Espontâneo e multiplicador, o aprendizado político gerado em espaços de mobilização social pode transformar o ambiente escolar e as arenas de participação
Já diziam nossos pais que algumas coisas só seriam aprendidas quando chegasse nossa vez de fazer. Debater propostas, negociar prioridades e organizar ações em conjunto faz parte desse aprendizado que se adquire mais na prática do que em sala de aula. Eles são nada mais do que o repertório da ação política essencial para a construção de uma democracia saudável e participativa.
A relação indissolúvel entre educação e participação é defendida pela professora da
Unicamp Maria da Glória Gohn, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Movimentos Sociais, Educação e Cidadania (Gemdec), no artigo “Movimentos Sociais na Contemporaneidade”: “Há um caráter educativo nas práticas que se desenrolam no ato de participar, tanto para os membros da sociedade civil, como para a sociedade mais geral e também os órgãos públicos envolvidos – quando há negociações, diálogos ou confrontos” [1].
A participação social, em espaços institucionalizados ou não, traz aprendizados individuais e coletivos que muitas vezes são ignorados pelo saber erudito, argumenta a
pesquisadora Cileda Perrella, doutora em Administração Escolar pela Universidade de São Paulo [2]. Em sua tese de doutorado, pesquisou as vivências de participantes de conselhos de escola do município de Suzano. Cileda explica que as concepções de direitos, cidadania e educação dos participantes se alteram ao longo da experiência: “Às vezes a pessoa entra em um conselho para defender um direito particular, sem a intenção de aprender algo. Mas depois ela percebe o que aprendeu sobre ação coletiva e conquista de direitos e passa a se colocar de uma maneira diferente, querendo ajudar a formar outras pessoas”.
[1] O artigo, publicado na Revista Brasileira de Educação, pode ser acessado aqui
[2] Leia seu artigo aqui
O professor Carlos Ehlers conhece bem o potencial educador da mobilização. Ele participa da ação coletiva contra a demolição da Escola Municipal Friedenreich, na cidade do Rio de Janeiro, onde suas filhas estudavam. Referência pedagógica em nível nacional e uma das mais bem posicionadas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a escola estava ameaçada pelo projeto de ampliação do Maracanã para a Copa do Mundo. Com a ajuda da Rede Mobilizadora Meu Rio [3], cidadãos da comunidade se organizaram para pressionar o poder público a preservar a escola.
[3] Meu Rio é uma plataforma on-line que suporta e apoia mobilizações, sugeridas pelos integrantes de sua rede, relacionadas a questões locais da capital fluminense
A mobilização resultou vitoriosa com o cancelamento da demolição, mas não parou
por aí. Hoje a comunidade ainda se organiza para promover a gestão participativa na escola, tendo inclusive criado o projeto “Política também se faz na escola”. “Foi uma experiência enriquecedora, porque tivemos de pensar para agir de forma mais sistemática. Fica o aprendizado de que ninguém faz nada sozinho. Isso dá outra leitura do que seja a democracia”, relata Ehlers (leia mais em “A sabedoria da prática“).
Reunir pessoas de diversos setores interessadas em se mobilizar por uma causa com
a qual se identifica é uma das facilidades trazidas pela internet e aproveitadas pela plataforma Meu Rio. Rafael Rezende, coordenador de mobilizações da rede, explica que a interação entre os mobilizadores se alterna entre os mundos on e off-line. “Temos tanto fóruns de debate (na internet) quanto reuniões presenciais, em que são traçadas as estratégias de ação e se discute muito sobre o que e como vamos fazer.” Os ativistas levam as reflexões sobre as causas para seus núcleos pessoais e outros espaços. “A construção coletiva se dá muito a partir desses debates.”
A interação pode ser um espaço precioso de aprendizado, não somente sobre o relacionamento com outros ativistas, mas também do autoposicionamento do cidadão.
Quando as ações coletivas reforçam a ideia de que cada um tem um papel a cumprir, desperta também a percepção de cada participante como sujeito de sua própria história. Isso o empodera a se tornar agente de transformação social.
A formação de sujeitos autônomos, capazes de se mobilizar pelas mudanças na sociedade é um dos princípios da Educação Popular [4], referencial muito utilizado nos processos de formação de movimentos sociais [5]. Muito influenciada pelas referências teóricas e metodológicas do livro Pedagogia do Oprimido, do educador Paulo Freire (1921-1997), ela tem uma intencionalidade política, de formação de pessoas para a transformação da ordem social.
[4] Concepção de educação “realizada por meio de processos contínuos e permanentes de formação, que possui a intencionalidade de transformar a realidade a partir do protagonismo dos sujeitos”, conforme definição do Instituto Paulo Freire [5] Segundo Maria da Glória Gohn, da Unicamp, movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas”
A doutora em Sociologia pela Unesp Raiane Assumpção argumenta que essa formação busca um diálogo entre as teorias e a concepção de mundo dos educandos. “O trabalho é deixar de buscar só explicações superficiais sobre a realidade e ir à essência. Então é necessário partir da realidade do sujeito e da visão de mundo que ele tem e construir a estratégia de aprendizado em conjunto.”
Reconhecer a importância dos saberes acumulados pela experiência de cada um é essencial tanto para essa concepção de educação quanto para a reflexão sobre como pode ser feita a formação política. “Você aprende a participar participando. Educação é um processo, e por isso há muitos desafios”, argumenta Cileda. “(…) a formação para a participação deve problematizar, provocar reflexões e desacomodar.” Nessa direção, a concepção freiriana estimula os questionamentos sobre a visão de mundo dos educandos e a posição de cada um dentro dele.
O respeito ao outro, a desconstrução da convivência autoritária, a valorização do diálogo, a promoção da participação popular e a recusa do assistencialismo e da doutrinação ideológica são alguns dos valores defendidos por Paulo Freire que podem ser observados em práticas de educação popular, segundo analisado pela doutora em Sociologia da Educação Jade Percussi em artigo publicado na revista Rizoma Freiriano.
A Educação Popular preza pela experiência coletiva, uma das características marcantes de movimentos sociais. “A experiência por si mesma pode marcar a trajetória de cada um dos indivíduos, mas é a reflexão coletiva que traz consigo a possibilidade de mudança no modo de viver e de pensar o mundo de um grupo ou comunidade”, escreve Jade. Maria da Glória Gohn argumenta também que os movimentos sociais, em suas reflexões, realizam diagnósticos sobre a realidade social e constroem propostas que nem sempre têm espaço nos espaços formais de tomada de decisão.
O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) tenta incluir na sua formação o desenvolvimento da consciência de direitos. Ana Paula Ribeiro, responsável pela área de formação do movimento, explica que o aprendizado é alternado entre prática e momentos de sistematização do conhecimento. “A vivência das assembleias já é bem politizadora, pois, quando discutimos nossas pautas, temos de entrar em um consenso para tomar as decisões.” A formação sobre a história e as metas acontece já nas primeiras semanas de entrada no movimento, sempre coordenada por militantes eleitos dentro dos próprios acampamentos do MTST.
“No momento em que a pessoa entra para a militância, ela tem um objetivo muito claro, que é a moradia. Conforme participa, o militante percebe que o movimento tem princípios que extrapolam para a luta por outros direitos básicos.” Para Ana Paula, o que impulsiona a formação política dos militantes é a luta. “Nós dependemos de questões mais subjetivas que não advêm da educação formal.”
Lúcia Aparecida Paulista, militante que coordena a ocupação Pinheirinho do ABC, demonstra que o envolvimento com o MTST transformou sua visão sobre o acesso a direitos: “Mesmo quando eu estiver na minha moradia própria, quero continuar no movimento para lutar com meus companheiros. Não por mim, mas por outras famílias que têm esse direito” (mais em “A sabedoria da prática“).
