Causa e consequência de instabilidades políticas, econômicas e sociais, as desigualdades ameaçam a democracia e o sentido da política como liberdade
São tempos estranhos estes que vivemos no Brasil. Por um lado, os protestos violentos e os linchamentos evidenciam tensões na sociedade. Por outro, há um fosso separando o diálogo da sociedade com a política. Diante desse quadro, cabe retomar a pergunta feita por Hannah Arendt: qual o sentido da política [1]?
Para Hannah Arendt, o agir político é composto de três elementos: objetivo, meta e sentido. O objetivo é o que buscamos; a meta produz os parâmetros pelos quais tudo o que é feito é julgado. E o sentido está ligado à existência da política, persiga ela um objetivo ou não; está contido nela mesma, só existe enquanto ela existir. A política existe porque há diversidade entre as pessoas, diferentes propensões. É preciso então organizar e regular o convívio entre os diferentes, evitando a guerra hobbesiana de todos contra todos, e, neste espaço de convivência, assegurar a maior liberdade possível para que os diferentes possam se desenvolver. Aí reside o sentido da política: dar chance e espaço à liberdade, à felicidade pública e à realização pessoal. Assim, para Hannah Arendt, o sentido da política é a liberdade [2].
As experiências políticas do século XX foram formadas por guerras e revoluções e não pelo funcionar de governos parlamentares e aparatos de partido [3] . Essa foi uma época que testemunhou duas grandes guerras mundiais, e a ascensão e queda de sistemas totalitários, que, entre outras atrocidades, suprimiram a liberdade humana. Mas, apesar dos escombros – ou justamente por causa deles –, esse século dos extremos deixou para o recém-chegado século XXI um importante legado: a emergência da democracia como a forma mais desejável de governança. Em 1970, cerca de 30% dos países do mundo eram democracias; em 2008, 80% [4].
[1] Arendt, H. Was ist Politik? 1993 [2] Idem [3] Idem
[4] UNDP. Human Development Report: The Real Wealth of Nations: pathways to development, 2010
A democracia baseia-se em quatro pilares: (i) um sistema político que permita a escolha e a substituição do governo por eleições livres e justas; (ii) participação ativa dos cidadãos na política e na vida cívica; (iii) proteção universal dos direitos humanos; e (iv) submissão de todos os cidadãos, igualmente, perante às leis do país [5]. No século XXI, a democracia tornou-se mais que um sistema de governança; tornou-se um valor. Talvez porque traga em sua essência virtudes que enobrecem a vida humana e seja, por excelência, o sistema de governança que privilegia a liberdade [6] .
Mas falar em democracia não é somente falar em democracia. Há pelo menos dois outros aspectos que se conectam profundamente às discussões sobre o tema: instituições e desigualdades (por exemplo, de renda, condições, gênero, cor, direitos políticos).
As instituições e a forma como evoluem moldam o desempenho econômico e o ambiente político de uma sociedade. As instituições são as regras do jogo, formais e informais, os certos e errados que determinam os parâmetros das interações humanas, estruturando os incentivos que afetarão os comportamentos dos indivíduos em uma sociedade [7]. Podem contribuir para os caminhos que levam tanto ao desenvolvimento econômico e à democracia quanto a ditaduras ou ao desempenho econômico limitado. A história de uma nação é influenciada pelo ambiente institucional e pelos processos em que este foi e é alterado [8].
Mas instituições são fruto do ambiente social e, como tal, estão sujeitas às influências
dos grupos que detêm o poder. Assim, há uma tendência desses grupos de reforçar as instituições no sentido que melhor lhes convier, geralmente para se perpetuarem no poder. A ocorrência desse processo de maneira contínua cria, entre outros elementos, um sistema político que favorece tais grupos, afastando-o dos demais membros da sociedade.
Esse favorecimento ocorre porque há desigualdades persistentes criando um ciclo vicioso, pois quem influencia o poder político tende a fazê-lo em favor de seus próprios interesses e não para reduzir as desigualdades. Estas se tornam, ao mesmo tempo, causa e consequência de importantes instabilidades econômicas, políticas e sociais [9]. Nesse processo, a democracia pode ser ameaçada, assim como o sentido da política como liberdade.
A recente agitação social no Brasil mostra que a sociedade não se sente acolhida pelo nosso ambiente institucional. As pessoas têm grande esperança na democracia, mas, quando o sistema político reforça distorções que seguem promovendo desigualdades de diversos tipos, a esperança é substituída pelo desconsolo. As desigualdades aprisionam, limitam, afligem. Mas a soma de todas resulta em um tipo de desigualdade pela qual, ao longo da História, já demonstramos disposição a arriscar tudo: a desigualdade de liberdades.
