamente ligadas à pedagogia, que acreditavam poder melhorar o mundo simplesmente melhorando a formação das crianças. essa ilusão, ela diz, é o melhor caminho para a doutrinação.
O ponto de Arendt está em entender que alguém é educado para poder fazer a política, e não para que a política se faça nela. Isso faz toda a diferença. Tomar o tempo de formar um menino na pólis, ensinando-lhe retórica, lógica, geometria, só valeria a pena se tivesse um propósito mais ambicioso do que preparar para o trabalho ou transmitir a tradição.
A função do pedagogo e do sofista era formar aqueles que, na ágora de Atenas e suas congêneres, debateriam e determinariam os rumos da cidade, do coletivo. Daí surge a noção de paideia, que até hoje dá nome a escolas mundo afora e virou título da obra-prima do filólogo alemão Werner Jaeger.
Nessa lógica, educar é formar, ou seja, produzir um cidadão, um membro da comunidade política, capaz de atuar na definição dos rumos da sociedade. A paideia formava não mais que as altas classes, os proprietários, únicos de quem se esperava que fizessem política. Aos demais, treinamento, adestramento, aprendizado. o mesmo vale para o ensino do trivium e do quadrivium, as artes liberais da Idade Média e do Renascimento. Quem passava por essa experiência não era artesão ou camponês.
Assim, não é por acaso que o processo de generalização de ideais democráticos foi simultâneo aos esforços para universalizar a educação, sem falar nas inúmeras utopias pedagógicas criticadas por Arendt. Se a democracia é o regime em que todos têm voz, então todos devem estar preparados para se pronunciar. Para tanto, é preciso estar a par dos assuntos mais determinantes para os destinos da comunidade. Isso exige educação, ou melhor: formação, no sentido que o linguista alemão Wilhelm von Humboldt atribuía ao termo Bildung, que combinava “ciência objetiva e formação subjetiva”.
O MERCADO ENTRA EM CENA
Claro que um terceiro elemento também atuou na universalização da educação: o avanço acelerado dos processos produtivos, que exigiam e continuam exigindo trabalhadores cada vez mais qualificados. A ideia corrente de que a educação é uma etapa preparatória para o mercado de trabalho pode ser explicada em termos humboldtianos como separação entre a “ciência objetiva” e a “formação subjetiva”, mas excluindo essa segunda categoria.
Por outro lado, também se pode lançar um convite à reflexão com uma hipótese bem diferente. O desejo de quem se dedica anos a fio à educação para atuar no mercado de trabalho tem algo em comum com o ideal da formação que dá subsídios à atuação política.
Trata-se de uma modalidade de abertura para a esfera do comum e da interação; um arremedo, que seja, da vida pública. isso leva a crer que o modo de participação no coletivo, hoje, não vai muito além do mercado em si.
Com isso, seríamos levados a crer que a atuação no mercado tomou por completo o lugar da atuação política. Se for assim, não deveria surpreender a dificuldade em educar, ou formar, para a participação pública.
*Jornalista, doutorando no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos da FFLCH/USP (Diversitas). Professor convidado na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo