A indústria do pré-sal gerou expectativa de desenvolvimento local na Baixada Santista, mas, para a população, o otimismo transformou-se em frustração, especulação imobiliária e gentrificação
A Baixada Santista está de ressaca. Há alguns anos, a população local convive com a expectativa de que a indústria do pré-sal leve prosperidade à região, atraindo empresas, investimentos, negócios e empregos qualificados. Parte desses prognósticos concretizou-se, com impacto inegável no desenvolvimento local, mas sem a esperada distribuição de riqueza nem a elaboração de tecnologias adequadas para lidar com a prevenção de danos ambientais. Enquanto a maior parte das imensas reservas descobertas ainda é uma riqueza potencial a ser extraída das profundezas oceânicas, o pré-sal já provoca impactos bastante concretos na vida da população. O mais evidente deles foi uma onda de especulação imobiliária, gerada pela expectativa da prosperidade. Assim, os resultados não parecem ter melhorado de fato a vida dos habitantes da região. A euforia inicial passou.
“Pré-sal? Teve um impacto muito grande. Mas totalmente negativo. As pessoas esperavam um aquecimento da economia da região. O que aconteceu foi o contrário”, diz o corretor de imóveis Fernando Perez Lopez, proprietário de uma imobiliária na Praia de Gonzaguinha, em São Vicente (SP). Segundo ele, nos últimos quatro anos, o preço dos imóveis na região subiu cerca de 130%, quando a inflação no período não passou dos 25%. “Isso diminuiu a procura por imóveis. Nossas vendas caíram de 70% a 80% desde 2010”, diz. “Antes, vendíamos quatro ou cinco apartamentos por mês. Agora temos que comemorar se vendermos um ou dois.” (Mais em quadro abaixo)
Mais expectativas que negócios
Com o crescimento vertiginoso dos lançamentos de novos empreendimentos, o mercado imobiliário da Baixada Santista se tornou o sexto maior do País, de acordo com um anuário da consultoria Lopes, publicado em maio de 2014. O Valor Geral de Venda, ou seja, a soma dos preços anunciados pelas construtoras nos lançamentos (mas não de vendas efetivas), chegou a R$ 2,7 bilhões. Mas, se a expectativa impulsionou os lançamentos, as vendas propriamente ditas acabaram sofrendo uma queda. O que explica a aparente contradição é que o pré-sal gerou mais expectativas que negócios. De acordo com informações do Secovi da Baixada Santista, divulgadas no fim de 2013, a velocidade de venda dos imóveis caiu, e os preços pararam de subir, indicando de que o ritmo do setor não é mais o mesmo, apesar de toda a euforia inicial.
A altura dos novos edifícios é, sem dúvida, a face mais visível de cada um desses ataques especulativos. A partir da década de 1960, a construção civil explodiu na parte insular das cidades de Santos e São Vicente – até hoje a área mais urbanizada da região –, mas a legislação de 1968 estabelecia limites de altura de 10 andares. Em 1986, foram liberados prédios de até 14 andares e um novo surto imobiliário ocorreu.
A partir de 1998, o limite de altura deixou de ser um parâmetro legal para a autorização de novos empreendimentos. Começaram a surgir as torres de mais de 30 andares, cuja construção foi acelerada a partir de 2007, na onda do pré-sal. Só que o investimento em infraestrutura urbana não acompanhou essa tendência, gerando graves problemas de mobilidade – a frota de veículos de Santos é uma das maiores do Brasil, com um carro para 1,6 habitante.
“As construtoras contaram com o pré-sal, mas o encarecimento dos imóveis expulsou a população para outras áreas e não houve a migração que se imaginava para a cidade”, explica Lopez. Há pouca gente disposta a adquirir apartamentos de 130 metros quadrados por R$ 800 mil. “Hoje, várias das torres de mais de 30 andares estão encalhadas, mesmo com descontos de 30%. A venda para investidores também estagnou, porque os preços bateram no teto, e não vale a pena”, explica Lopez.
Com a especulação, boa parte da população das áreas valorizadas foi deslocada para áreas periféricas ou para outros municípios. Muita gente se mudou de Santos para a Praia Grande, por exemplo, agravando o problema de mobilidade na região, já que é preciso se deslocar diariamente para o trabalho.
A história da diarista Jaqueline Soares é um exemplo desse processo, conhecido como gentrificação [1]. Há cinco anos, ela desembolsava apenas R$ 600 para alugar um pequeno sobrado no sopé do Morro do Itararé, na divisa entre Santos e São Vicente.
[1] Valorização de determinada área que eleva os custos locais e o preço dos imóveis, levando à expulsão da população original, de menor poder aquisitivo
O local, próximo à área nobre da praia, sempre foi considerado privilegiado, mas ainda mantinha pequenos enclaves de residências modestas. Um tradicional clube localizado na vizinhança foi demolido e deu lugar a um conjunto de torres residenciais. “O proprietário dobrou o preço da casinha. Nós tivemos de sair de lá há sete meses”, afirma Jaqueline.
Com o marido e os dois filhos, a diarista mudou-se para o bairro periférico de Vila Margarida, em São Vicente, ao lado da favela México 70. “Nós moramos em uma casa regularizada, mas o bairro é favela. Pagamos R$ 700”, diz Jaqueline, que antes andava de ônibus quando morava no bairro nobre, mas, no novo endereço, precisou comprar um carro para ir ao trabalho. “Não fui só eu. Praticamente todo mundo que eu conheço precisou se mudar nos últimos anos por causa dos preços. Os aluguéis dobraram. Ainda tive sorte de passar tanto tempo na divisa”, declara.
SOZINHO NÃO FAZ VERÃO
A maior parte dos fenômenos atribuídos pelos moradores à indústria do pré-sal – em especial a especulação imobiliária – teve sua existência confirmada tecnicamente nos diagnósticos socioambientais participativos da região, produzidos pelo Instituto Pólis para o projeto Litoral Sustentável. O pré-sal, no entanto, é apenas mais um indutor entre muitos outros aspectos de um processo de transformação socioeconômica muito mais complexo e profundo que está ocorrendo na região, de acordo com Guadalupe Almeida, coordenadora jurídica do projeto.
O projeto foi realizado em duas fases. A primeira delas, iniciada em outubro de 2011 e finalizada no fim de 2012, consistiu em um diagnóstico participativo da realidade territorial e socioambiental encontrada no Litoral Norte e na Baixada Santista. Na segunda fase, foram elaboradas agendas dos 13 municípios de abrangência do projeto e uma Agenda Regional.
Os diagnósticos, trabalhados por técnicos com formação multidisciplinar e especialistas, compreendem diferentes áreas, como urbanismo, meio ambiente, setor jurídico, segurança alimentar, resíduos sólidos, saúde, cultura, economia, orçamento público, segurança pública e educação. A elaboração contou com a participação da população e de gestores municipais e estaduais.
De acordo com Guadalupe, que também coordenou a publicação final das agendas, inicialmente, quando o projeto foi apresentado em 2008 à Petrobras, em busca de financiamento, a preocupação de fato eram os possíveis impactos do pré-sal na região. Mas, logo que o projeto foi viabilizado, em 2011, a equipe do Pólis se deu conta de que o pré-sal, embora relevante, não era o fator central dos problemas urbanos e ambientais da região.
“Logo que começaram as análises, vimos que a questão do pré-sal é um dos vários elementos do processo pelo qual está passando o litoral paulista – e está longe de ser o elemento estrutural”, afirma. Um dos aspectos de fundo diagnosticados na Baixada Santista, segundo ela, é o aumento acentuado da residência fixa. “Tem muita gente indo morar lá. Isso é um dado que aumenta a demanda urbana, mas sua origem não tem nada a ver com o pré-sal”, declara. “A questão da mobilidade, que é crítica na região, está mais relacionada com a inexistência de uma tarifação única [2] dos ônibus na ligação dos municípios da Baixada”, diz Guadalupe.
[2] O uso do transporte é metropolitano, com pessoas indo de uma cidade a outra, mas cada município possui uma tarifação própria
Outro fator apontado como um problema pela população, no diagnóstico participativo, foi o veranismo, isto é, a concentração do turismo apenas na temporada de verão. “Considerando o patrimônio histórico e cultural da região, seria possível gerar um turismo sustentável, ou de base comunitária, que poderia ser mais perene. Essa é uma questão que afeta demais a oferta de emprego e a economia da região”, afirma a advogada.
A ocupação irregular das áreas de preservação ambiental também foi apontada como um problema que aumentou muito nos últimos dez anos. É preciso planejar essa ocupação. Santos tem 52% de seu território em áreas de conservação – em especial no continente – e essa porcentagem chega a 93% em algumas partes do litoral (em Bertioga, por exemplo, é de 72%). “Como será a ocupação nessas áreas?”, questiona. A necessidade de incluir a população de baixa renda em Santos também foi uma questão importante detectada. “A sensação é de que o município está virando uma área exclusiva da classe média alta”, diz.
Com base nos diagnósticos, os técnicos do Pólis elaboraram diretrizes e ações estratégicas com foco nos eixos temáticos que culminaram no estabelecimento das agendas de Desenvolvimento Sustentável da região: Desenvolvimento Sustentável e Includente, Uso Sustentável das Áreas Protegidas, Democratização do Território e Inclusão Social e Gestão Regional Participativa e Integrada. Agora, segundo Guadalupe, terá início uma terceira fase do projeto, que é o Observatório Litoral Sustentável. “Não basta propor ações, é preciso vê-las implementadas. Queremos contribuir para organizar melhor a sociedade e tentar unificar as várias iniciativas que já existem no litoral paulista”, afirmou. O Observatório, segundo ela, contará com espaços virtuais e presenciais para câmaras temáticas que tratarão de temas específicos, a fim de articular os diversos fóruns.
Segundo Guadalupe, embora não esteja na origem dos problemas apontados pelos diagnósticos socioambientais, o pré-sal poderá exacerbar todos eles. “A exclusão e a gentrificação, a ausência de participação pública, a especulação imobiliária – todos esses fatores poderão ser agravados”, diz Guadalupe.
RISCO DA OPERAÇÃO EM SI
Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP), concorda que é prematuro vincular os problemas socioeconômicos diretamente ao frenesi da indústria do pré-sal. No entanto, pela forma como tem sido encaminhada a exploração das reservas, os impactos poderão ser muito maiores e mais trágicos que os fenômenos sociais observados até agora.
De acordo com o professor, que foi diretor de Gás e Energia da Petrobras, o verdadeiro problema está no potencial impacto ambiental da operação de exploração do pré-sal propriamente dita. As operações, segundo ele, são realizadas em pontos que ficam de 100 a 200 quilômetros da costa, em uma área submetida a fluxos de alto-mar. “Se acontecesse ali algum incêndio ou acidente – como o que ocorreu com o poço da Chevron na Bacia de Campos, em 2011, por exemplo –, o impacto se dará por alto-mar, em função do deslocamento das correntes marinhas, com consequências quase imprevisíveis, que dependerão da localização exata, da época do ano e das correntes”, afirma Sauer.
A exploração do pré-sal, segundo o diretor do IEE, sem dúvida gera oportunidades econômicas, visto que as operações em alto-mar comportam a construção de plataformas e perfuração de poços, envolvem o sistema industrial de uma cadeia produtiva globalizada e exigem a produção de equipamentos, sistemas de geração de energia e turbinas – que são fabricados no Brasil –, o desenvolvimento de centros logísticos e o desembarque de materiais e pessoal com helicópteros, entre outras atividades. “É claro que há ingresso de investimentos que acabam deixando algum resultado no desenvolvimento local dessas regiões – incluindo o aumento da demanda de moradia e eventualmente a especulação imobiliária frenética.
Mas a principal preocupação é o potencial de impacto ambiental”, afirma. Segundo ele, o risco existe porque houve um equívoco fundamental na condução da exploração do petróleo no Brasil, a partir do momento em os avanços técnicos permitiram a consolidação do modelo geológico do pré-sal. “Houve uma precipitação absurda no processo exploratório”, afirma. Para ele, seria preciso primeiro concluir o dimensionamento das reservas. Depois, definir o ritmo de produção, coordenando- o com as necessidades de infraestrutura produtiva. “Seria preciso também estabelecer uma coordenação com os atuais países produtores de petróleo, para manter o preço elevado – pois não há sentido em explorar reservas do fundo do mar para baixar o preço do produto”, diz.
Nesse meio tempo, prossegue o professor da USP, haveria possibilidade de uma discussão mais ampla sobre os impactos socioambientais. “Seria preciso fazer testes de longa duração para verificação das reservas. Enquanto isso, seria possível elaborar um plano nacional de desenvolvimento econômico e social. Mas o Brasil começou a produzir sem coordenação e sem planejamento”, afirma.
Para Sauer o acidente do poço de Macondo, no Golfo do México, em 2010, mostra que nenhum governo do mundo tem recursos e órgãos suficientes para controlar a estabilidade de um sistema de exploração. “Até ali, quem funcionava como órgão regulador eram as seguradoras. Depois de Macondo, elas pararam de operar nesse campo, o que diminuiu ainda mais a fiscalização. Se a exploração fosse feita com calma, teríamos tempo para desenvolver sistemas de monitoramento e segurança ambiental, definindo metodologias e regras. Mas desperdiçamos essa oportunidade por pressa de capitalizar politicamente com o pré-sal”, explica.
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A indústria do pré-sal gerou expectativa de desenvolvimento local na Baixada Santista, mas, para a população, o otimismo transformou-se em frustração, especulação imobiliária e gentrificação
A Baixada Santista está de ressaca. Há alguns anos, a população local convive com a expectativa de que a indústria do pré-sal leve prosperidade à região, atraindo empresas, investimentos, negócios e empregos qualificados. Parte desses prognósticos concretizou-se, com impacto inegável no desenvolvimento local, mas sem a esperada distribuição de riqueza nem a elaboração de tecnologias adequadas para lidar com a prevenção de danos ambientais. Enquanto a maior parte das imensas reservas descobertas ainda é uma riqueza potencial a ser extraída das profundezas oceânicas, o pré-sal já provoca impactos bastante concretos na vida da população. O mais evidente deles foi uma onda de especulação imobiliária, gerada pela expectativa da prosperidade. Assim, os resultados não parecem ter melhorado de fato a vida dos habitantes da região. A euforia inicial passou.
“Pré-sal? Teve um impacto muito grande. Mas totalmente negativo. As pessoas esperavam um aquecimento da economia da região. O que aconteceu foi o contrário”, diz o corretor de imóveis Fernando Perez Lopez, proprietário de uma imobiliária na Praia de Gonzaguinha, em São Vicente (SP). Segundo ele, nos últimos quatro anos, o preço dos imóveis na região subiu cerca de 130%, quando a inflação no período não passou dos 25%. “Isso diminuiu a procura por imóveis. Nossas vendas caíram de 70% a 80% desde 2010”, diz. “Antes, vendíamos quatro ou cinco apartamentos por mês. Agora temos que comemorar se vendermos um ou dois.” (Mais em quadro abaixo)
Mais expectativas que negócios
Com o crescimento vertiginoso dos lançamentos de novos empreendimentos, o mercado imobiliário da Baixada Santista se tornou o sexto maior do País, de acordo com um anuário da consultoria Lopes, publicado em maio de 2014. O Valor Geral de Venda, ou seja, a soma dos preços anunciados pelas construtoras nos lançamentos (mas não de vendas efetivas), chegou a R$ 2,7 bilhões. Mas, se a expectativa impulsionou os lançamentos, as vendas propriamente ditas acabaram sofrendo uma queda. O que explica a aparente contradição é que o pré-sal gerou mais expectativas que negócios. De acordo com informações do Secovi da Baixada Santista, divulgadas no fim de 2013, a velocidade de venda dos imóveis caiu, e os preços pararam de subir, indicando de que o ritmo do setor não é mais o mesmo, apesar de toda a euforia inicial.
A altura dos novos edifícios é, sem dúvida, a face mais visível de cada um desses ataques especulativos. A partir da década de 1960, a construção civil explodiu na parte insular das cidades de Santos e São Vicente – até hoje a área mais urbanizada da região –, mas a legislação de 1968 estabelecia limites de altura de 10 andares. Em 1986, foram liberados prédios de até 14 andares e um novo surto imobiliário ocorreu.
A partir de 1998, o limite de altura deixou de ser um parâmetro legal para a autorização de novos empreendimentos. Começaram a surgir as torres de mais de 30 andares, cuja construção foi acelerada a partir de 2007, na onda do pré-sal. Só que o investimento em infraestrutura urbana não acompanhou essa tendência, gerando graves problemas de mobilidade – a frota de veículos de Santos é uma das maiores do Brasil, com um carro para 1,6 habitante.
“As construtoras contaram com o pré-sal, mas o encarecimento dos imóveis expulsou a população para outras áreas e não houve a migração que se imaginava para a cidade”, explica Lopez. Há pouca gente disposta a adquirir apartamentos de 130 metros quadrados por R$ 800 mil. “Hoje, várias das torres de mais de 30 andares estão encalhadas, mesmo com descontos de 30%. A venda para investidores também estagnou, porque os preços bateram no teto, e não vale a pena”, explica Lopez.
Com a especulação, boa parte da população das áreas valorizadas foi deslocada para áreas periféricas ou para outros municípios. Muita gente se mudou de Santos para a Praia Grande, por exemplo, agravando o problema de mobilidade na região, já que é preciso se deslocar diariamente para o trabalho.
A história da diarista Jaqueline Soares é um exemplo desse processo, conhecido como gentrificação [1]. Há cinco anos, ela desembolsava apenas R$ 600 para alugar um pequeno sobrado no sopé do Morro do Itararé, na divisa entre Santos e São Vicente.
[1] Valorização de determinada área que eleva os custos locais e o preço dos imóveis, levando à expulsão da população original, de menor poder aquisitivo
O local, próximo à área nobre da praia, sempre foi considerado privilegiado, mas ainda mantinha pequenos enclaves de residências modestas. Um tradicional clube localizado na vizinhança foi demolido e deu lugar a um conjunto de torres residenciais. “O proprietário dobrou o preço da casinha. Nós tivemos de sair de lá há sete meses”, afirma Jaqueline.
Com o marido e os dois filhos, a diarista mudou-se para o bairro periférico de Vila Margarida, em São Vicente, ao lado da favela México 70. “Nós moramos em uma casa regularizada, mas o bairro é favela. Pagamos R$ 700”, diz Jaqueline, que antes andava de ônibus quando morava no bairro nobre, mas, no novo endereço, precisou comprar um carro para ir ao trabalho. “Não fui só eu. Praticamente todo mundo que eu conheço precisou se mudar nos últimos anos por causa dos preços. Os aluguéis dobraram. Ainda tive sorte de passar tanto tempo na divisa”, declara.