O professor Pablo Ortellado, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each-USP), aponta mudanças que alteraram a dinâmica dos movimentos sociais dos anos 1970 até hoje. Os mais antigos trabalhavam com uma lógica de representantes eleitos e assembleias periódicas para fiscalizar sua atuação. Já os movimentos sociais contemporâneos são mais horizontais – principalmente os surgidos no contexto das redes sociais – e preferem assembleias gerais permanentes e colegiados, por exemplo. “Essa mudança empoderou muitas pessoas que estavam nas bases dos movimentos e tinham pouca participação. Elas passaram a atuar diretamente nas decisões.”
A mudança exige esforços de formação política contínua. “As iniciativas contemporâneas têm em comum o fato de serem muito cuidadosas com o aspecto democrático, e isso torna muito mais lento o aprendizado político em função das diferenças de vivência entre os membros”, completa Ortellado.
Ana Paula reconhece o caráter desafiador desse processo, que tenta romper com a cultura política lapidada durante séculos (mais em “Cidadania Inconclusa“). “Uma das nossas dificuldades é quebrar os ciclos do paternalismo e do personalismo, com os quais as pessoas têm muitas dificuldades de se desacostumar.”
CONHECIMENTO E LIBERTAÇÃO
A formação contínua e organizada é uma das estratégias para os movimentos sociais despertarem a consciência transformadora em seus participantes. A doutoranda em Sociologia Carmen Silva, coordenadora da ONG SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, defende que participar desses movimentos já é transformador em si mesmo, mas recomenda: “A formação esporádica não tem o mesmo efeito. É importante ter uma periodicidade definida e ser progressiva, considerando que existem pessoas chegando a todo momento à militância e que não têm as mesmas condições de quem já estava nela”. Além disso, promover o senso crítico sobre as próprias ações coletivas deve ser um dos objetivos das formações, com vista a ativar a capacidade de inovação do grupo.
Os movimentos feministas lidam constantemente com os dilemas da formação contínua. Rebeca (nome fictício, a pedido da entrevistada), participante do coletivo Marcha das Vadias [6] de São Paulo, explica que a discussão sobre as bases teóricas e políticas do feminismo permeia vários momentos do debate.
[6] Coletivo feminista originado de manifestação em 2011, no Canadá, como reação à declaração de um policial de que as mulheres poderiam “evitar se vestir como vadias” para não serem vítimas de abuso sexual
Entretanto, as diferenças no repertório entre ativistas mais experientes e mais novas não podem limitar a participação. “Sabemos que uma mulher de 40 anos com doutorado tem mais conhecimentos teóricos que uma estudante de 18 anos, e isso pode intimidar a mais nova a expor suas ideias. Mas buscamos mostrar a ambas que cada uma tem seu próprio repertório de experiências e são igualmente importantes nos debates.” Esse estímulo faz parte do processo de empoderamento para que a militante aprenda a se posicionar em outros espaços não tão convidativos, como o ambiente de trabalho.
Carmen cita a Universidade Livre Feminista como exemplo de iniciativa de sistematização do conhecimento produzido na militância que pode apoiar a articulação entre os movimentos feministas. “É um site em que realizamos cursos à distância e disponibilizamos materiais para quem quer organizar formações.”
Raiane pontua que esse tipo de registro é uma forma de os movimentos se libertarem das teorias produzidas pela academia. “Os movimentos sociais não têm como tradição sistematizar o conhecimento construído, pois historicamente não tinham esse foco.”
A ESCOLA SAINDO DA ESCOLA
O conhecimento produzido na atuação política poderia ser aproveitado pelas escolas e pela academia não só no seu conteúdo, mas também na concepção de aprendizado. “Há muita coisa sendo aprendida na vida que a escola acaba ignorando porque privilegia um saber hierarquizado, que muitas vezes não dá conta na tomada de decisões”, argumenta Cileda. Ela defende que as escolas atuem em consonância com as questões sociais do seu território.
Em adição, o referencial da educação popular pode se tornar uma política pública para qualificar não só a educação formal, mas outros espaços de participação social. “A escola não deve ser um espaço apenas do diretor e do aluno, mas também da comunidade escolar”, argumenta Raiane. Ver a escola como um espaço potencializador das relações e das transformações, em sua opinião, significa produzir conhecimento para desenvolver a autonomia dos cidadãos.
A concepção inicial dos Centros de Educação Unificados (CEUs) paulistanos possuía esse objetivo, conforme expôs a ex-secretária de Educação da cidade de São Paulo Maria Aparecida Perez no “Seminário Internacional Educação Popular Hoje”, promovido pela ONG Ação Educativa: “A ideia era permitir o debate e a criação coletiva com a comunidade sobre as atividades de convivência social dos centros”. Aparecida defende que a gestão democrática da educação faça parte dos planos pedagógicos: “A escola precisa formar sujeitos na sua relação com toda a comunidade. Para que a troca de saberes seja permanente, o currículo deve ser discutido”.
Durante o evento Arena de Participação Social, a Secretaria-Geral da Presidência da República lançou o Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas, um dos primeiros passos para a implantação da PNEP.
Se implantada, a Política Nacional para a Educação Popular (Pnep) pode levar essas referências metodológicas para políticas públicas de vários setores, recomenda Raiane. “Ela imporia a necessidade de trabalho com a comunidade e o estimulo à emancipação dos cidadãos. Por exemplo, em vez de a educação ambiental ser orientada só pela conscientização ecológica, poderia propor questionamentos sobre modelos de desenvolvimento.” A mudança ajudaria inclusive a qualificar os espaços institucionais de participação social, como as conferências temáticas e conselhos do governo federal.
Cileda concorda com a necessidade de qualificação. Ela, que atualmente trabalha com a formação de conselheiros de escolas em São José dos Campos (SP), reforça que é importante desmontar as estruturas hierárquicas de ensino para formar cidadãos capazes de participar das tomadas de decisão, inclusive nesses espaços.
“Nós temos mais de 500 anos de estrutura social verticalizada, centralizada e hierarquizada em que o clientelismo e o patrimonialismo estão naturalizados. Então, não adianta só criar o conselho e mandar participar, senão ele vai acabar refletindo vícios que estão no nosso tecido social”, sentencia.[:en]Espontâneo e multiplicador, o aprendizado político gerado em espaços de mobilização social pode transformar o ambiente escolar e as arenas de participação
Já diziam nossos pais que algumas coisas só seriam aprendidas quando chegasse nossa vez de fazer. Debater propostas, negociar prioridades e organizar ações em conjunto faz parte desse aprendizado que se adquire mais na prática do que em sala de aula. Eles são nada mais do que o repertório da ação política essencial para a construção de uma democracia saudável e participativa.
A relação indissolúvel entre educação e participação é defendida pela professora da
Unicamp Maria da Glória Gohn, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Movimentos Sociais, Educação e Cidadania (Gemdec), no artigo “Movimentos Sociais na Contemporaneidade”: “Há um caráter educativo nas práticas que se desenrolam no ato de participar, tanto para os membros da sociedade civil, como para a sociedade mais geral e também os órgãos públicos envolvidos – quando há negociações, diálogos ou confrontos” [1].
A participação social, em espaços institucionalizados ou não, traz aprendizados individuais e coletivos que muitas vezes são ignorados pelo saber erudito, argumenta a
pesquisadora Cileda Perrella, doutora em Administração Escolar pela Universidade de São Paulo [2]. Em sua tese de doutorado, pesquisou as vivências de participantes de conselhos de escola do município de Suzano. Cileda explica que as concepções de direitos, cidadania e educação dos participantes se alteram ao longo da experiência: “Às vezes a pessoa entra em um conselho para defender um direito particular, sem a intenção de aprender algo. Mas depois ela percebe o que aprendeu sobre ação coletiva e conquista de direitos e passa a se colocar de uma maneira diferente, querendo ajudar a formar outras pessoas”.
[1] O artigo, publicado na Revista Brasileira de Educação, pode ser acessado aqui
[2] Leia seu artigo aqui
O professor Carlos Ehlers conhece bem o potencial educador da mobilização. Ele participa da ação coletiva contra a demolição da Escola Municipal Friedenreich, na cidade do Rio de Janeiro, onde suas filhas estudavam. Referência pedagógica em nível nacional e uma das mais bem posicionadas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a escola estava ameaçada pelo projeto de ampliação do Maracanã para a Copa do Mundo. Com a ajuda da Rede Mobilizadora Meu Rio [3], cidadãos da comunidade se organizaram para pressionar o poder público a preservar a escola.
[3] Meu Rio é uma plataforma on-line que suporta e apoia mobilizações, sugeridas pelos integrantes de sua rede, relacionadas a questões locais da capital fluminense
A mobilização resultou vitoriosa com o cancelamento da demolição, mas não parou
por aí. Hoje a comunidade ainda se organiza para promover a gestão participativa na escola, tendo inclusive criado o projeto “Política também se faz na escola”. “Foi uma experiência enriquecedora, porque tivemos de pensar para agir de forma mais sistemática. Fica o aprendizado de que ninguém faz nada sozinho. Isso dá outra leitura do que seja a democracia”, relata Ehlers (leia mais em “A sabedoria da prática“).
Reunir pessoas de diversos setores interessadas em se mobilizar por uma causa com
a qual se identifica é uma das facilidades trazidas pela internet e aproveitadas pela plataforma Meu Rio. Rafael Rezende, coordenador de mobilizações da rede, explica que a interação entre os mobilizadores se alterna entre os mundos on e off-line. “Temos tanto fóruns de debate (na internet) quanto reuniões presenciais, em que são traçadas as estratégias de ação e se discute muito sobre o que e como vamos fazer.” Os ativistas levam as reflexões sobre as causas para seus núcleos pessoais e outros espaços. “A construção coletiva se dá muito a partir desses debates.”
A interação pode ser um espaço precioso de aprendizado, não somente sobre o relacionamento com outros ativistas, mas também do autoposicionamento do cidadão.
Quando as ações coletivas reforçam a ideia de que cada um tem um papel a cumprir, desperta também a percepção de cada participante como sujeito de sua própria história. Isso o empodera a se tornar agente de transformação social.
A formação de sujeitos autônomos, capazes de se mobilizar pelas mudanças na sociedade é um dos princípios da Educação Popular [4], referencial muito utilizado nos processos de formação de movimentos sociais [5]. Muito influenciada pelas referências teóricas e metodológicas do livro Pedagogia do Oprimido, do educador Paulo Freire (1921-1997), ela tem uma intencionalidade política, de formação de pessoas para a transformação da ordem social.
[4] Concepção de educação “realizada por meio de processos contínuos e permanentes de formação, que possui a intencionalidade de transformar a realidade a partir do protagonismo dos sujeitos”, conforme definição do Instituto Paulo Freire [5] Segundo Maria da Glória Gohn, da Unicamp, movimentos sociais são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas”
A doutora em Sociologia pela Unesp Raiane Assumpção argumenta que essa formação busca um diálogo entre as teorias e a concepção de mundo dos educandos. “O trabalho é deixar de buscar só explicações superficiais sobre a realidade e ir à essência. Então é necessário partir da realidade do sujeito e da visão de mundo que ele tem e construir a estratégia de aprendizado em conjunto.”
Reconhecer a importância dos saberes acumulados pela experiência de cada um é essencial tanto para essa concepção de educação quanto para a reflexão sobre como pode ser feita a formação política. “Você aprende a participar participando. Educação é um processo, e por isso há muitos desafios”, argumenta Cileda. “(…) a formação para a participação deve problematizar, provocar reflexões e desacomodar.” Nessa direção, a concepção freiriana estimula os questionamentos sobre a visão de mundo dos educandos e a posição de cada um dentro dele.
O respeito ao outro, a desconstrução da convivência autoritária, a valorização do diálogo, a promoção da participação popular e a recusa do assistencialismo e da doutrinação ideológica são alguns dos valores defendidos por Paulo Freire que podem ser observados em práticas de educação popular, segundo analisado pela doutora em Sociologia da Educação Jade Percussi em artigo publicado na revista Rizoma Freiriano.