[5] Diamond, L. Acesse aqui
[6] Amartya, S. Journal of Democracy, 1999
[7] North, D. Transactions Costs, Institutions, and Economic Performance, 1992
[8] Acemoglu et al. Acesse aqui
[9] Stiglitz, J. The Price of Inequality, 2012
*Pesquisadora do GVces no Programa de Finanças Sustentáveis, com estudos na conexão entre economia, finanças e sustentabilidade[:en]Causa e consequência de instabilidades políticas, econômicas e sociais, as desigualdades ameaçam a democracia e o sentido da política como liberdade
São tempos estranhos estes que vivemos no Brasil. Por um lado, os protestos violentos e os linchamentos evidenciam tensões na sociedade. Por outro, há um fosso separando o diálogo da sociedade com a política. Diante desse quadro, cabe retomar a pergunta feita por Hannah Arendt: qual o sentido da política [1]?
Para Hannah Arendt, o agir político é composto de três elementos: objetivo, meta e sentido. O objetivo é o que buscamos; a meta produz os parâmetros pelos quais tudo o que é feito é julgado. E o sentido está ligado à existência da política, persiga ela um objetivo ou não; está contido nela mesma, só existe enquanto ela existir. A política existe porque há diversidade entre as pessoas, diferentes propensões. É preciso então organizar e regular o convívio entre os diferentes, evitando a guerra hobbesiana de todos contra todos, e, neste espaço de convivência, assegurar a maior liberdade possível para que os diferentes possam se desenvolver. Aí reside o sentido da política: dar chance e espaço à liberdade, à felicidade pública e à realização pessoal. Assim, para Hannah Arendt, o sentido da política é a liberdade [2].
As experiências políticas do século XX foram formadas por guerras e revoluções e não pelo funcionar de governos parlamentares e aparatos de partido [3] . Essa foi uma época que testemunhou duas grandes guerras mundiais, e a ascensão e queda de sistemas totalitários, que, entre outras atrocidades, suprimiram a liberdade humana. Mas, apesar dos escombros – ou justamente por causa deles –, esse século dos extremos deixou para o recém-chegado século XXI um importante legado: a emergência da democracia como a forma mais desejável de governança. Em 1970, cerca de 30% dos países do mundo eram democracias; em 2008, 80% [4].
[1] Arendt, H. Was ist Politik? 1993 [2] Idem [3] Idem
[4] UNDP. Human Development Report: The Real Wealth of Nations: pathways to development, 2010
A democracia baseia-se em quatro pilares: (i) um sistema político que permita a escolha e a substituição do governo por eleições livres e justas; (ii) participação ativa dos cidadãos na política e na vida cívica; (iii) proteção universal dos direitos humanos; e (iv) submissão de todos os cidadãos, igualmente, perante às leis do país [5]. No século XXI, a democracia tornou-se mais que um sistema de governança; tornou-se um valor. Talvez porque traga em sua essência virtudes que enobrecem a vida humana e seja, por excelência, o sistema de governança que privilegia a liberdade [6] .
Mas falar em democracia não é somente falar em democracia. Há pelo menos dois outros aspectos que se conectam profundamente às discussões sobre o tema: instituições e desigualdades (por exemplo, de renda, condições, gênero, cor, direitos políticos).
As instituições e a forma como evoluem moldam o desempenho econômico e o ambiente político de uma sociedade. As instituições são as regras do jogo, formais e informais, os certos e errados que determinam os parâmetros das interações humanas, estruturando os incentivos que afetarão os comportamentos dos indivíduos em uma sociedade [7]. Podem contribuir para os caminhos que levam tanto ao desenvolvimento econômico e à democracia quanto a ditaduras ou ao desempenho econômico limitado. A história de uma nação é influenciada pelo ambiente institucional e pelos processos em que este foi e é alterado [8].
Mas instituições são fruto do ambiente social e, como tal, estão sujeitas às influências
dos grupos que detêm o poder. Assim, há uma tendência desses grupos de reforçar as instituições no sentido que melhor lhes convier, geralmente para se perpetuarem no poder. A ocorrência desse processo de maneira contínua cria, entre outros elementos, um sistema político que favorece tais grupos, afastando-o dos demais membros da sociedade.
Esse favorecimento ocorre porque há desigualdades persistentes criando um ciclo vicioso, pois quem influencia o poder político tende a fazê-lo em favor de seus próprios interesses e não para reduzir as desigualdades. Estas se tornam, ao mesmo tempo, causa e consequência de importantes instabilidades econômicas, políticas e sociais [9]. Nesse processo, a democracia pode ser ameaçada, assim como o sentido da política como liberdade.
A recente agitação social no Brasil mostra que a sociedade não se sente acolhida pelo nosso ambiente institucional. As pessoas têm grande esperança na democracia, mas, quando o sistema político reforça distorções que seguem promovendo desigualdades de diversos tipos, a esperança é substituída pelo desconsolo. As desigualdades aprisionam, limitam, afligem. Mas a soma de todas resulta em um tipo de desigualdade pela qual, ao longo da História, já demonstramos disposição a arriscar tudo: a desigualdade de liberdades.
[5] Diamond, L. Acesse aqui
[6] Amartya, S. Journal of Democracy, 1999
[7] North, D. Transactions Costs, Institutions, and Economic Performance, 1992
[8] Acemoglu et al. Acesse aqui
[9] Stiglitz, J. The Price of Inequality, 2012
*Pesquisadora do GVces no Programa de Finanças Sustentáveis, com estudos na conexão entre economia, finanças e sustentabilidade