SOZINHO NÃO FAZ VERÃO
A maior parte dos fenômenos atribuídos pelos moradores à indústria do pré-sal – em especial a especulação imobiliária – teve sua existência confirmada tecnicamente nos diagnósticos socioambientais participativos da região, produzidos pelo Instituto Pólis para o projeto Litoral Sustentável. O pré-sal, no entanto, é apenas mais um indutor entre muitos outros aspectos de um processo de transformação socioeconômica muito mais complexo e profundo que está ocorrendo na região, de acordo com Guadalupe Almeida, coordenadora jurídica do projeto.
O projeto foi realizado em duas fases. A primeira delas, iniciada em outubro de 2011 e finalizada no fim de 2012, consistiu em um diagnóstico participativo da realidade territorial e socioambiental encontrada no Litoral Norte e na Baixada Santista. Na segunda fase, foram elaboradas agendas dos 13 municípios de abrangência do projeto e uma Agenda Regional.
Os diagnósticos, trabalhados por técnicos com formação multidisciplinar e especialistas, compreendem diferentes áreas, como urbanismo, meio ambiente, setor jurídico, segurança alimentar, resíduos sólidos, saúde, cultura, economia, orçamento público, segurança pública e educação. A elaboração contou com a participação da população e de gestores municipais e estaduais.
De acordo com Guadalupe, que também coordenou a publicação final das agendas, inicialmente, quando o projeto foi apresentado em 2008 à Petrobras, em busca de financiamento, a preocupação de fato eram os possíveis impactos do pré-sal na região. Mas, logo que o projeto foi viabilizado, em 2011, a equipe do Pólis se deu conta de que o pré-sal, embora relevante, não era o fator central dos problemas urbanos e ambientais da região.
“Logo que começaram as análises, vimos que a questão do pré-sal é um dos vários elementos do processo pelo qual está passando o litoral paulista – e está longe de ser o elemento estrutural”, afirma. Um dos aspectos de fundo diagnosticados na Baixada Santista, segundo ela, é o aumento acentuado da residência fixa. “Tem muita gente indo morar lá. Isso é um dado que aumenta a demanda urbana, mas sua origem não tem nada a ver com o pré-sal”, declara. “A questão da mobilidade, que é crítica na região, está mais relacionada com a inexistência de uma tarifação única [2] dos ônibus na ligação dos municípios da Baixada”, diz Guadalupe.
[2] O uso do transporte é metropolitano, com pessoas indo de uma cidade a outra, mas cada município possui uma tarifação própria
Outro fator apontado como um problema pela população, no diagnóstico participativo, foi o veranismo, isto é, a concentração do turismo apenas na temporada de verão. “Considerando o patrimônio histórico e cultural da região, seria possível gerar um turismo sustentável, ou de base comunitária, que poderia ser mais perene. Essa é uma questão que afeta demais a oferta de emprego e a economia da região”, afirma a advogada.
A ocupação irregular das áreas de preservação ambiental também foi apontada como um problema que aumentou muito nos últimos dez anos. É preciso planejar essa ocupação. Santos tem 52% de seu território em áreas de conservação – em especial no continente – e essa porcentagem chega a 93% em algumas partes do litoral (em Bertioga, por exemplo, é de 72%). “Como será a ocupação nessas áreas?”, questiona. A necessidade de incluir a população de baixa renda em Santos também foi uma questão importante detectada. “A sensação é de que o município está virando uma área exclusiva da classe média alta”, diz.
Com base nos diagnósticos, os técnicos do Pólis elaboraram diretrizes e ações estratégicas com foco nos eixos temáticos que culminaram no estabelecimento das agendas de Desenvolvimento Sustentável da região: Desenvolvimento Sustentável e Includente, Uso Sustentável das Áreas Protegidas, Democratização do Território e Inclusão Social e Gestão Regional Participativa e Integrada. Agora, segundo Guadalupe, terá início uma terceira fase do projeto, que é o Observatório Litoral Sustentável. “Não basta propor ações, é preciso vê-las implementadas. Queremos contribuir para organizar melhor a sociedade e tentar unificar as várias iniciativas que já existem no litoral paulista”, afirmou. O Observatório, segundo ela, contará com espaços virtuais e presenciais para câmaras temáticas que tratarão de temas específicos, a fim de articular os diversos fóruns.