A Educação Popular preza pela experiência coletiva, uma das características marcantes de movimentos sociais. “A experiência por si mesma pode marcar a trajetória de cada um dos indivíduos, mas é a reflexão coletiva que traz consigo a possibilidade de mudança no modo de viver e de pensar o mundo de um grupo ou comunidade”, escreve Jade. Maria da Glória Gohn argumenta também que os movimentos sociais, em suas reflexões, realizam diagnósticos sobre a realidade social e constroem propostas que nem sempre têm espaço nos espaços formais de tomada de decisão.
O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) tenta incluir na sua formação o desenvolvimento da consciência de direitos. Ana Paula Ribeiro, responsável pela área de formação do movimento, explica que o aprendizado é alternado entre prática e momentos de sistematização do conhecimento. “A vivência das assembleias já é bem politizadora, pois, quando discutimos nossas pautas, temos de entrar em um consenso para tomar as decisões.” A formação sobre a história e as metas acontece já nas primeiras semanas de entrada no movimento, sempre coordenada por militantes eleitos dentro dos próprios acampamentos do MTST.
“No momento em que a pessoa entra para a militância, ela tem um objetivo muito claro, que é a moradia. Conforme participa, o militante percebe que o movimento tem princípios que extrapolam para a luta por outros direitos básicos.” Para Ana Paula, o que impulsiona a formação política dos militantes é a luta. “Nós dependemos de questões mais subjetivas que não advêm da educação formal.”
Lúcia Aparecida Paulista, militante que coordena a ocupação Pinheirinho do ABC, demonstra que o envolvimento com o MTST transformou sua visão sobre o acesso a direitos: “Mesmo quando eu estiver na minha moradia própria, quero continuar no movimento para lutar com meus companheiros. Não por mim, mas por outras famílias que têm esse direito” (mais em “A sabedoria da prática“).
O professor Pablo Ortellado, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each-USP), aponta mudanças que alteraram a dinâmica dos movimentos sociais dos anos 1970 até hoje. Os mais antigos trabalhavam com uma lógica de representantes eleitos e assembleias periódicas para fiscalizar sua atuação. Já os movimentos sociais contemporâneos são mais horizontais – principalmente os surgidos no contexto das redes sociais – e preferem assembleias gerais permanentes e colegiados, por exemplo. “Essa mudança empoderou muitas pessoas que estavam nas bases dos movimentos e tinham pouca participação. Elas passaram a atuar diretamente nas decisões.”
A mudança exige esforços de formação política contínua. “As iniciativas contemporâneas têm em comum o fato de serem muito cuidadosas com o aspecto democrático, e isso torna muito mais lento o aprendizado político em função das diferenças de vivência entre os membros”, completa Ortellado.
Ana Paula reconhece o caráter desafiador desse processo, que tenta romper com a cultura política lapidada durante séculos (mais em “Cidadania Inconclusa“). “Uma das nossas dificuldades é quebrar os ciclos do paternalismo e do personalismo, com os quais as pessoas têm muitas dificuldades de se desacostumar.”
CONHECIMENTO E LIBERTAÇÃO
A formação contínua e organizada é uma das estratégias para os movimentos sociais despertarem a consciência transformadora em seus participantes. A doutoranda em Sociologia Carmen Silva, coordenadora da ONG SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, defende que participar desses movimentos já é transformador em si mesmo, mas recomenda: “A formação esporádica não tem o mesmo efeito. É importante ter uma periodicidade definida e ser progressiva, considerando que existem pessoas chegando a todo momento à militância e que não têm as mesmas condições de quem já estava nela”. Além disso, promover o senso crítico sobre as próprias ações coletivas deve ser um dos objetivos das formações, com vista a ativar a capacidade de inovação do grupo.
Os movimentos feministas lidam constantemente com os dilemas da formação contínua. Rebeca (nome fictício, a pedido da entrevistada), participante do coletivo Marcha das Vadias [6] de São Paulo, explica que a discussão sobre as bases teóricas e políticas do feminismo permeia vários momentos do debate.
