O uso do termo “sustentável” para qualificar o desenvolvimento sempre exprimiu a esperança de que a humanidade poderá – sim – se relacionar com a biosfera, de modo a evitar os colapsos profetizados nos anos 1970
Com todo o respeito que merece o pioneirismo de grandes ecólogos sobre o que hoje se entende por “sustentabilidade”, é forçoso constatar que nos anos 1960-70 eles forjaram um discurso muito derrotista sobre a relação da humanidade com a biosfera, que só começou a ser superado nos anos 1980. A consagração do ideal de desenvolvimento sustentável exprime uma profunda confiança de que – sim – será possível chegar à governança do sistema Terra, por mais que ainda seja difícil se ter clareza sobre quais serão os caminhos.
Merece muita atenção o depoimento do físico quântico David Deutsch (Oxford) sobre sua experiência traumática, em 1971, no colegial, ao assistir a uma conferência do ecólogo Paul R. Ehrlich (1932- ) intitulada “População, Recursos e Ambiente” [1] . Diz que provavelmente deve ter sido a primeira vez que ouviu o termo “environment”, e que, com certeza, nada o havia preparado para tão brutal demonstração de pessimism (“nothing had prepared me for such a bravura display of raw pessimism”).
[1] DEUTSCH, David. The Beginning of Infinity; Explanations That Transform the World. Penguin Books: 2011, p. 431
Segundo Ehrlich, da meia dúzia de catástrofes que já estavam na esquina, algumas não poderiam ser evitadas por já ser tarde demais, e todas estavam intimamente ligadas à superpopulação.
Deutsch também descreve em detalhes suas discussões com um colega de universidade que se inscrevera no então novo curso de graduação em ciência ambiental. Para esse amigo, o surgimento da televisão colorida era não apenas um sinal do colapso iminente da “sociedade de consumo”, mas um exemplo de fenômeno muito mais amplo e profundo, pertinente a muitas outras áreas tecnológicas: os limites “finais” estariam sendo tocados. Tudo o que parecia progresso era, para esse colega, uma corrida insana pela exploração dos últimos recursos que haviam sobrado no planeta. Tinha certeza de que os anos 1970 seriam um momento terrível e único da história humana.
Quarenta anos depois, o premiado físico usa essas recordações para contrastar as duas únicas concepções do mundo que lhe parecem possíveis. A otimista, que se comprovou correta, diz que os humanos são solucionadores de problemas. A pessimista, ao contrário, afirma que essa capacidade de resolver um problema criando o próximo é, na verdade, uma doença para a qual a sustentabilidade seria a cura.
Ora, é irônico que Deutsch ignore que a principal revista dedicada à temática da sustentabilidade tem por título justamente Solutions, e que seus principais editores são chamados de “solutionaries”. Essa ignorância só pode decorrer de sua estranha crença de que o verbo “sustentar” só tenha dois significados, quase opostos: garantir o que se necessita, e evitar/impedir que as coisas mudem (“to provide someone with what they need, and to prevent things from changing”, p. 441).
Mais grave, contudo, é seu erro de avaliação histórica. Nos 35 anos passados desde que começou a inspirar a estratégia mundial de conservação (IUCN-Unep-WWF, 1980), ou mesmo uma nova utopia política (Lester Brown, 1981), o projeto de desenvolvimento sustentável e o valor sustentabilidade não cessaram de ganhar força social, como indica o atual debate sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que a Assembleia Geral da ONU deverá adotar para substituir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), no âmbito do que foi batizado de Agenda Pós-2015.
Por isso, chega a ser assustadoramente ingênuo o reducionismo que pretende abordar o problema pelo seu lado semântico, como faz Deutsch. Mesmo que a noção de sustentabilidade refletisse uma visão de mundo pessimista – o que é simplesmente falso –, é incrível que ele possa ignorar, ou desprezar, a relevância política do processo de superação cognitiva do catastrofismo dos pioneiros, cujos expoentes foram Garrett Hardin (1915-2003) e Paul R. Ehrlich.
O uso do termo “sustentável” para qualificar o desenvolvimento sempre exprimiu a possibilidade e a esperança de que a humanidade poderá – sim – se relacionar com a biosfera de modo a evitar os colapsos profetizados nos anos 1970.
Sustentabilidade é uma noção incompatível com a ideia de que o desastre só estaria sendo adiado, ou com qualquer tipo de dúvida sobre a real possibilidade do progresso da humanidade. Em seu âmago está uma visão de mundo dinâmica, na qual transformação e adaptação são inevitáveis, mas dependem de elevada consciência, sóbria precaução e muita responsabilidade diante dos riscos e, principalmente, das incertezas.
*Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de A desgovernança mundial da sustentabilidade (Ed. 34: 2013). www.zeeli.pro.br[:en]O uso do termo “sustentável” para qualificar o desenvolvimento sempre exprimiu a esperança de que a humanidade poderá – sim – se relacionar com a biosfera, de modo a evitar os colapsos profetizados nos anos 1970
Com todo o respeito que merece o pioneirismo de grandes ecólogos sobre o que hoje se entende por “sustentabilidade”, é forçoso constatar que nos anos 1960-70 eles forjaram um discurso muito derrotista sobre a relação da humanidade com a biosfera, que só começou a ser superado nos anos 1980. A consagração do ideal de desenvolvimento sustentável exprime uma profunda confiança de que – sim – será possível chegar à governança do sistema Terra, por mais que ainda seja difícil se ter clareza sobre quais serão os caminhos.
Merece muita atenção o depoimento do físico quântico David Deutsch (Oxford) sobre sua experiência traumática, em 1971, no colegial, ao assistir a uma conferência do ecólogo Paul R. Ehrlich (1932- ) intitulada “População, Recursos e Ambiente” [1] . Diz que provavelmente deve ter sido a primeira vez que ouviu o termo “environment”, e que, com certeza, nada o havia preparado para tão brutal demonstração de pessimism (“nothing had prepared me for such a bravura display of raw pessimism”).
[1] DEUTSCH, David. The Beginning of Infinity; Explanations That Transform the World. Penguin Books: 2011, p. 431
Segundo Ehrlich, da meia dúzia de catástrofes que já estavam na esquina, algumas não poderiam ser evitadas por já ser tarde demais, e todas estavam intimamente ligadas à superpopulação.
Deutsch também descreve em detalhes suas discussões com um colega de universidade que se inscrevera no então novo curso de graduação em ciência ambiental. Para esse amigo, o surgimento da televisão colorida era não apenas um sinal do colapso iminente da “sociedade de consumo”, mas um exemplo de fenômeno muito mais amplo e profundo, pertinente a muitas outras áreas tecnológicas: os limites “finais” estariam sendo tocados. Tudo o que parecia progresso era, para esse colega, uma corrida insana pela exploração dos últimos recursos que haviam sobrado no planeta. Tinha certeza de que os anos 1970 seriam um momento terrível e único da história humana.
Quarenta anos depois, o premiado físico usa essas recordações para contrastar as duas únicas concepções do mundo que lhe parecem possíveis. A otimista, que se comprovou correta, diz que os humanos são solucionadores de problemas. A pessimista, ao contrário, afirma que essa capacidade de resolver um problema criando o próximo é, na verdade, uma doença para a qual a sustentabilidade seria a cura.
Ora, é irônico que Deutsch ignore que a principal revista dedicada à temática da sustentabilidade tem por título justamente Solutions, e que seus principais editores são chamados de “solutionaries”. Essa ignorância só pode decorrer de sua estranha crença de que o verbo “sustentar” só tenha dois significados, quase opostos: garantir o que se necessita, e evitar/impedir que as coisas mudem (“to provide someone with what they need, and to prevent things from changing”, p. 441).
Mais grave, contudo, é seu erro de avaliação histórica. Nos 35 anos passados desde que começou a inspirar a estratégia mundial de conservação (IUCN-Unep-WWF, 1980), ou mesmo uma nova utopia política (Lester Brown, 1981), o projeto de desenvolvimento sustentável e o valor sustentabilidade não cessaram de ganhar força social, como indica o atual debate sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que a Assembleia Geral da ONU deverá adotar para substituir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), no âmbito do que foi batizado de Agenda Pós-2015.
Por isso, chega a ser assustadoramente ingênuo o reducionismo que pretende abordar o problema pelo seu lado semântico, como faz Deutsch. Mesmo que a noção de sustentabilidade refletisse uma visão de mundo pessimista – o que é simplesmente falso –, é incrível que ele possa ignorar, ou desprezar, a relevância política do processo de superação cognitiva do catastrofismo dos pioneiros, cujos expoentes foram Garrett Hardin (1915-2003) e Paul R. Ehrlich.
O uso do termo “sustentável” para qualificar o desenvolvimento sempre exprimiu a possibilidade e a esperança de que a humanidade poderá – sim – se relacionar com a biosfera de modo a evitar os colapsos profetizados nos anos 1970.
Sustentabilidade é uma noção incompatível com a ideia de que o desastre só estaria sendo adiado, ou com qualquer tipo de dúvida sobre a real possibilidade do progresso da humanidade. Em seu âmago está uma visão de mundo dinâmica, na qual transformação e adaptação são inevitáveis, mas dependem de elevada consciência, sóbria precaução e muita responsabilidade diante dos riscos e, principalmente, das incertezas.
*Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de A desgovernança mundial da sustentabilidade (Ed. 34: 2013). www.zeeli.pro.br