Segundo Guadalupe, embora não esteja na origem dos problemas apontados pelos diagnósticos socioambientais, o pré-sal poderá exacerbar todos eles. “A exclusão e a gentrificação, a ausência de participação pública, a especulação imobiliária – todos esses fatores poderão ser agravados”, diz Guadalupe.
RISCO DA OPERAÇÃO EM SI
Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE/USP), concorda que é prematuro vincular os problemas socioeconômicos diretamente ao frenesi da indústria do pré-sal. No entanto, pela forma como tem sido encaminhada a exploração das reservas, os impactos poderão ser muito maiores e mais trágicos que os fenômenos sociais observados até agora.
De acordo com o professor, que foi diretor de Gás e Energia da Petrobras, o verdadeiro problema está no potencial impacto ambiental da operação de exploração do pré-sal propriamente dita. As operações, segundo ele, são realizadas em pontos que ficam de 100 a 200 quilômetros da costa, em uma área submetida a fluxos de alto-mar. “Se acontecesse ali algum incêndio ou acidente – como o que ocorreu com o poço da Chevron na Bacia de Campos, em 2011, por exemplo –, o impacto se dará por alto-mar, em função do deslocamento das correntes marinhas, com consequências quase imprevisíveis, que dependerão da localização exata, da época do ano e das correntes”, afirma Sauer.
A exploração do pré-sal, segundo o diretor do IEE, sem dúvida gera oportunidades econômicas, visto que as operações em alto-mar comportam a construção de plataformas e perfuração de poços, envolvem o sistema industrial de uma cadeia produtiva globalizada e exigem a produção de equipamentos, sistemas de geração de energia e turbinas – que são fabricados no Brasil –, o desenvolvimento de centros logísticos e o desembarque de materiais e pessoal com helicópteros, entre outras atividades. “É claro que há ingresso de investimentos que acabam deixando algum resultado no desenvolvimento local dessas regiões – incluindo o aumento da demanda de moradia e eventualmente a especulação imobiliária frenética.
Mas a principal preocupação é o potencial de impacto ambiental”, afirma. Segundo ele, o risco existe porque houve um equívoco fundamental na condução da exploração do petróleo no Brasil, a partir do momento em os avanços técnicos permitiram a consolidação do modelo geológico do pré-sal. “Houve uma precipitação absurda no processo exploratório”, afirma. Para ele, seria preciso primeiro concluir o dimensionamento das reservas. Depois, definir o ritmo de produção, coordenando- o com as necessidades de infraestrutura produtiva. “Seria preciso também estabelecer uma coordenação com os atuais países produtores de petróleo, para manter o preço elevado – pois não há sentido em explorar reservas do fundo do mar para baixar o preço do produto”, diz.
Nesse meio tempo, prossegue o professor da USP, haveria possibilidade de uma discussão mais ampla sobre os impactos socioambientais. “Seria preciso fazer testes de longa duração para verificação das reservas. Enquanto isso, seria possível elaborar um plano nacional de desenvolvimento econômico e social. Mas o Brasil começou a produzir sem coordenação e sem planejamento”, afirma.
Para Sauer o acidente do poço de Macondo, no Golfo do México, em 2010, mostra que nenhum governo do mundo tem recursos e órgãos suficientes para controlar a estabilidade de um sistema de exploração. “Até ali, quem funcionava como órgão regulador eram as seguradoras. Depois de Macondo, elas pararam de operar nesse campo, o que diminuiu ainda mais a fiscalização. Se a exploração fosse feita com calma, teríamos tempo para desenvolver sistemas de monitoramento e segurança ambiental, definindo metodologias e regras. Mas desperdiçamos essa oportunidade por pressa de capitalizar politicamente com o pré-sal”, explica.