[6] Coletivo feminista originado de manifestação em 2011, no Canadá, como reação à declaração de um policial de que as mulheres poderiam “evitar se vestir como vadias” para não serem vítimas de abuso sexual
Entretanto, as diferenças no repertório entre ativistas mais experientes e mais novas não podem limitar a participação. “Sabemos que uma mulher de 40 anos com doutorado tem mais conhecimentos teóricos que uma estudante de 18 anos, e isso pode intimidar a mais nova a expor suas ideias. Mas buscamos mostrar a ambas que cada uma tem seu próprio repertório de experiências e são igualmente importantes nos debates.” Esse estímulo faz parte do processo de empoderamento para que a militante aprenda a se posicionar em outros espaços não tão convidativos, como o ambiente de trabalho.
Carmen cita a Universidade Livre Feminista como exemplo de iniciativa de sistematização do conhecimento produzido na militância que pode apoiar a articulação entre os movimentos feministas. “É um site em que realizamos cursos à distância e disponibilizamos materiais para quem quer organizar formações.”
Raiane pontua que esse tipo de registro é uma forma de os movimentos se libertarem das teorias produzidas pela academia. “Os movimentos sociais não têm como tradição sistematizar o conhecimento construído, pois historicamente não tinham esse foco.”
A ESCOLA SAINDO DA ESCOLA
O conhecimento produzido na atuação política poderia ser aproveitado pelas escolas e pela academia não só no seu conteúdo, mas também na concepção de aprendizado. “Há muita coisa sendo aprendida na vida que a escola acaba ignorando porque privilegia um saber hierarquizado, que muitas vezes não dá conta na tomada de decisões”, argumenta Cileda. Ela defende que as escolas atuem em consonância com as questões sociais do seu território.
Em adição, o referencial da educação popular pode se tornar uma política pública para qualificar não só a educação formal, mas outros espaços de participação social. “A escola não deve ser um espaço apenas do diretor e do aluno, mas também da comunidade escolar”, argumenta Raiane. Ver a escola como um espaço potencializador das relações e das transformações, em sua opinião, significa produzir conhecimento para desenvolver a autonomia dos cidadãos.
A concepção inicial dos Centros de Educação Unificados (CEUs) paulistanos possuía esse objetivo, conforme expôs a ex-secretária de Educação da cidade de São Paulo Maria Aparecida Perez no “Seminário Internacional Educação Popular Hoje”, promovido pela ONG Ação Educativa: “A ideia era permitir o debate e a criação coletiva com a comunidade sobre as atividades de convivência social dos centros”. Aparecida defende que a gestão democrática da educação faça parte dos planos pedagógicos: “A escola precisa formar sujeitos na sua relação com toda a comunidade. Para que a troca de saberes seja permanente, o currículo deve ser discutido”.
Durante o evento Arena de Participação Social, a Secretaria-Geral da Presidência da República lançou o Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas, um dos primeiros passos para a implantação da PNEP.
Se implantada, a Política Nacional para a Educação Popular (Pnep) pode levar essas referências metodológicas para políticas públicas de vários setores, recomenda Raiane. “Ela imporia a necessidade de trabalho com a comunidade e o estimulo à emancipação dos cidadãos. Por exemplo, em vez de a educação ambiental ser orientada só pela conscientização ecológica, poderia propor questionamentos sobre modelos de desenvolvimento.” A mudança ajudaria inclusive a qualificar os espaços institucionais de participação social, como as conferências temáticas e conselhos do governo federal.
Cileda concorda com a necessidade de qualificação. Ela, que atualmente trabalha com a formação de conselheiros de escolas em São José dos Campos (SP), reforça que é importante desmontar as estruturas hierárquicas de ensino para formar cidadãos capazes de participar das tomadas de decisão, inclusive nesses espaços.
“Nós temos mais de 500 anos de estrutura social verticalizada, centralizada e hierarquizada em que o clientelismo e o patrimonialismo estão naturalizados. Então, não adianta só criar o conselho e mandar participar, senão ele vai acabar refletindo vícios que estão no nosso tecido social”, sentencia.